quarta-feira, 17 de novembro de 2021

A mãe falsa ao filho (Conto popular brasileiro), de Sílvio Romero


 A MÃE FALSA AO FILHO
 

Havia um homem de força e de coragem, de nome Pedro, que retirou-se para a roça com sua mulher chamada Maria. Foram viver nos ermos, sustentando-se com caças do mato. Lá nos ermos nasceu-lhes um filho que se chamou João. Quando o menino tinha sete anos de idade morreu seu pai. Vendo o rapazinho que a vida dos ermos era rústica, pediu à sua mãe para se retirarem para a cidade, com o que concordou a mãe. Juntaram os seus bens, que consistiam num cavalo, uma espingarda e um facão, e entraram na cidade já pela noitinha. Correu o João toda a cidade e não encontrou ninguém; bateu em todas as portas e ninguém lhe respondeu. Foi ter a um sobrado, que foi o único que achou aberto, entrou, falou e ninguém lhe respondeu. Subiu a escada, correu toda a casa e não viu viva alma. 

Havia um único quarto que estava fechado, estando todos os mais abertos. Então aí se arranchou com sua mãe e passaram a noite. No dia seguinte não viu ninguém na cidade, nem sentiu movimento algum, e, não tendo o que comer, foi para o mato caçar, conforme usava o seu pai. Quando ele estava no mato, apresentou-se à sua mãe no sobrado um gigante, dizendo-lhe que a havia de matar por ter ela se apoderado daquela casa sem a sua licença; mas que, por ser ela mulher, não a mataria com a condição de viverem juntos.

A mulher lhe respondeu que tinha um filho na sua companhia. O gigante lhe disse:

 — O teu filho eu o como.

— O senhor não pode com meu filho.

— Então não é ele um homem?

— Sim, é um homem.

— Como não poderei eu com ele, se pude com todo o povo desta cidade, e acabei com todo ele?

— O senhor não pode com meu filho, que tem muita força.

— Pois se não posso com ele, aqui tens uma boa forma de lhe dar fim: quando ele chegar, tu deves te fingir de doente, gritando com uma dor nos olhos, e que tu sabes que o único remédio que existe para este mal é a banha de uma serpente que há no mato; ora, não podendo ele com a serpente, ela lhe dará cabo da pele.

Chegando o filho da caçada; assim fez a mulher, como lhe ensinou o gigante. O moço então voltou para as matas. No caminho encontrou um velho que lhe perguntou aonde ia. Respondeu que matar a serpente para tirar a banha para deitar nos olhos de sua mãe que estava doente. O velho lhe disse:

 — Não vás lá, que não podes com a serpente.

— Como é para minha mãe, hei de ir, aconteça o que acontecer —  respondeu o mocinho.

O velho lhe disse:

 — Pois vai, que serás feliz.

Foi ele e matou a serpente e tirou a banha. Na volta passou por casa do mesmo velho, que o reteve para jantar. Quando estava o mocinho jantando o velho mandou matar uma galinha e tirar a banha e trocar pela banha da serpente. Assim fez a moça que o velho criava em casa. O João seguiu, e deitou o remédio nos olhos de sua mãe, que não tendo nada, nada sofreu. O gigante, no dia seguinte, ficou admirado, e, estando o João na caça, disse à mulher:

 — É verdade; esse teu filho é homem. Amanhã, quando ele vier, faze o mesmo, e dize-lhe que nestas matas há um porco-espinho, cuja banha é o remédio que te pode servir; ele, que não pode com o porco-espinho, morrerá, e ficaremos livres dele.

Tudo fingiu a mulher, e o filho lá voltou para as matas a matar o porco espinho. Tornou a passar por casa do velho, que lhe fez outra recomendação, a que ele resistiu.

 — Vai, disse o velho, e serás feliz.

Foi e matou o porco-espinho. Tornou a passar por casa do velho que o reteve para jantar. Mandou matar outra galinha e trocou a banha do porco-espinho pela banha da galinha. João seguiu para a cidade e botou a banha nos olhos de sua mãe, que nada tinha. No dia seguinte, indo ele para a caça, apareceu o gigante e ficou ainda mais admirado da valentia do rapaz, e disse à Maria:

 — Agora tu pegas estas cordas, e dize-lhe que ele não é capaz de as arrebentar.

Assim fez a mulher. Chegando o filho, ela lhe disse:

 — Tu és um homem, que nem mesmo teu pai fazia o que tu fazes; mas tu não és capaz de quebrar estas cordas em te enleando com elas.

João aceitou a proposta; a mãe o enleou, e ele forcejou e quebrou as cordas. A mãe lhe disse:

 — És homem como trinta!

João seguiu para a caça no dia seguinte. Veio o gigante, e, sabendo do acontecido, ficou ainda mais pasmado.

 — Amanhã, disse o gigante, dize-lhe que ele não é capaz de quebrar estas correntes.

Assim fez Maria, quando seu filho veio.

 — Isto não, minha mãe, correntes não posso quebrar.

— Tu podes, meu filho, experimenta.

— Vosmecê quer, vamos ver.

A mulher enrolou o filho com as correntes; ele forcejou e não as pôde quebrar. Aí apareceu o gigante armado de um facão e se arrojou ao menino para o matar.

 — Pode matar, disse João, só quero que me cumpra três pedidos que lhe quero fazer.

— Cumprirei vinte, quanto mais três.

Os pedidos de João eram: não quero que faça uso dos objetos que meu pai deixou, nem do cavalo, nem da espingarda, nem do facão; quando me matar não me estrague o corpo e parta-me em cinco partes; bote-me dentro de dois jacás no cavalo com a espingarda e o facão.

Assim cumpriu o gigante. O cavalo seguiu desordenadamente e foi ter à casa do velho. Chegou a moça na janela e, conhecendo que era o cavalo de João, chamou o velho. Este chegou e disse:

 — Minha filha, o que ali vês é João que vem morto dentro dos jacás; traz-me para aqui o cavalo, que quero dar vida ao nosso João.

O velho pediu a banha de serpente, e juntou os diferentes pedaços do corpo de João, que logo sarou.

 — Não sentes coisa alguma, nem te falta nada?, perguntou o velho. Respondeu João:

 — Falta-me a vista.

O velho pediu a banha do porco-espinho, e untou com ela os olhos do rapaz, que logo recobrou a vista.

 — Pega nas tuas armas, disse então o velho, e vai à casa de tua mãe e faz o mesmo ou pior.

João partiu; lá chegando encontrou a mãe dormindo com o gigante; pôs o seu facão nos peitos do monstro e o matou. A mãe se lhe atirou aos pés, pedindo que a não matasse; e ele a fez levantar-se dizendo-lhe que a não ofendia, por ser sua mãe. Voltou à casa do velho, contou-lhe o que tinha feito, salvando sua mãe.

O velho louvou a sua ação, e disse que era o seu anjo da guarda que o tinha vindo defender. Desapareceu, subindo para o céu, e João se casou com a moça que ele tinha criado.


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Ano de publicação: 1883
Origem: Rio de Janeiro (Brasil)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

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