domingo, 12 de dezembro de 2021

O lobisomem (Contos do Folclore), Viriato Padilha

 

O LOBISOMEM 

Viajava eu numa dessas estradas de serra abaixo, tão incômodas pelos constantes lameiros e pântanos, nos quais os cavalos se enterram, às vezes até o peito.

Descambava o sol ao ocaso e já me sentia enfadado com a monotonia da paisagem, baixa, uniforme, apresentando sempre os mesmos mangues de vegetação arcaica que recordam a de épocas geológicas decorridas, a mesma pobreza de cultura, os mesmos ranchos de sapê atufados na capoeira e com um magote de crianças magras e lambuzadas à porta.

Meu camarada (é o nome que se dá ao criado que acompanha o viajante e trata dos animais) nascera ali mesmo, em Iguaçu ou Itaguaí. Conhecia a palmo as paragens que atravessávamos, e de vez em quando me esclarecia sobre aquela insípida região, me prestando informações interessantes acerca dos bípedes que ali viviam.

Cândido era o nome de meu camarada, que também acudia ao chamado de Bigode, alcunha que lhe puseram.

Era um mulato de testa estreita, olhos apertados, com falta de dente na frente da boca e magro. Não sabia ler nem escrever mas fizera muitas viagens no interior dos estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, e nelas adquirira certo traquejo da vida. Era, sobretudo, muito loquaz, dessa loquacidade da gente do povo, pouco embaraçada no emprego das frases, rústica, desataviada, porém viva e muitas vezes originalíssima pelo emprego de imagens e conceitos interessantes. Era, em suma, um excelente companheiro de viagem.

Caminhando chegamos a uma pequena mas bem construída casa que estava em completo abandono. A casa estava rente à estrada e tudo indicava que ali ninguém residia haveria já anos. Uma das janelas da sala da frente fora arrancada e estava a terra. O vento levara algumas telhas e abundante vegetação invadia o pequeno terreiro e cobria os três degraus que conduziam à porta principal da habitação. Aos lados se via uma engenhoca de moer cana e uma roda de farinha, porém tudo desaparecendo quase sob as tiriricas e outras ciperáceas, bem como se abafando sob as longas espatas desprendidas de velho coqueiro indaiá.

Me causou admiração ver em tal estado de abandono uma morada que parecia oferecer regular conforto, quando no entanto miseráveis palhoças, esburacadas e mal cobertas, estavam atulhadas de gente. Nesse sentido dirigi uma pergunta a meu pajem:

— Senhor Bigode, por quê se vê em tão lastimável abandono esta excelente casa?

— Ê!, patrão. — Bigode parecia ter esperado esta natural interrogação — Essa é a casa do lobisomem. É muito conhecida. Até já saiu nas folhas do Rio. Depois que o lobisomem desapareceu ninguém mais quis morar aqui. No entanto é pena, pois em toda esta redondeza não há uma casa tão boa nem terras que dêem melhor mandioca e melhor cana. Mas o que quer vosmecê? Quando o povo cisma com qualquer coisa, se acabou. Nada há que lha tire da cabeça.

— Então, senhor Bigode, esta casa pertenceu a um lobisomem?

— Sim, senhor. Um lobisomem, e daqueles verdadeiros mesmo. Foi desencantado por Juca Bembém, que era camarada do velho Moura. Eu conhecia Juca muito bem. Prum pé-de-viola não havia outro.

— E há mesmo lobisomem?, senhor Bigode.

— Ê!, patrão! — Exclamou o caipira, como admirado de minha crassa ignorância ou estúpida incredulidade — Pois vosmecê inda pergunta? Há lobisomens e de muitas qualidades. Eu mesmo, que aqui estou, já tenho topado com eles nas sextas-feiras, mas comigo nada podem. Trago no pescoço uma oração que é mesmo um porrete bendito pra tudo quanto é coisa má. Ora, patrão, vosmecê perguntar se há mesmo lobisomem?! Toda mulher que tiver sete filhos machos, pode ter certeza que um vira lobisomem. E, sendo sete meninas uma, mais cedo ou mais tarde, vira bruxa. O lobisomem, patrão, é o dízimo do Diabo.

Diante de definição tão explícita seria impossível continuar duvidando da existência do lobisomem. Me envergonhei até da incerteza na qual estava acerca da realidade de personagem de existência tão comprovada, então pedi a Bigode contar a história do lobisomem que outrora habitara a casa de cujo abandono agora me admirava.

Afinal descobrira o meio de dissipar o tédio duma viagem em sítios tão sem perspectiva e mais que monótona paisagem.

A história é mais ou menos a que os leitores lerão.

*** 

Senhor Basílio de Moura era um lavradorzinho remediado e com alguns casais de filhos, todos já afamiliados. Apenas restava na casa paterna a caçula, dona Cecília, moça regularmente bonita.

