quarta-feira, 17 de novembro de 2021

O Sarjatário (Conto popular), de Sílvio Romero

 

O SARJATÁRIO

Havia um pescador que tinha mulher e uma filha, e costumava pescar sempre num rio que ficava a pouca distância de sua casa. Ora uma vez o pescador foi à pesca, e largou por muitas vezes a tarrafa na água, e não tirou nem um peixe. Já desapontado, e depois de ter corrido os poços mais apropriados à pesca e sem encontrar nada, ia-se retirando para casa muito triste. Ao pôr-se a caminho, ouviu uma voz que lhe dizia:

 — Se me deres a primeira coisa que avistares quando chegares em tua casa, eu te darei muito peixe.

O homem pôs-se a considerar consigo mesmo, e dizia: "Ora, senhor, quando eu chego em casa, a primeira coisa que me aparece é a minha cachorrinha de balaio; não faz mal; posso dá-la." Virou-se para o lado de onde vinha a voz, e disse alto:

 — Pois bem; aceito.

A voz respondeu:

 — Pois pesca ali.

O pescador meteu a tarrafa, e quando tirou vinha se rasgando de peixe. A voz lhe disse:

 — Sábado a estas horas vem me trazer a primeira coisa que hás de ver ao chegares à tua casa.

O homem retirou-se. Ao avistar a sua casa, a primeira coisa que viu foi a sua filha, que, já estando inquieta por causa da sua demora, estava só pondo o olho no caminho, a ver se o descobria. O homem ficou muito triste, e entrou em casa com ar fechado, e atirou o peixe para um lado e não deu nem uma palavra.

A mulher e a filha se admiraram daquilo, e perguntaram qual a razão daquela tristeza. Depois de muito instado, o pescador confessou a verdade. A moça não desanimou e disse:

 — Não tenho medo, meu pai; se vossemecê deu a sua palavra de honra, eu irei.

A moça tinha um cavalo com quem consultava tudo, e foi ter com ele e lhe contou o ocorrido. O cavalo disse:

 — Não tem nada; monte-se em mim no sábado, e faça o que eu vou lhe dizer: quando chegarmos à beira do rio, e depois de seu pai se despedir da senhora, a tal voz, que é de um bicho muito feio, há de dizer "Adeus, siá Maria Gomes!" E a senhora há de responder: "Adeus, seu Sarjatário!" Ele há de dizer: "Muito me admira, siá Maria Gomes, da senhora não me conhecer e por meu nome tratar." Ao que a senhora há de responder: "Oh, seu Sarjatário, muito me admiro do senhor não me conhecer e por meu nome tratar." Ele há de dizer: "Está bom, está bom! Caminhe, caminhe!"  Hão de seguir e passar por umas campinas muito extensas e depois por umas matas muito altas e cerradas de fazer medo. Lá no fim das matas há um grande muro, que tem um portão, e o Sarjatário há de mandar a senhora abrir a porta e entrar adiante. A senhora não caia nessa e diga: "Não, seu Sarjatário, vá o senhor adiante que sabe os quatro cantos de sua casa." Ele há de abrir a porta e entrar; nisso a senhora passe a mão na chave; dê a volta e tranque a porta e deixe o bicho lá preso, e deixe o resto por minha conta.

Assim foi. No dia aprazado, a moça montou no seu cavalo Bufanim e seguiu. Na beira do rio avistou aquele bicho-homem de barbas muito compridas e cabelos enormes da forma de samambaias, e fez tudo que o cavalo lhe ensinou. Depois que fechou o monstro lá dentro do muro, ela partiu no Bufanim, voando como o vento. Depois de muito andarem, e de já não ouvirem mais os urros que o Sarjatário ficou dando, e quando já estavam muito longe, foram dar num reino. Aí o Bufanim aconselhou a moça que se disfarçasse em homem. Assim fez a moça; entrou para a cidade, alugou uma casa e passava por um moço. Tomou muitas relações e tudo quanto fazia era sempre com os conselhos do Bufanim. Passados alguns tempos  — o moço agora não é mais ela, é ele  — foi apresentado ao rei, que era solteiro, por um de seus amigos. O rei gostou muito do moço e sempre o convidava para ir passar dias em palácio. O Bufanim recomendou-lhe todo o cuidado para não ser descoberto. Ora, a mãe do rei começou a dizer ao filho:

 — Aquele teu amigo não é homem, é mulher.

Ao que respondia o rei:

 — Lá vem minha mãe com as histórias dela... Qual, minha mãe! É homem e bem homem!

