domingo, 12 de dezembro de 2021

O lobisomem (Contos de Assombração), Viriato Padilha

 

A VISÃO DE VIEGAS

Arnaldo Viegas cursava o terceiro ano do curso jurídico de São Paulo. Havia seis que estava matriculado na academia.

Indolente e de pouca atilação às ciências, se distinguia somente entre os companheiros pela supina ignorância da ciência jurídica e atrevimento das graçolas aos lentes, mesmo os mais sisudos e ríspidos.

Se em direito Arnaldo Viegas, era profano, sabia de cor quase todos os poemas de Byron e Musset, cujos livros tinha como bíblia ou alcorão, mas sem fraternizar espiritualmente com as grandezas e sublimidades daquelas almas alucinadas pelo belo e amor.

Viegas os apreciava unicamente por ver que esses grandes poetas, na extravagância de seus gênios, se compraziam de exaltar o vício e deprimir a virtude. Nisso achava desculpa às desordens de sua vida, desordens baixas, sem intermitência de hora de labor honesto nem manifestação fulgurante de talento.

Viegas era bêbedo como um marinheiro em terra. Jogava toda a sorte de jogo, fazia ostentação em entrar nas mais sórdidas espeluncas e, finalmente, era um consumado devasso, mais por perversidade e amor-próprio do que por impulso do temperamento.

Sua conversa, quando não discorria sobre os paradoxos brilhantes de Byron e Musset, versava unicamente nas boas peças que pregava aos burgueses, nos calotes que passava ao alfaiate e ao sapateiro, nas mulheres casadas que seduzia, nas donzelas que lhe ofereciam a virgindade.

Embora muito dissoluto, é escusado dizer que a maior parte dessas façanhas eram puras invenções suas. A pretensão que tinha porém de as fazer passar por verídicas, demonstra perfeitamente o depravado fundo de seu caráter.

Todavia Viegas figurava como torpe protagonista de algumas aventuras amorosas, e é duma delas que trataremos.

*** 

No tempo de que nos ocupamos, existia na rua São Bento, em São Paulo, um velho armarinheiro italiano, Pascoal Landini, que, a suas funções comerciais de mercador de alfinete, grampo e agulha, reunia as de armador de igreja em ocasião de festividade religiosa e fabricante de caixão e mortalha pra defunto.

Pascoal Landini era um velhinho magro, baixo, de barba muito alva e pontiaguda, e sempre o viam em sua pequena loja, toucado com um barrete de veludo azul com borla preta, e óculos de aro de tartaruga, perfeitamente redondos e grandes. Contudo, o que mais chamava a atenção, na lojinha da rua São Bento, não era seu proprietário nem os acessórios de seu vestuário, e sim uma criatura de beleza incomparável e suave, Maria Annunziata, a filha do velho Pascoal, sempre costurando, sentada no fundo da loja.

Toda a estudantada desse tempo, calouros e veteranos, conhecia a loja de Pascoal por causa da bela costureira. Pelo interesse de lhe lançar uma olhadela amorosa, aliás nunca correspondida, iam frequentemente ao negócio de Pascoal se abastecer de pena, lápis, papel e tinta. Nas repúblicas se falava muito a miúdo na formosura de Annunziata, e muito estudante fechava, às vezes aborrecido, o Digesto ou o Corpus juri, pra abrir a Arte de metrificação, de Castilho, e fabricar versos em sua honra.

Todavia até aquela data nenhum se lambera com seu sorriso. Annunziata parecia insensível aos olhares de fogo que a trêfega mocidade acadêmica lhe lançava, ao se dirigir à escola, e até aos sonetos que os mais brejeiros lhe atiravam num papel dobrado em laçarote, aproveitando descuido do velho Landini.

Ora, aconteceu um dia morrer um estudante do segundo ano de direito, e tendo os rapazes resolvido lhe fazer o enterro, por ser o colega paupérrimo, comissionaram Arnaldo Viegas pra tratar da encomenda do ataúde e da mortalha.

Arnaldo se dirigiu à casa do velho Pascoal pra desempenhar seu fúnebre encargo, e depois de lançar uma olhadela de fogo a Maria Annunziata, que parecia uma daquelas suaves madonas dos pintores da renascença, ensarilhada no fundo da loja do armarinheiro, se dirigiu ao velho nestes termos:

— Bom dia, senhor Pascoal. Venho fazer a encomenda dum caixão e duma mortalha para um colega que morreu.

