domingo, 12 de dezembro de 2021

A casa mal-assombrada (Contos do Folclore), Viriato Padilha

 

A CASA MAL-ASSOMBRADA

Dum momento a outro o alferes de milícia de Vila Rica, João Rufino, se apresentou cheio de dinheiro naquelas Minas, bem enroupado, melhor montado, com armas garantidas e fazendo gastos tão em desacordo com a sua anterior pobreza, que punha toda gente de boca aberta.

Onde desentranhara dinheiro? Herança não recebera, pois bem conhecida era toda sua família, paupérrima. No jogo também não era possível, pois nunca o viram com semelhante defeito. Pra se dizer que passara algum contrabando de ouro ou diamante, também não se podia admitir, pois João Rufino na verdade era um indivíduo muito alegre e folgazão, porém de conduta irrepreensível.

O certo foi que os pacatos mineiros não atinaram com aquele mistério, e João Rufino continuava a os assombrar com suas incomparáveis despesas.

No entanto o dinheiro de João Rufino, a acreditar na lenda que se encarregara de divulgar, viera em bom caminho. E assim, depois de se ter divertido durante algum tempo com a curiosidade dos patrícios, deliberou contar tudo, escolhendo pra isso uma noite em que dava a caiar a diversos amigos.

***

Estavam seus convivas na sobremesa, tendo já devorado uma excelente canja feita de três galinhas que rachavam de gordas, uma bem tostada leitoa e outras coisas suculentas, tudo regado com excelente vinho, quando João Rufino, se dirigindo a eles, falou assim:

— Senhores, reservo uma surpresa pra rematar esta modesta ceia. Em geral meus amigos e conhecidos e quase a população de Vila Rica se admiram de minha rápida fortuna e sobre ela fazem os mais variados comentários. Em verdade é pra merecer reparo uma transformação tão rápida, e por isso não podiam me espantar, por mais extravagantes que fossem, mesmo quando fossem lesivos a minha reputação. E, se até esta data não vos fiz sabedor do que me sucedeu, é porque há coisas tão espantosas que a mente se recusa as acreditar. Todavia não tenho o direito de prolongar mais tempo vossa justa ansiedade, e hoje informarei sobre os extraordinários acontecimentos que me conduziram à opulência.

Este exórdio de revelação encheu os convivas da maior satisfação, pois a curiosidade era geral e rumores aprobativos se fizeram ouvir em toda a mesa.

João Rufino, então, passando os convidados a outra sala, onde fez servir perfumoso café, narrou sua aventura no meio da mais circunspecta atenção:

— Senhores, a fortuna que hoje desfruto chegou a mim em via honesta. E se é certo que não a alcancei via trabalho e rigorosa economia, durante longos anos, no entanto a devo minha coragem e, por conseguinte, é com toda a justiça que a gozo.

Sabeis perfeitamente que em dezembro do ano passado, isto é, há quatro meses, fui encarregado pelo comandante de meu regimento de milícia a ir ao Rio de Janeiro comprar fardamento prà tropa e arreio pra nossa cavalhada. Parti daqui na antevéspera de Natal, e no dia de Reis já estava muito além de Matias Barbosa, apesar do péssimo estado dos caminhos. Nunca fizera tal viagem, e assim era fácil me desviar da verdadeira estrada. Foi o que me aconteceu.

Pouco adiante de Matias Barbosa, deixei o verdadeiro caminho à direita e tomei a esquerda. Nele andei cerca de três horas e já anoitecia sem encontrar pouso, quando deparei alguns viajantes que vinham a Matias. Disseram que eu estava errado mas que não me era preciso voltar atrás pra ganhar a estrada. Dali a 6km existia um caminho à direita que desembocaria na referida estrada. Me informando mais se existia alguma casa que me servisse de pouso, responderam que a primeira pousada era a mais de 16km. Em todo esse percurso só havia uma casa, completamente isolada, onde ninguém pernoitava por ser considerada mal-assombrada.

Voltar a Matias com os viajantes não me era possível. Retroceder ao ponto em que errara o caminho nada adiantava. Assim só me cumpria prosseguir na direção que levava.

Então perguntei em que consistia a assombração da única casa que ficava na beira da estrada. Disseram que ali vivera um indivíduo extremamente avarento e que desde o dia de sua morte alguns viajantes perdidos, que por acaso pernoitavam em sua habitação, ouviam na noite ruídos estranhos: Arrastar de corrente, som de passo nas salas e eram visitados por visões assombrosas.

Agradeci aos viajantes todas essas informações, e me despedi, disposto a viajar toda a noite a fim de reganhar a estrada real.

Caminhando, pensava no mistério da casa mal-assombrada, no qual, pra dizer com franqueza, pouco acreditava.