A rainha respondia:

 — Está bom, vamos para diante.

Um dia a rainha disse ao rei:

 — Meu filho, se tu queres ver se teu amigo é mulher ou não, convida-o para dares com ele um passeio pela cidade, e leva-o aos estabelecimentos de roupas e modas, e hás de ver como ele se há de agradar justamente dos objetos pertencentes às senhoras.

O rei ficou certo de o fazer, e convidou de fato o moço para um passeio, ao que ele acedeu. Foi ter com Bufanim e o cavalo lhe disse:

 — Estamos perdidos!... Agora se descobre o segredo... Enfim, veja bem o que vai fazer: quando entrar nas lojas de roupas e modas com o rei, nunca se agrade de objeto algum de senhora, sempre dos de homem. Quando o rei lhe mostrar um belo vestido, mostre-lhe um bonito corte de calças, e assim por diante.

Assim foi; no dia aprazado para o passeio, o rei percorreu com ele toda a cidade entrando nas lojas mais importantes, e nunca pôde pilhar nada. Largou-se para palácio e disse à velha rainha:

 — Eu não disse, minha mãe? O rapaz é homem e bem homem; não se agradou de objeto algum que não fosse de homem!

A velha respondeu:

 — Isto é de propósito para não ser descoberto; mas ele é mulher; se tu queres ver convida-o para ir dar um passeio nas tuas fazendas com outros teus amigos, e lá convida-o para tomar um banho e hás de ver que ele não há de querer.

O rei convidou o moço para irem um certo dia às fazendas e tomarem um banho, e o moço aceitou.

Foi ter o moço com Bufanim e lhe contou o caso. Bufanim disse:

 — Eh!... Está tudo perdido! Enfim, faça o que eu lhe vou dizer: chegando lá nos tanques do rei não faça cerimônia, vá tirando a sua roupa como os outros; quando a senhora já estiver de ceroulas e camisa eu me solto e entro a dar coices e patadas nos outros cavalos; os criados do rei hão de correr para me pegar, e eu hei de machucar alguns, até que a senhora diga que só a senhora é capaz de me pegar. Corra atrás de mim até ficar cansada e suada e depois queira tomar o banho; o rei, vendo isto, não há de consentir, e assim a senhora escapa do banho.

Assim foi; no dia marcado deu-se tudo tal e qual, e o moço escapou do banho com instâncias do rei. Chegando este a palácio disse:

 — Ora, minha mãe, o rapaz é homem; ia já se pondo nu e queria tomar banho à força apesar de suado.

— Mas suado por que, meu filho?

— Por ter corrido atrás de seu cavalo — disse o rei.

 — Isto é de propósito, respondeu a rainha; se tu queres ver, continuou ela, se ele é mulher ou não, convida-o para vir passar uma noite contigo ajudando-te a copiar a tua correspondência; ele não há de aguentar a noite inteira acordado, e quando ele pegar no sono, desabotoa-lhe a camisa e hás de ver os seios de mulher.

O rei convidou o amigo, para passar uma noite em palácio ajudando a copiar a sua correspondência. O moço consultou com o Bufanim, que lhe respondeu:

 — Desta a senhora não escapa. Enfim faça tudo por não dormir, senão é descoberta com toda a certeza.

Na noite marcada, o moço se apresentou e começou o trabalho. O rei ditava e ele escrevia. Foram indo, foram indo e nada de ninguém dormir. Mas lá para quatro horas da madrugada o moço cochilou e pegou no sono. Aí o rei veio devagarinho e desabotoou-lhe a camisa e pegou nos seios, que ali estavam durinhos e guardadinhos... O rei quando lhes botou a mão em cima foi dizendo:

 — Oh, senhora dona!

Aí apareceu logo a mãe do rei e deu à moça roupas de mulher, e ela, muito envergonhada, pediu muitas desculpas ao rei, que logo a pediu em casamento. Depois de casados o Bufanim conservou-se sempre em poder da moça. Passados alguns meses a nova rainha apareceu pejada e o rei teve que seguir para a guerra, e levou o Bufanim. Na despedida o cavalo disse à rainha:

 — Quando se achar em algum perigo grite por mim três vezes, que eu lhe hei de aparecer.