— Molto bene, respondeu o italiano, em sua língua, pois não falava português.

E tomando uma fita métrica, perguntou a Viegas:

— La medida del suo amico!

— Que medida?!

— La misura per fare il cagione.

— Ora bolas! Nem disso me lembrei.

— Dunque! Come fare io, senza la misura? Andate a me portar la, signor.

— Não é preciso senhor Pascoal. Meu colega era exatamente de minha altura. Tomes a medida do caixão por mim.

O italiano, que, como quase todos os seus patrícios, era profundamente supersticioso, fez um gesto de espanto, ao lhe ser proposto tal alvitre, e exclamou:

— Per Dio Santo! Ecco un cattivo pensamento. Prendere la misura di un morto sopra di voi! Questa non si fa, signor, sarebbe funesto per voi.

A bela Annunziata, ao ouvir as palavras do estudante, fez igualmente um gesto de horror, e, na primeira vez nesta cena, levantou os olhos da costura. Se aproveitou logo disto Viegas prá envolver num longo olhar sensual, ao mesmo tempo que repetia a mestre Pascoal.

— Tomes a medida, mestre Pascoal. Não acredito em agouro.

Annunziata, ao ver essa insistência, não pôde se conter. Parecia se interessar pelo estudante:

— Oh! non lo permettete, signor! Questo porta disgrazia!

Arnaldo Viegas ficou radiante e cheio de si. Quis se ostentar aos olhos da moça homem superior, despido de superstição. Assim, exclamou, confiando o bigode negro:

— Não vos incomodeis, bela signorita. Deixes que mestre Pascoal tome a medida. O que aos demais acarreta desgraça, pra mim talvez seja a chave da felicidade.

E tornou a dardejar uma chispa de seu olhar atrevido sobre a formosa italiana, que, enrubescendo, se inclinou sobre a costura, apenas pronunciando um simples ó!.

Mestre Pascoal, porém, encolhendo os ombros fleumaticamente, assim como quem queria significar que não era responsável pelo que acontecesse, disse, endireitando os óculos redondos de aro de tartaruga:

— Sia fatta la sua volontà!

Ao mesmo tempo que desenrolava a fita métrica, fazia com que o rapaz comprimisse a fivela da mesma na fronte e a corria até os pés.

Em seguida se levantou com os dedos fixos na marca, e lendo a numeração da fita exclamou:

— Due metri e dieci centimetri. Per la madonna! — Acrescentou, tirando o barretinho e saudando Viegas em ar de troça — Voi siete un signor defunto!

Apesar de muito encouraçado contra agouro, Viegas estremeceu com a frase de mestre Pascoal. Mas, ao ouvir Annunziata abafar um gritinho, também impressionada com o gracejo fúnebre do pai, logo suas ideias tomaram outro rumo. Compreendeu que a sedutora virgem da rua São Bento estava se interessando muito por ele, e isso o encheu de prazer.

Efetivamente, atraída por estranho ímã, Annunziata, logo no primeiro momento em que os olhos pousaram sobre Viegas, se sentiu simpatizada por ele.

Arnaldo pagou a conta e se despediu. Da porta lançou um último olhar a Annunziata e ela o mimoseou com um gracioso sorriso.

Viegas não cabia em si de contente. Que conquista de mão cheia faria! Como toda a estudantada não se encheria de inveja e despeito o vendo na posse inteira da rafaelesca virgem da rua São Bento?! Aquele sorriso era a porta aberta a todas suas ousadias, e não seria quem deixaria de entrar nela.

***

Assim, animado por esse sorriso que lhe prometia tanta fartura de gozo e volúpia, Arnaldo Viegas começou a frequentar a loja de Pascoal Landini, cuja confiança e amizade soube captar em pouco tempo, pois o velho italiano era homem muito simples e de extrema boa-fé.

Duas semanas depois que teve lugar a cena acima descrita, já Viegas tomava parte no macarrão e no vinho de Chianti do modesto lar do armarinheiro, e dali a duas outras semanas era completamente senhor do coração e da vontade de Annunziata, que subjugara desde o dia da encomenda do caixão.

