domingo, 5 de dezembro de 2021

O rei de Nápoles (Conto popular), de Teófilo Braga

 

O REI DE NÁPOLES
 

Um rei tinha um filho, e como era o único, queria que ele casasse; mas o príncipe respondia-lhe sempre, que não casaria senão com uma filha do rei de Nápoles se ele tivesse alguma.

O príncipe tratou logo de indagar bem se o rei de Nápoles tinha alguma filha; mas não achava pessoa que lhe desse a certeza. Depois de muitas indagações partiu para Nápoles, e armou-se a deitar um decreto, dizendo que dava esmolas a todos os velhos que quisessem lá ir. Era para ver se algum lhe dava notícias se o rei tinha alguma filha. Todos com quem ele falava lhe diziam que tinham sido nados e criados e que tal coisa nunca tinham ouvido. Indo um dia à esmola a casa do príncipe uma velha, perguntou-lhe se ela sabia do rei ter alguma filha?

Respondeu a velha:

— Oh senhor, eu aqui nasci, e daqui sou, mas nunca ouvi dele ter nenhuma filha. Agora, passando eu o outro dia por uma esquina do palácio, vi de dentro de uma fresta uma cara tão linda, que me pareceu ser de princesa. Mas não posso dar mais certeza.

O príncipe prometeu à velha de lhe pagar bem, se ela descobrisse se era a princesa. Um dia indo a velha pela esquina, viu à fresta a tal cara linda e chamou-a para lhe vir falar. Ela veio; perguntou-lhe a velha se queria comprar joias, que sabia quem as tinha bem boas.

A princesa disse que sim, e combinou a hora em que iriam ter à fresta. A velha foi muito contente dizer tudo ao príncipe, que tinha visto a princesa, que tinha falado com ela, e combinado a hora dele ir com as joias. O príncipe vestiu-se em trajo de adelo, e chegou à esquina a apregoar joias.

Neste tempo ouve uma voz, que vinha da fresta, chamar:

— Oh homem das joias!

O príncipe voltou para trás mui contente, e a princesa disse-lhe que entrasse por aquela escadinha. Assim fez; mostrou-lhe as joias, ela estava satisfeita, e disse depois de escolher:

— Vamos agora ao preço.

— Se a senhora está contente com essas, em casa tenho outras ainda melhores, e trago-as cá amanhã.

Quando chegou a casa a velha aconselhou-o a que vestisse por baixo os seus fatos de príncipe, e por cima com o trajo de vendilhão das joias, para quando chegasse às escadinhas despir-se e falar à princesa como quem era. Assim fez; a princesa quando o viu feito príncipe assustou-se, mas ele expôs-lhe a sua prática e a diligência que tinha feito para chegar àquele lugar, e que o seu sentido era de casar com ela.

A princesa aceitou o pedido, e assentou a hora da noite muito em segredo em que ele a iria buscar, porque o rei seu pai não queria que ela casasse. O príncipe pelo muito grande desejo que tinha de a ir buscar, foi logo de serão para o lugar da escadinha; mas cansado de esperar, encostou o cotovelo sobre a sela do cavalo e pegou a dormir.

Neste tempo passou um homem de meia tigela pelo pé do príncipe, e quis ver se o conhecia; nisto ouviu uma voz que dizia:

— Vamos, vamos, que já está o escaler n’água à nossa espera.

O tal homem viu descer uma donzela muito linda, e pegou nela com toda a riqueza que trazia; meteram-se no escaler e partiram.

O pobre do príncipe ficou ali até amanhecer. Quando acordou julgou que a princesa o tinha enganado, e foi para outra terra, e quando lá chegou começou outra vez a dar esmolas aos pobres, para descobrir por algum se o rei de Nápoles tinha alguma filha.

A princesa, quando amanheceu, que se viu com aquele homem, disse consigo:

— A primeira vista não é vista; mas isto não é o príncipe meu senhor.

O ladrão do homem como a via desgostosa perguntou-lhe:

— Sabe a menina com quem vai?

— Com o príncipe meu senhor.

— Pois saiba que vai com um ladrão.

A princesa começou a chorar, e foram andando, andando e chegaram lá a uma terra chamada das Junqueiras.

Ele varou a lancha, deixou ficar ali a princesa e foi-se embora; havia ali só uma mulher viúva com a sua filha.

A princesa ficou a chorar muito naquele escampado, por se ver sozinha, e tudo isto era de noite. Disse a filha à mãe:

— Estou ouvindo chorar, e parece-me ser mulher.

— Não, filha; isso podem ser os ladrões, para nos enganarem e virem roubar-nos.

Tornou a dizer a filha:

Será o que Deus quiser;
Mas aquele chorar é de mulher.

Foram ambas, e deram com a princesa, que elas não conheciam, e tomaram-na para a sua companhia.

O príncipe continuava a dar esmolas aos pobres, e perguntava a todos se o rei de Nápoles tinha alguma filha. Todos diziam que não, que nunca o tinham ouvido.

Afinal foi lá um velho e fez-lhe esmola, e repetiu a pergunta do costume; o velho respondeu:

— Se o senhor soubesse o que eu passei com ela! sempre se havia de rir um bocado.

O príncipe puxa uma cadeira e senta o velho ao pé de si. O velho contou:

— Eu vinha um dia do jogo das tábulas, e passei pelo palácio do rei; estava lá numa esquina um cavaleiro dormindo, por sinal com um cotovelo na sela do cavalo; fui ao pé dele para ver se o conhecia, e a este tempo ouvi dizer: “Vamos, vamos, que já está o escaler na água à nossa espera.” E foi contando tim-tim por tim-tim o caso do roubo da princesa até a ir deitar na terra das Junqueiras.

Assim que chegou a este ponto, o príncipe não se teve em si, puxa de um punhal e crava-o na cabeça do velho e matou-o. Os outros velhos que estavam ali, gritaram logo:

— Aqui del-rei, que mataram o nosso irmão.

Acudiu logo a justiça para levarem o príncipe para o Limoeiro; chegou o dia em que ia o enforcar, e ele pediu mais uma hora de vida. Chamou um dos homens que ali estava, que fosse ao palácio pedir ao rei um livro de pastas vermelhas, que estava à cabeceira do príncipe. O rei assim que ouviu isto deu-lhe um baque o coração, e conheceu que só o príncipe é que podia fazer aquele pedido. E como já há muitos anos andava ausente do reino, foi ver se seria ele; meteu-se na carruagem e foi ter com ele, e trouxe logo para o palácio o filho, que lhe contou todos os seus trabalhos:

— Agora, meu pai, dê-me licença para ir à terra das Junqueiras buscar a princesa.

O pai mandou aprontar uma das melhores naus, e o príncipe assim que chegou à terra das Junqueiras viu uma casinha, e bateu, e quem lhe veio falar foi a dona. Às perguntas do príncipe, disse que morava ali com duas filhas. O príncipe disse se ela dava licença, que as queria ver. E ela, que não, que não tinham roupinha capaz de aparecerem a sua alteza. Tanto teimou que elas apareceram, e o príncipe logo a conheceu, e disse que ia ali por causa dela, para a levar para o palácio. A princesa disse que estava bem, e que para enganos só bastava uma vez. Ele disse que levaria também para o palácio as suas companheiras, que seriam tratadas como pessoas reais. Foram-se embora e casaram, e ficaram vivendo todos como Deus com os anjos.

 

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Ano de publicação: 1883
Origem: Portugal (Ilha de São Miguel)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

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