sábado, 4 de dezembro de 2021

Nascer para ser rico (Conto popular de Portugal), de Teófilo Braga

 

NASCER PARA SER RICO
 

Havia um sapateiro que trabalhava noite e dia, mas nunca passava da cepa torta; um vizinho muito rico ouvia-o cantar sempre esta cantiga:

Sou um pobre sapateiro,
Que estou sempre a dar, a dar,
Quem nasceu para ser pobre
Que lhe serve o trabalhar?

Ao som desta cantiga batia sola; o vizinho lembrou-se de lhe fazer uma surpresa, e mandou-lhe uma grande rosca cheia de dinheiro por dentro, que era para ele comer com sua mulher e filhos, e quando a partisse já não ter que se queixar da sorte. O sapateiro assim que recebeu a rosca deu muitos agradecimentos ao vizinho, mas como tinha tido uma doença em casa lembrou-se de ir levar de presente a rosca ao médico a quem estava em dívida. A mulher ficou muito contente com a lembrança e foi ela mesmo levá-la a casa do médico. Passados dias passou o vizinho rico pela porta do sapateiro, e ouviu-lhe a mesma cantiga, e perguntou-lhe:

— Oh homem! pois você não comeu a rosca com a sua família?

O sapateiro contou o motivo porque se tinha visto obrigado a levá-la de presente ao médico. O rico foi-se embora, e passados dias mandou-lhe uns toros de pinheiro, também cheios de dinheiro por dentro, dizendo que era para fazer o seu lume. Ora o sapateiro era vizinho de um padeiro, de quem comia fiado, e para lhe ser agradecido levou-lhe os toros de presente para queimar no forno. De outra vez passou o vizinho rico pela porta do sapateiro e perguntou-lhe se já tinha rachado a lenha que lhe mandara; o homenzinho contou como se vira obrigado a levar os toros de presente ao seu vizinho padeiro, que lhe dava pão fiado. Vai o rico e disse-lhe:

— Você parece que tem razão em se queixar de que nasceu para ser pobre, porque a rosca de pão e os toros de pinheiro vinham por dentro recheadinhos de dinheiro. Agora ainda que lhe queira fazer bem já não posso, nem trago nada comigo. O mais que lhe posso dar é esse pedaço de chumbo que achei ali no caminho.

O sapateiro pegou no bocadinho de chumbo, e como de nada lhe servia deitou-o ali para um canto, e continuou a trabalhar ao som da mesma cantiga. De noite quando estava na cama, sentiu bater à porta: truz, truz! Falaram:

— Oh senhora vizinha!

A mulher do sapateiro levantou-se e foi ao postigo; era a mulher de um pescador que morava paredes meias e disse:

— O meu homem vai agora para o mar, para deitar as redes; é uma ocasião boa, mas falta-lhe chumbo para elas. Não terá por aí qualquer bocadinho que me dê?

O sapateiro lembrou-se do chumbo que lhe tinha dado o homem rico e disse à mulher onde estava, e que o levasse à do pescador. Lá o que se passou não sei, mas o pescador tirou uma rede cheia de peixe, e a mulher veio a casa do sapateiro trazer-lhe em paga uma boa garoupa para amanharem para o jantar. Quando a mulher do sapateiro a estava arranjando, abriu-lhe as ventrechas e achou-lhe dentro uma pedra a modo de um vidro esquinado e deu aos pequenos para brincarem, sem fazer a isso mais reparo. Os pequenos brincaram com a pedra, e deixaram-na para aí quando se foram deitar. De noite estava o sapateiro na cama, e depois que apagou a candeia viu luzir uma coisa como que se fosse os olhos de gato.

— Homem, essa! parece-me que vejo luzir ali uma coisa.

A mulher reparou, e viu o mesmo; levantou-se o sapateiro e foi ver o que seria; deu com uma pedra muito polida, e foi então que a mulher se lembrou que a tinha encontrado na ventrecha da garoupa. O sapateiro quando amanheceu foi mostrá-la a casa de um ourives, que lhe disse que aquilo era uma pedra preciosa e que valia tanto que nem ele mesmo tinha dinheiro para a comprar; mas que se ele quisesse iria mostrá-la ao rei, que só ele é que podia ter joias de tanto valor. Assim fez, e o sapateiro veio a receber muito dinheiro pela pedra; mudou de vida, comprou casas e quintas, e quando já se tratava como um senhor, passou-lhe pela porta o antigo vizinho rico que tinha estado muito tempo fora da terra, e ficou pasmado de o ver tão acrescentado. Ele dizia lá consigo:

— O velhaco do sapateiro enganou-me; guardou o dinheiro que lhe mandei dentro da rosca e dos toros de pinheiro, e só depois da coisa esquecida é que se saiu com ele.

Mas o sapateiro era homem liso, e contou-lhe como a fortuna lhe viera pelo bocadinho de chumbo que lhe deu, agradeceu-lhe muito, e concluiu que apesar das suas queixas ele tinha nascido para ser rico, pois dera por duas vezes pontapés na fortuna.

 

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Ano de publicação: 1883
Origem: Portugal (Porto)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

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