Sem o sentir, a bela jovem Annunziata ficou perdidamente enamorada do devasso estudante, e logo Viegas cogitou os meios de poluir aquela cândida criança, que com tanto abandono e simpleza lhe ofertava seu primeiro e virginal amor.

Se aproveitando duma ausência de Pascoal, que foi obrigado a se dirigir ao Rio de Janeiro a fim de fazer sortimento pra sua loja, se intrometeu na lar do honrado lojista onde Annunziata ficara, apenas cuma criada já velha.

Annunziata o amava muito já, pra poder resistir. Viegas se lhe atirou com toda a lubricidade de seus desejos e a profanou.

Pouco depois alugou um quartinho na rua que dava fundo à casa do italiano e todas as noites se metia no quarto da moça, que cada vez o adorava mais.

Durante dois meses Viegas foi assíduo junto da amante, porém decorrido esse tempo começou a se enfastiar dela, principalmente por ter percebido que ela estava grávida. Aquele infame era incapaz de sentimento nobre. Resolveu a abandonar.

Se mudou de residência e nunca mais a procurou.

Não conseguira o intento? Não alcançara transformar em impura Madalena a bela e recatada virgem que toda a academia adorava? Agora lhe convinha demonstrar superioridade, pra que não parecesse qualquer burguês. Partiria a taça na qual sorvera o mais suave filtro.

***

Annunziata se cobriu de mágoa com o súbito abandono do pérfido amante.

Lhe escreveu diversas vezes e não obteve resposta. A ralavam os desgostos, começou a compreender que fora traída, até que afinal, amiudando mais as cartas ao celerado, que, com o maior cinismo, mandou dizer verbalmente por um moleque não o apoquentar mais com cartas e choradeiras, que andava muito preocupado com seus estudos e exames pra perder tempo em responder a lamúria de mulheres histéricas, e, finalmente, que não fosse tola em insistir pra a pedir em casamento, pois ela bem devia compreender que um rapaz de sua posição e futuro não era pra casar com a filha dum armarinheiro, um reles burguês fazedor de caixão de defunto.

Tanto cinismo e brutalidade partiram uma a uma todas as cordas da alma da bela italiana. Seu débil corpo não pôde resistir a tão duro golpe. Intensa febre a levou ao leito donde só saiu alguns dias depois, pra ser levada ao cemitério. Seu pobre coração estalara de dor, e ao se partir lhe levara a existência.

***

O velho Pascoal Landini se sentiu ferido profundamente em suas vivas e únicas afeições com a morte de sua dileta Maria Annunziata, retrato vivo da esposa que perdera havia anos.

Desde o dia em que a gentil criatura cerrou os olhos à luz do mundo, nunca mais abriu o armarinho. Ficou taciturno em extremo, evitava falar com as pessoas de seu conhecimento, e passava a maior parte do dia encerrado no pequeno quarto onde dormia e onde lhe morrera a filha adorada, e cujos móveis e roupas conservava na mesma desordem e desalinho em que ficaram naquele dia tão angustioso pra seu pobre e velho coração.

À rua apenas saía pra dirigir a construção dum artístico mausoléu que mandara erigir no túmulo da filha, e no dia seguinte àquele em que se ultimara a obra, o encontraram morto no quarto de Annunziata.

Feita a autópsia, verificaram os médicos que o infeliz ingerira uma forte dose de arsênico.

***

Esses dolorosos acontecimentos que tanto emocionaram os lojistas e fabricantes da rua São Bento, pois Landini e a filha eram geralmente estimados, não impressionaram o cínico que cavara aquelas duas sepulturas precoces.

Arnaldo Viegas continuava em sua vida de dissipação, como outrora, e no íntimo se alegrava até que a morte o tirasse de certos embaraços sociais pra com a infeliz, cuja virgindade profanara.

Pouco depois entrava em exame e por casualidade era aprovado com a nota simples.

O pretensioso ignorantão se rejubilou com esse mesquinho triunfo escolar, e tendo naquele dia recebido a gorda mesada que a prodigalidade paterna lhe dispensava, resolveu festejar com uma lauta ceia oferecida aos amigos, no Corvo, a célebre taberna paulista da rapaziada acadêmica de outrora.