Depois de estar o rei na guerra já algum tempo, a rainha deu à luz dois meninos, a coisa mais linda que dar-se podia. A velha mãe do rei ficou muito contente, e escreveu ao filho dizendo que sua nora tinha dado à luz dois príncipes, que estavam muito fortes, e eram muito belos, e mandou levar a carta por um soldado, recomendando-lhe muito cuidado. O soldado, por caiporismo, foi, depois de muitos dias de viagem, pernoitar na casa do Sarjatário, que se fingiu de tolo, e perguntou que novidades havia. O soldado lhe contou que não sabia de nada, mas que levava uma carta para o rei. O Sarjatário, quando o soldado pegou no sono, foi à sua mala, tirou a carta, e botou lá outra imitando a letra, e dizendo que a rainha tinha dado à luz dois sapinhos, e que a corte estava coberta de luto. O soldado seguiu viagem e entregou a carta ao rei, que ficou muito aflito, mas mandou em resposta à mãe — que sapinhos ou não, fossem eles muito bem tratados. O soldado seguiu com a resposta, e, ainda por caiporismo, foi pedir rancho na casa do Sarjatário. De novo este monstro foi à mala do soldado e tirou a carta e botou outra no lugar, imitando a letra do rei, e dizendo que a sua mãe mandasse pôr a sua mulher e os dois meninos na Montanha das Feras. O soldado seguiu, e, quando a rainha velha leu a resposta, ficou muito agonizada e mandou reunir os conselheiros para lhe dizerem se devia executar aquela ordem terrível. Todos ficaram muito aflitos, mas responderam que palavra de rei não volta atrás, e por isso devia ser cumprida a ordem. Assim se fez, e a rainha teve de seguir com seus dois filhinhos para a Montanha das Feras. As pessoas que as foram levar, retiraram-se, e a rainha com seus filhos viram-se sozinhos. Mas as feras bravias que ali havia não as ofenderam. Eis que de repente apareceu aos olhos da rainha aquele monstro horrível e medonho, era o Sarjatário!

— Agora vim me vingar, senhora Maria Gomes. Vamos a ver quem pode mais — disse o monstro.

A rainha ficou muito aterrorizada e pediu compaixão, mas o Sarjatário a nada se moveu. A rainha, convencida de que ia morrer, pediu para dar três gritos.

 — Pode dar cem ou mil! —  respondeu o Sarjatário. Então ela gritou:

 — Bufanim, ó Bufanim!

Isto três vezes. No fim do terceiro grito o Bufanim apresentou-se. O Sarjatário, quando o avistou, deu um pulo para o lado, e pôs-se em distância. Então o cavalo disse à moça:

 — Eu vou ter uma grande luta com aquele monstro e vou morrer; mas ele também há de morrer. Eu peço somente que arrume uma grande fogueira e deite nela o corpo do monstro; o meu corpo deixe-o aí ao tempo para os urubus o comerem.

Dito isto atirou-se ao Sarjatário e começou a briga. A luta foi furibunda, e os dois caíram mortos, cada qual para seu lado. A moça fez o que o Bufanim lhe tinha dito, e largou na fogueira o cadáver do Sarjatário e deixou exposto ao ar o do cavalo. Depois de muito chorar, e abraçar o pobre cavalo, ela foi seguindo por uma grande campina que ali havia. Depois de muito andar, avistou muito ao longe uma casa. Ao chegar perto, reconheceu um palácio grande e muito ornado. Entrou e não viu ninguém. À hora de comer viu aparecer uma mesa muito preparada, e ela sentou-se e comeu, aparecendo somente umas mãos que lhe indicavam os objetos, mas sem a moça ver ninguém, nem ouvir falar. Também as mãos apresentavam comida para as criancinhas. À noite apareceram luzes acesas e camas para se deitarem. Assim passou a moça muitos meses, até que o rei, voltando da campanha, e não encontrando a mulher, e sabendo de tudo ficou desesperado, e quis também ir para a Montanha das Feras; viu alguns ossos pelo chão e sinal de fogo, mas reconheceu que não eram ossos de gente humana. Pôs-se a andar pela campina, e seguiu na mesma direção que tinha levado a rainha. No cabo de muito andar foi ter ao mesmo palácio, e avistou uma moça na janela, ao mesmo tempo que um dos meninos, que neste tempo já falavam, gritou:

 — Olhe, mamãe, lá vem papai!

— Ah, quem dera que fosse teu pai!

— É ele mesmo —  respondeu o rei.

Muita foi a alegria e satisfação de todos, que voltaram para a cidade e viveram felizes ainda muitos anos.


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Ano de publicação: 1883
Origem: Pernambuco (Brasil)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

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