quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Francisca Júlia


A Inveja (Conto da Infância), de Francisca Júlia

 

A INVEJA


Havia um homem, extremamente invejoso, que não tinha conseguido ainda arranjar fortuna, apesar dos esforços que fazia, do trabalho diário e das economias.
Este homem, desde que ficou só no mundo, sem o amparo de seus pais, que tinham morrido, entregou-se ao trabalho; mas como nunca foi honesto e empreendia tudo com má fé e malícia, não pode prosperar, de modo que todos, que deviam auxiliá-lo, evitavam-no e negavam-lhe apoio.
Seu principal defeito era a inveja.
Invejava a felicidade de todos, e a todos desejava mal. Se o seu amigo prosperava, cercava-o de pequenas intrigas, maculava-lhe a reputação até vê-lo empobrecer.
Um dia, cansado dos sofrimentos e humilhações por que tinha passado até então, revoltado contra a sorte que lhe era tão adversa, mudou de terra para recomeçar a vida. Empregou-se na casa de um rico moleiro.
Sua ocupação era pastorear as ovelhas, tomar conta do seleiro à noite, evitando a voracidade dos ratos que tudo destruíam. Trabalho suave esse, que lhe rendia algum dinheiro e um tratamento relativamente bom, porque o seu patrão era generoso. Assim viveu ele por muitos dias, feliz, alimentando-se bem e fazendo as economias a que estava habituado.
A inveja, porém, começou a dominai-o de novo, a envenenar-lhe a alma, obrigando-o a revoltar-se contra a crescente prosperidade do seu amo. À noite, fechado em seu quarto, estorcia-se no leito, espumava de raiva, fantasiava altercações com o moleiro, dirigia-lhe impropérios e a inveja ia-o tornando mau cada vez mais.
Daí em diante, já se não importava com o trato das ovelhas, deixando que se desgarrassem do rebanho ou que morressem de peste por falta de cuidados. Agitava a água da azenha, tornando-a suja. Abria a porta do seleiro para dar estrada aos ratos.
Tudo isso ele fazia no intuito de empobrecer o moleiro, fazendo-lhe esses males, causando-lhe prejuízos diários. Mas o proprietário, que já tinha percebido os maus sentimentos do seu empregado, e observado a sua inveja, chamou-o à sua presença e falou-lhe duramente:
— Tu és um mau homem; a princípio conseguiste iludir-me com tua falsa solicitude, com teu fingido amor ao trabalho; agora te conheço melhor, porque de uns tempos a esta parte tenho observado a baixeza de tua alma e a inveja de que está penetrada. De hoje em diante ficas dispensado do serviço da minha casa. Vai com Deus.
E despediu-o, depois de lhe haver pago o que lhe devia, dado alguma roupa e conselhos úteis de moral.
O nosso homem saiu, de cabeça baixa, coberto de vergonha e humilhação.
E jurou vingar-se.
A noite tinha caído de todo. Não havia uma estrela no céu. Tudo era propicio para a realização dos seus desígnios criminosos.
Armou-se de um punhal e encaminhou-se para a casa do moleiro.
Tudo, porém, estava fechado, e ele receava acordar os cães, que eram bravos.
Então, mudando de estratégia, resolveu vingar-se de outro modo: quebrar a roda do moinho.
E partiu, pé ante pé, de cócoras, para confundir-se com o mato e aproximou-se do moinho para quebrar-lhe a roda. Como era dotado de muita força, agarrou num dos raios, suspendeu-se, e, com o auxilio dos pés, pensou quebrar um por um todos os raios; estava nesta posição quando um grosso jato d'água se desprende de cima, apanha a roda, fá-la virar impetuosamente, e mata o desgraçado sem lhe dar tempo de gritar por socorro.
No outro dia, quando o moleiro soube do ocorrido, ergueu as mãos ao céu e rogou a Deus repouso para a alma daquele infeliz.