Se enamorou dela Joaquim Pacheco, um dos sete filhos varões do velho Pacheco, negociante de secos e molhados em Marapicu. Joaquim Pacheco, ou antes Quincas Pacheco, era um rapaz sem defeito e com um começo de fortuna. Já se vê que constituía um bom partido. E tendo nisso concordado o velho Moura e a filha, se ajustou o casamento, sendo esse logo realizado, não obstante apresentar o noivo uma intensa amarelidão que fazia recear sua saúde. Mas em serra abaixo quem não sofre mais ou menos do fígado? E quem tem cores vivas?

Assim não foi estorvo ao enlace matrimonial a palidez de Quincas. Se fez o casamento e os novéis esposos foram residir na asseada casinha que me chamara a atenção pelo prematuro abandono e que ficava pouco distante da do velho Moura, ali um pouco a dentro. As extremas do sítio dum emendavam com as doutro.

O casamento se fizera num sábado. Nos primeiros dias não houve coisa de importante a se relatar. Os casadinhos saboreavam a lua-de-mel como todo mundo: Se  abraçavam, beijavam a todo o instante e faziam castelo no ar.

Mas, na primeira noite de sexta feira que passaram juntos, isto é, sete dias depois do enlace matrimonial, começou a se complicar a situação dos cônjuges.

Dona Cecília estava acordada cerca da meia-noite, quando sentiu o marido a apalpar, como se procurasse verificar se estava realmente adormecida, e assim julgando, se esgueirou entre os lençóis, se dirigiu devagar à porta, a abriu e saiu ao terreiro.

Só quando o dia vinha rompendo é que Quincas, com o corpo frio como focinho de cão, voltou ao leito conjugal.

Dona Cecília ficou apreensiva com essa ausência noturna do marido. Seria possível que logo, na primeira semana de casado Quincas a abandonasse pra procurar alguma descarada?! Isso seria horroroso!

Mais admirada ficou ao observar que no dia seguinte o marido estava mais pálido que de costume, que os olhos tinham um fulgor de singular estranheza, que se tornara taciturno e procurava a evitar.

Efetivamente Quincas estava muito alterado em fisionomia e modos, e assim se conservou durante três longos dias. Mas no quarto voltou um tanto ao antigo estado, e dona Cecília, com muito boas maneiras, procurou saber o motivo porque se ausentara do leito conjugal durante a noite de sexta-feira. Mal pronunciou as primeiras palavras sobre o assunto e Quincas se encheu de inexplicável furor e, se arrancando brutalmente dos braços da esposa, foi se sentar, meditabundo, à porta do quintal, onde passou todo o resto do dia, sem querer comer nem beber.

Dona Cecília se mortificou extremamente com tal procedimento. Era, porém, excelente criatura, e, compreendendo que aquele assunto desgostava o marido, evitou doravante falar mais nele, ao mesmo tempo que, por inteligentes carinhos se esforçava em o arrancar do pesado silêncio no qual se engolfara. Assim se restabeleceu um pouco a tranquilidade no casal. Dona Cecília fizera o sacrifício de seu orgulho e curiosidade em benefício à harmonia do lar.

Isso durou uns três dias. Na sexta-feira seguinte, porém, quando o relógio americano que havia na sala de jantar vibrava as 12 horas da meia-noite, Quincas, tal como fizera na sexta-feira anterior, tornou a deslizar mansamente da cama, e ganhando a porta da rua se pôs no mundo. Só voltou quando os galos começavam a cantar.

Dona Cecília, que por ter o sono muito leve despertara quando o marido fizera girar a chave na fechadura, ficou ainda mais incomodada que da outra vez. No leito solitário se revelou cheia de impaciência e desgosto até a chegada de Quincas. Pensou:

— Com certeza Quincas tinha alguma amante e as alterações que observei não eram algo além do arrependimento de se ter casado comigo. Se fizera o enlace tão apressadamente! Quem sabia de suas desgraças com outras mulheres?

No dia seguinte Quincas estava lívido e o olhar terrivelmente sombrio. Cecília quase o desconheceu. Seu marido não falava, pouco comia e às vezes soltava uns grunhidos singulares que mais se assemelhavam aos dum porco que sons produzido por garganta humana. Na noite, ela querendo o afagar, Quincas a repeliu com modo brusco. Era um homem completamente diferente do da primeira semana, pois embora sempre fosse um tanto tristonho, se mostrara até então delicado e carinhoso. Depois de pensar durante algumas horas sobre o que faria, dona Cecília resolveu levar a conhecimento do pai o que acontecia de extraordinário em sua casa. Assim se dirigiu à roça do velho Moura, no domingo. Foi só, pois Quincas não a quis acompanhar. Ali referiu ao pai todos os desgostos, o tornando ciente da conduta mais que irregular do esposo.