Eram 11 horas da noite. Reinava a mais expansiva alegria em todos os convivas, pois já algumas dúzias de garrafas foram despejadas. Quando Arnaldo Viegas, que estava na cabeceira da mesa, se ergueu um tanto ébrio e, empunhando uma taça transbordante de vinho Madeira, exclamou:

— Meus senhores, levantarei o brinde de honra a nosso banquete. Sobre ele todas as taças se quebrarão!

— Muito bem! Muito bem! — Responderam todos, enchendo os copos.

— É um brinde de respeito, meus senhores! Bebo à memória da moça mais formosa que meus lábios beijaram nos espasmos do prazer! Bebo, senhores, ao perfeito apodrecimento da que foi outrora a mais perfumada e deliciosa das carnes! Bebo à memória de Maria An... An... An...

Não pôde terminar o nome angélico daquela cuja cinza queria profanar numa orgia.

Seus olhos se fixaram de repente num ângulo da enfumaçada sala da taberna acadêmica. E o corpo principiou a tremer, caindo o copo das mãos.

Os companheiros se voltaram imediatamente ao canto onde se dirigira o olhar apavorado de Viegas mas nada viram.

Arnaldo, no entanto, ia ficando pálido, os lábios se abriam denotando a maior estupefação, e os dedos se crispavam, como se fosse preza de horrível pesadelo.

Efetivamente surgia pra Arnaldo uma Visão medonha, pavorosa. Naquele momento de final de orgia, viu sair do canto da sala um fantasma, o finado Pascoal Landini, de barrete azul, óculos redondos de aro de tartaruga e fita métrica em punho. A terrível visão se aproximou do libertino, que quis gritar sem poder, não encontrando som na garganta.

Os companheiros observavam espantados e silenciosos. Então Viegas viu o fantasma de Pascoal desenrolar a fita, o obrigar a comprimir a fivela à fronte onde um suor frio deslizava, a correr até os pés, e depois se erguer, endireitar os óculos pra ler a numeração, e exclamar:

— Due metri e dieci centimetri!

E, exatamente como outrora, no dia em que fora tratar do enterro do colega, tirar o barretinho e à guisa de cumprimento trocista, acrescentar:

— Per la madonna, voi siete un signor defunto!

Viegas não pôde suportar mais aquele martírio. Reunindo toda força que tinha, articulou um grande grito e rolou, inanimado, no assoalho da taberna.

***

Tornando a si do delíquio, sua primeira pergunta foi saber dos companheiros se viram a alma do velho Pascoal lhe tomar a medida pro caixão.

Ninguém vira algo. Disse um colega:

— Foi o vinho Madeira que te subiu aos miolos.

— Proferiste um conto digno de Hoffman ou de nosso Álvares de Azevedo. — Disse outro.

— Ora, graças que temos um macbete na academia! Mas acho Banquo um tanto burguês. — Acrescentou ainda outro.

— Senhores, — exclamou Viegas, todo trêmulo ainda e com palidez mortífera — Vi nesse momento o velho Landini se chegar a mim e me tirar a medida pro caixão, exatamente como no dia em que consigo tratei do enterro de Deodato. Vi, senhores, não foi efeito do vinho nem é conto que quero impingir. Vi o velho Landini!

***

Dessa noite a diante a razão foi desaparecendo aos poucos do atribulado cérebro de Arnaldo Viegas.

Cessou o estudo, se afundou cegamente na bebida e dentro dalgum tempo estava completamente idiota.

Sem intervalo lhe surgia na mente confusa a temerosa visão, o eterno mestre Landini tirando a medida ao caixão. Nos ouvidos zumbia constantemente o terrível gracejo do armarinheiro:

— Due metri e dieci centimetri! Per la madonna voi siete un signor defunto!

Em estado de completo idiotismo vagou durante algumas semanas na rua São Bento, roto, esfrangalhado, sórdido, até que afinal a família mandou o recolher e o meteu no hospício do Rio de Janeiro.

No fim de alguns meses o corpo foi sepultado. 

 

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Ano de publicação: 1925.
Origem: Brasil (Nordeste)

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