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Ano de publicação: 1899
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2022)

A Esperança (Conto da Infância), de Francisca Júlia



A ESPERANÇA



A crença mitológica nos conta que os povos antigamente eram felizes, viviam na maior harmonia, sem guerras nem disputas. O mundo era composto de uma só família, onde todos se amavam igualmente e estavam unidos por um afeto fraternal.
Não havia a pobreza, porque a terra, como uma mãe carinhosa, produzia frutos para o aumento de todos. Não se conheciam os ardores do verão, os rigores do inverno, nem a ameaça das tempestades; uma primavera continua refrescava os ares, animava a verdura dos campos e fazia nascer os frutos. Os animais viviam da mesma forma; os pássaros com os répteis, as ovelhas com as feras.
Desta maneira todos se sentiam absolutamente ditosos.
Júpiter, porém, possuía uma boceta, que estava fechada, e que continha todos os males que a humanidade sofre atualmente.
Nela estavam ocultas a amargura, a guerra, a peste, a fome, o assassínio, a ingratidão e todo o gênero de sofrimentos a que o homem está sujeito.
Um dia, Júpiter, tendo de descer do Olimpo com o fim de visitar a terra, como não quisesse abandonar a boceta à curiosidade dos outros deuses, chamou Pandora e falou-lhe assim:
— Toma esta boceta. Ela contém toda a espécie de males criados pelas forças infernais; se a abrires, a humanidade há de sofrer eternamente. É por isso que tá confio, na certeza de que saberás guardai-a com o maior cuidado, não só pelo respeito que deves às minhas ordens, como pela piedade que te inspira a fraqueza humana.
E entregou-a a Pandora.
Esta deusa guardou a boceta durante muito tempo; mas como era excessivamente curiosa, resolveu abri-la.
Abriu-a.
A princípio escapou a guerra: logo os homens começaram a inventar os punhais envenenados, couraças, lanças, setas e toda a variedade de armas de defesa, para, quando fosse ocasião, marchar para o campo da batalha e escravizar os povos vencidos.
A peste abateu os soldados; as lágrimas umedeceram os olhos das mulheres; o falso amigo escondeu no seio o punhal assassino; o filho ridicularizou a velhice dos pais; e assim por diante os males foram saindo da boceta encantada, espalhando-se pelo mundo, acordando sentimentos maus nos corações e derramando por toda a parte a desolação e o luto.
Pandora sentiu remorsos nesse instante e fechou a boceta.
Todos os males, porém, já tinham saído exceto um: a esperança.

A esperança ficou no fundo, escondida, para consolar as mágoas e animar o mundo; de modo que, por mais infelizes que nos julguemos, sempre nos resta a esperança de alcançarmos uma felicidade futura, um suave descanso para as nossas tristezas e um consolo para as nossas aflições. 


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Ano de publicação: 1899
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2022)

O Trovador (Conto da Infância), de Francisca Júlia

 

O TROVADOR
(Balada escandinava)

— Que é que ouves à porta, ó pajem loiro?
— Rei, é um velho de barbas brancas e cabelos longos, que empunha um instrumento de cordas, de que tira celestes harmonias e músicas sonoras.
— Faze-o entrar, lindo pajem, e dize-lhe que venha cantar sob meu trono, na presença dos meus vassalos, as melancolias de sua alma.
"Viva, poderoso rei! em tuas mãos está o cetro de ouro diante do qual se curvam os cortesãos e todos os validos do reino; ao teu mando os exércitos se movem, como servos submissos, obedientes, aos caprichos do teu desejo.
Saúde, nobres senhores! em vossos peitos se ostentam condecorações de honra e medalhas de valor, adquiridas no serviço do rei ou ganhas nos campos da batalha. Urrah, formosas damas! vós inflamais os peitos dos jovens e despertais em suas almas as mais estranhas aspirações de glória.
Eu sou um pobre velho, curvo ao peso doa anos, experimentado nas lides da miséria, que anda pelo mundo despertando nos corações alheios as amarguras adormecidas".
— Canta, trovador.
O velho fechou os olhos e entoou um canto triste, arrancado ao fundo de sua alma. Os homens abaixaram a cabeça para esconder as lágrimas que lhes subiram aos olhos; as moças tremeram á vibração do instrumento e choraram ao eco das suas notas.
O rei, a quem o canto era dirigido, levou aos olhos a ponta do manto, enxugou uma lágrima sentida e disse:
— Velho, desde que subi ao trono sobre o qual se sentaram meus antepassados ilustres, acostumei-me a assistir às dores de outrem de olhos enxutos e coração fechado. Na guerra vi meus amigos e companheiros de infância cair crivados de balas ou rasgados pelas lanças. A fonte do meu pranto está seca. Mas tu, velho, após tantos anos de odiosa indiferença, conseguiste, com as harmonias do teu canto, umedecer a rugosidade das minhas pálpebras com algumas gotas de saudosa lágrima. Toma esta barra de ouro; é mais pesada que o bastão a que te animas.
— Obrigado, bom rei! Agradeço o teu ouro. Quero apenas um pouco de alimento para matar a minha fome e um copo de água fresca para saciar a minha sede.
— Servos, dai ao velho o resto do meu banquete.
O trovador sacia-se nas iguarias reais.
— Obrigado, bom rei! Que a lágrima que derramaste te faça lembrar do trovador humilde. Dá-me agora a liberdade; quero sair, para continuar no silêncio da noite, sob o fulgor das estrelas, minhas tristezas interrompidas.