O sol entrava na agonia sanguinolenta do ocaso. Já nos pontos em que o caminho serpenteava sob moitas se sentia a invasão das sombras crepusculares, e os insetos noturnos davam os primeiros chilros prenunciadores da grande harmonia da noite, quando senti que meu cavalo começava a se ganhar de suor frio, e da andadura ia pouco a pouco descambando ao passo pesado. E essa?! O pobre bicho ia afrouxando, e naquele andar não deitaria mais de 2km. Conheceis perfeitamente meu tordilho. Não? Era um animal valente, mas desde Vila Rica eu o puxava em marchas diárias de 24km, e naquele dia já vencera 28km. Não era, pois, de admirar que o pobre animal desse de si.

Isso me contrariou extraordinariamente mas a caminhando.

Dali a um quarto de hora cheguei à porteira dum largo pasto todo gramado, em cujo centro existia uma grande casa silenciosa. Era a casa mal-assombrada! Não uma voz humana, latir dum cão nem o pio duma ave doméstica! Tudo parecia morto ali!

O sol acabava de sumir atrás das grimpas da Mantiqueira e a noite se aproximou.

Comecei a pensar: Meu cavalo estava quase frouxo. Avançar mais seria me arriscar a estragar o animal, sem adiantar. Ali, ao contrário, estava um bom pasto pro pobre bruto, e uma casa que me daria guarida durante a noite. Por que, pois, desprezar tão providencial comodidade, somente com medo de fantasmas, coisas naturalmente criadas pela imaginação do vulgo ignorante e supersticioso?

Nunca fui medroso, graças-a-deus! Me dispus, pois, a passar a noite ali mesmo. Estava bem armado. O que podia, temer?!

Tomada essa deliberação, abri resolutamente a porteira e penetrei no pasto. A porteira rangeu no enorme gonzo e se fechou em seguida, esbarrando com força no batente de cabiúna. Logo após ouvi um grande gemido, muito prolongado e alto, partido não sei donde mas que me produziu um arrepio em todo o corpo. Meu cavalo espetou as orelhas e estacou nas patas dianteiras, mas não esmoreci. Quando tomo uma resolução tenho costume de a levar até o fim, custe o que custar.

Assim dei uma chibatada no animal e o orientei à casa.

Antes de chegar ao terreiro era preciso transpor a porteira dum curral. A abri e, exatamente como sucedeu com a primeira, logo se fez ouvir outro gemido, mais soturno e ainda mais prolongado que o anterior. O cabelo tornou a se arrepiar e o cavalo bufou. Não me importei. Me apeei e tratei de tirar a sela do pobre animal, pois queria passar minuciosa revista na casa, antes de anoitecer de todo.

Fiz isso. Depois de soltar o bicho no pasto, carreguei os arreios nos braços, e subi com eles a escada duma varanda já um tanto carcomida que havia na frente da casa e penetrei na primeira sala da habitação, cujas janelas e portas estavam abertas de par a par. Mal apenas coloquei o pé na soleira da porta, outro gemido, ainda mais lúgubre e duradouro que os outros, se fez ouvir, e parecia tão lancinante, tão magoado, que bem contra a vontade senti o sangue me esfriar no corpo e os arreios caíram das mãos trêmulas! Meu tordilho, que já então se espojava satisfeito no pasto, ao ouvir essa coisa medonha, se ergueu com um salto, e disparou, dando a prova mais cabal de se haver também assustado.

Todavia eu tinha que dormir naquela habitação, mal-assombrada ou não; fizera tal propósito e nada me demoveria. Por isso tirei dos coldres as pistolas e, me enchendo de ânimo, devassei toda a casa, atravessando salas, quartos, corredores e nada encontrei. Tudo estava silencioso! Quando voltava, porém, a diante da habitação, vi num dos cantos da primeira sala um frango pelado, de pernas muito compridas, que ali procurava se aninhar, como se tivesse aquele costume.

Me admirei ver aquela ave, pois quando atravessara em primeira vez a sala não a percebi. Contudo não me preocupei durante muito tempo. Seria, pensei, algum pinto perdido por qualquer pombeiro, e que entrara enquanto me ocupava em revistar a casa.

*** 

Devia ser isso, nem podia ser outra coisa. Quanto aos gemidos, não os regougam tão tétricos as corujas grandes? Conduzi a dentro da sala os arreios. Tirei dum picuá o resto de meu almoço, comi tranquilamente e, estendendo a manta, o bairetro e o capote, fiz deles um leito onde me deitei, confiante em Deus e em minha coragem, tendo antes posto a alcance das mãos as pistolas e meu facão de viagem.

Me deitei mas não adormeci, embora estivesse bastante cansado. A contragosto rolavam no cérebro coisas fantásticas e, à medida que a noite se adiantava, cada vez mais me visitavam tais pensamentos.

Devia de ser mais de 11:30h e ainda eu acordado, quando pouco a pouco vi a sala ir se enchendo duma claridade dúbia, quase insensível no começo, mas que mais e mais aumentava. Não podia perceber donde vinha essa luz estranha, amarelada, lívida, pois não era noite de luar.

Tanto cresceu a claridade, que a sala ficou toda iluminada, e então presenciei uma cena da qual nunca mais me lembrarei sem que me arrepiar a carne.