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Ano de publicação: 1899
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2022)

Vaidade (Conto da Infância), de Francisca Júlia

 

VAIDADE

Estavam reunidas cinco meninas no campo, a conversar, abrigadas à sombra de uma velha árvore, onde as cigarras cantavam.
Todo o resto da campina estava inundado de sol. Fazia um calor estival.
Como eram meninas ricas, e a vaidade é para a maior parte delas a preocupação constante, falavam a respeito da beleza de cada uma.
Dizia a primeira:
— Eu sou a mais bela de vós todas, porque tenho os cabelos claros e quando o sol os ilumina dá-lhes um reflexo dourado. E para mostrá-los, ficou em pé de encontro ao sol, cujos raios formaram uma auréola de ouro em torno à sua cabeça.
A segunda disse:
— Não sou menos bela que tu; tenho a cútis fina e rosada como a polpa de um pêssego.
— Eu tenho as mãos encantadoras.
E assim cada qual enumerava seus encantos, fazendo-os sobressair do melhor modo possível, em vez de ocultá-los ou disfarçá-los como manda a boa educação e a modéstia.
Minhas meninas, nunca vos blasoneis de vossos encantos físicos e do vosso aspecto externo, por mais notáveis que vos pareçam, porque a beleza com que a natureza vos dotou desaparece facilmente com as moléstias que se adquirem, com os inúmeros acidentes da vida e com a idade.
Deveis ser modestas, educar o vosso espírito nas boas leituras, nos exemplos bons, nos atos nobres, que sereis mais belas ainda e a simpatia, que decorre da elevação do espírito, dará um imperecível realce aos vossos encantos.


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Ano de publicação: 1899
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2022)11

O Cão (Conto da Infância), de Francisca Júlia

 