O pinto magro, pelado, que dormia no canto da sala, saiu ao centro. Batendo asas e suspendendo o pescoço, cantou destoado, com um esganiçar irritante, pronunciando estas palavras, que ouvi arrepiado de pavor:

— É meia-noite. Não vens hoje?

E se recolheu ao canto.

Imediatamente do teto da casa partiu uma voz assombrosa, que gritava:

— Gaspar, eu caio!

O pinto, lá em seu canto, respondeu:

— Não caias!

A voz tornou a gritar:

— Gaspar, eu caio!

E o pinto outra vez respondeu:

— Não caias.

Ainda uma terceira vez a voz falou:

— Gaspar, eu caio!

E eu, cheio de impaciência e ao mesmo tempo apavorado com o que estava presenciando, exclamei:

— Pois, caias!

Mal proferira tal frase, quando vi se despenhar do teto da casa um braço humano e cair no meio da sala com um ruído abafado.

Meu coração batia de modo que parecia querer estalar. Um suor frio inundava a fronte, e em primeira vez na vida tive medo deveras.

Dali a alguns minutos a voz tornou a gritar:

— Gaspar, eu caio!

De novo o pinto pelado se esganiçou e suspendendo o pescoço repetiu:

— Não caias.

Em segunda vez a voz falou:

— Gaspar, eu caio!

Na terceira, eu berrei:

— Pois caias!

Caiu outro braço.

A mesma cena se repetiu quatro vezes. E eu, vencendo o pavor sentia, da mais viva curiosidade pelo desenlace daquela comédia horrenda, ia mandando que caísse.

Assim, caiu primeiramente junto aos dois braços uma perna, depois outra, em seguida o tronco e finalmente uma cabeça, que, mal chegou ao assoalho, se reuniu aos diversos pedaços. E surgiu a minha vista um fantasma envolto num longo sudário negro e com os braços cruzados sobre o peito!

O medo que tal aparição me causou não se pode descrever com palavras. São dessas coisas que se sentem mas não se definem. No entanto tive força pra empunhar meu facão de viagem e ficar logo em guarda, esperando um ataque. Mas o espectro, estendendo a mim um longo braço descarnado, pronunciou estas palavras com voz sepulcral:

— Nada temas, viandante. Não pretendo te fazer mal. Tua coragem me salvou.

Então balbuciei:

— Quem és?

E a aparição respondeu:

A alma-penada dum miserável avarento que desde o dia que deixou os vivos vagueia errante em consequência da misérrima paixão que tanto o atormentou em vida. Fui rico e levando meu amor ao ouro até a hora da morte enterrei grande quantidade no pasto desta casa. Foi minha perdição. Minha Alma está presa a este sítio e não se apartará enquanto o dinheiro lá se conservar. Tu tiveste coragem de afrontar o assombro desta habitação. Farei tua fortuna se me libertares deste fadário. Quando o dia romper irás a porteira do pasto, e na direção de quatro braças ao nascente do batente da mesma porteira cavarás até a profundidade de quatro palmos. Ali encontrarás um cofre com moedas de ouro em boa espécie. O tomes e mandes dizer sete missas pela alma do finado Gaspar na igreja que quiseres.

E ao dizer estas últimas palavras tudo desapareceu: Fantasma, pinto pelado, luz amarela e tudo.

Meus nervos não podiam suportar a furiosa tensão a que os forçara: Afrouxaram repentinamente, e eu, caindo prostrado no leito improvisado, adormeci de sono pesado, sem sonho, que se prolongou até as 7h da manhã do outro dia.

Logo que acordei, pouco me lembrava das terríveis cenas da noite. Mas pouco a pouco foram chegando à memória, e comecei a pensar se tudo aquilo seria um delírio de minha imaginação escandecida pela narração dos viajantes e pelo desolado aspecto da habitação.

Todavia procurei uma enxada que logo encontrei no porão da casa e fui à porteira do pasto. Ali chegado, medi quatro braças ao nascente do batente e comecei a cavar.

Meu cavalo, que pastava tranquilamente a poucos passos distante de mim, levantou a cabeça e começou a me encarar. E eu ria comigo, pensando que talvez estivesse representando um papel tão ridículo que até o próprio cavalo se admirava.

Contudo continuava a cavar, e numa das enxadadas senti que o ferro batera noutro ferro. Meu espírito se alvoroçou com isso. Amiudei as pancadas e logo ficou a descoberto um cofre de ferro, tendo encima um grande argolão. O puxei e o cofre saiu. Estava descoberto o tesouro?

Corri imediatamente os fechos da peça e a escancarando fiquei diante dum monte de belas e reluzentes moedas de ouro. As introduzi no picuá e no capote e segui a desempenhar minha comissão no Rio de Janeiro.

Eis, senhores, como do dia à noite fiquei rico. Devo esta ventura a minha coragem e sangue-frio.

*** 

Em Vila Rica doravante nunca mais se falou sobre a fortuna do alferes João Rufino. Pois não era tão natural que encontrasse um tesouro enterrado?


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Ano de publicação: 1925.
Origem: Brasil (Nordeste)

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