O CÃO

Alfredinho possuía um cão que se chamava Lobo. Era grande como os maiores da sua raça, o pelo crespo, inteiramente negro e dotado de uma coragem e força que o faziam temido por todos.
À noite, quando o soltavam no quintal, Lobo escondia-se na sombra dos muros, e aí ficava, imóvel e alerta, à espera dos ladrões. Mas estes, que lhe temiam a ferocidade, não se arriscavam a galgar o muro.
Entanto este cão, apesar do seu aspecto feroz, dos seus olhos sanguíneos e duros, que fitavam tudo com aspereza, e da sua boca rasgada, guarnecida de dentes afiados, era manso como um cordeiro para o seu pequeno amo, que lhe alisava o pelo e lhe dava beijos no focinho.
Viam-nos sempre juntos, Alfredinho e Lobo, amigos inseparáveis, — aquele, mal sustentando-se nas perninhas fracas, este, ostentando sua corpulência de fera. Às vezes iam passear juntos até ao campo, e Lobo acompanhava o seu amiguinho, seguindo-lhe todos os movimentos, obedecendo a todos os seus gestos, num desejo de adivinhar os seus mais ínfimos pensamentos.
Alfredinho, com ser uma criança de cinco anos apenas, compreendia esta dedicação e retribuía ao seu amigo do mesmo modo, tratando-o com o maior carinho, zangando-se com os criados se lhe davam uma ração pequena ou se lha davam com grosseria.
Certa vez, um homem rico, muito amante de cães, dirigiu-se ao pai de Alfredinho e ofereceu-lhe uma soma avultada para a compra de Lobo.
O pai recusou-se a vendê-lo, dizendo:
— Este cão é o melhor amigo do meu filho, acompanha-o por toda a parte. Se algum dia este digno animal perecer, meu filho não poderá sobreviver-lhe, tal será o desgosto que há de sentir.
O homem foi-se embora, não sem ter lançado de soslaio um olhar invejoso sobre o cão.
De fato, não havia ninguém que não admirasse Lobo, o seu corpo volumoso ornado de um pelo crespo e macio, as suas patas enormes armadas de unhas pontudas e curvas, como as de um leopardo, e o seu peito largo e forte como uma couraça.
Alfredinho, quando tinha três anos, era um menino doente, extremamente débil.
Seu pai, que o amava muito, fazia-lhe todas as vontades, satisfazia-lhe todos os desejos, com medo de contrariá-lo ou aborrecê-lo. Alfredinho, porém, dotado de sentimentos generosos e boa alma, nunca abusou, como fazem geralmente as crianças da sua idade, das delicadezas de que era cercado.
Nessa época, num dia de muita chuva, em que o vento passava impetuosamente em uivos prolongados, Alfredinho, trêmulo de susto, ouviu um gemido triste que vinha da rua. Mandou ver o que era.
— Era um cão muito magro, disseram, e coberto de lepra.
Alfredinho, piedoso como era, pediu ao pai com os olhos cheios de lágrimas que recolhessem o pobre cão, que lhe dessem agasalho.
O cão entrou, encharcado da água da chuva, tremendo de frio. Seu aspecto era repugnante: magríssimo, as costelas salientes, imundo e coberto de lepra.
Todos recusaram-se a recebê-lo.
O menino tanto insistiu, chorou e bateu o pé, que o pai resolveu, não sem escrúpulo e nojo, ficar com o cão.
Deram-lhe o nome de Lobo pelo ar selvagem que tinha.
Pouco a pouco, alimentando-se bem, sujeitando-se ao tratamento da lepra que lhe cobria o pelo, o cão foi engordando, e em pouco tempo tornou-se um animal lindo e afagado por todos.
Durante o dia seguia Alfredinho aos passeios, sacudindo a cauda, fazendo-o rir com suas graças; à noite soltavam-no no quintal para defender as galinhas e as hortaliças do assalto dos malfeitores.
O seu pequeno amo, uma manhã, depois de haver pedido licença ao pai, convidou-o a um passeio ao campo, para caçar borboletas e cigarras.
O cão acompanhou-o.
Alfredinho corria pelos atalhos, escondia-se nas touças de verdura, tentando iludir a vigilância de Lobo.
Cansado, porém, de tanto brincar, deitou-se na relva e adormeceu.
O cão deitou-se também, alerta sempre contra qualquer perigo, disposto, se fosse preciso, a defender o seu querido amiguinho.
Nesse instante uma cobra traiçoeira, arrastando-se por entre as folhas, aproximou-se do lugar em que estavam, pronta para picar a criança e matá-la com sua peçonha mortal.
Lobo, que a tinha pressentido, voltou-se de repente e atacou-a em botes furiosos.
Matou-a. Enquanto a serpente estava estrebuchando no chão, crivada de dentadas, o cão, que tinha sido picado, gemia, penetrado de dores lancinantes.
Pobre e fiel animal!
Minutos após, Lobo, rojando-se no chão, esgotado de forças, chegou até onde estava o seu amiguinho, lambeu-lhe as mãos carinhosamente e morreu num doloroso gemido.


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Ano de publicação: 1899
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2022)