O ancião, que não esperava arrufo entre casadinhos de fresco, ficou atônito ao ouvir as queixas da filha, e mais ainda a natureza delas. Assim, depois de coçar a cabeça algum tempo, o que nele era sinal de grande embaraço, disse:

— Minha filha, aí anda coisa muito séria, talvez mais do que pensas. Não é possível que o rapaz saia pra procurar mulher, pois sabes melhor que eu que aqui nesta redondeza não há alguma de vida má. Ademais, Quincas é ainda muito novo no lugar pra que pudesse formar já relação de tal natureza. Faças o que digo. Não te dês por achada. Continues a o tratar bem, nada lhe fales sobre os passeios às tantas da noite, e na primeira vez que ele tornar a sair o acompanhes de longe, e te informes do motivo de seus giros. É o mais prudente. Nada de juízo temerário sobre o pobre rapaz!

Dona Cecília aceitou o conselho paterno. Voltando a casa se esforçou pra bem tratar o esposo, que se mantinha sempre em pesado mutismo, e continuava a assombrando com os modos bruscos. Dona. Cecília tragou tudo com a maior resignação. No entanto sentia percorrer todo o corpo um calafrio quando Quincas soltava o grunhido estranho que principiara a emitir logo depois do primeiro passeio. Estaria doido o infeliz?

Viviam assim os dois, até que chegou a outra sexta-feira, e como já sucedera nas duas antecedentes, Quincas, logo que no relógio de parede o tímpano vibrou doze pancadas, se esgueirou sorrateiramente da cama, abriu a porta e ganhou mundo.

Logo após dona Cecília, que por prevenção estava acordada, enfiou um roupão de lã cinzenta, se embrulhou num xale da mesma cor, e saiu de casa o mais lentamente possível, a fim de não perder de vista o esposo.

Era noite de lua cheia e tudo estava claro. Foi fácil o avistar. Quincas estava encostado ao oitão da casa e ali demorou alguns minutos, como tendo um plano.

Depois se dirigiu, lento, cabisbaixo e muito triste em direção a um telheiro onde dormiam os porcos. Ao se aproximar dele começou a emitir os singulares grunhidos que tanto apavoraram a moça, que o acompanhava a distância.

Sempre grunhindo, se aproximou do telheiro e os porcos ao o pressentirem se levantaram e fugiram. Então tirou a roupa, se atirando na poeira que servia de leito aos bacorinhos, se espojou durante longo tempo, sempre grunhindo ferozmente.

Dona Cecília não sabia o que pensar do que via. Parecia que o marido enlouquecera repentinamente. Ainda não se recuperara do grande espanto quando viu Quincas se erguer, não sob a figura humana, mas se transformado num grande porco, de cerdas eriçadas e presas salientes, que ficou logo em pé e começou a bater os dentes e a abanar as orelhas de maneira horrível! Os olhos dessa coisa monstruosa luziam como brasa, a dentuça longa, cerrada e pontiaguda se destacava no negrume da pelagem.

Dona Cecília, levada ao auge do assombro, não pôde reprimir um grito, e a estranha alimária, assim que a ouviu, levantou a grande e pesada cabeça, farejou alguns instantes e depois avançou aonde a moça estava.

A moça, com toda a força das pernas e extensão do fôlego bateu em retirada até casa. Quando alcançava o terreiro o monstro deu a volta à habitação e a cercou no outro lado.

O grande medo que se apoderou da jovem lhe deu força pra voltar. Chegando ao alpendre de porco se enfiou no caminho que conduzia à casa do pai. Corria a mais não poder e a fera sempre a acompanhando. 10 minutos durou a perseguição e duma vez o porco chegou a morder o roupão de lã que se rompeu com o esforço empregado pela moça. Afinal dona Cecília, sem afrouxar a carreira, chegou à beira dum regato que atravessava o caminho e o transpôs com um salto. O monstro ia ainda no encalço mas ao ver a água estacou e retrocedeu, sempre batendo os dentes.

Já era tempo também. A moça estava quase caindo de cansaço. Tremiam as pernas, ofegava, um suor frio corria na fronte e estava quase tombando sem alento na estrada, quando ouviu uma voz que cantava:

Tomara que o mato seque
Quero  que as cobras come
É coisa que causa espanto
Vê muié passá sem home
Ó, minha senhora dona
Que tristeza e que pená!
A chinela um paulista
Numa sala faz chorá

A moça reconheceu logo essa voz. Era Juca Bembém, camarada da casa de seu pai. E assim que ele se aproximou pediu que a levasse a junto do velho. O rapaz, muito admirado de a ver naquela hora na estrada, obedeceu imediatamente.

Dali à casa de Moura apenas distavam alguns passos.

Ao entrar na sala da casa paterna, Cecília estava pálida como uma defunta.

O velho Moura acordou sobressaltado assim que percebeu a filha em tal estado e recuou, assombrado, mas logo, se acercando solícito, perguntou o que acontecera.

Cecília, depois dum quarto de hora no qual não pôde articular palavra, contou, com voz sumida, toda a história da transformação do marido em porco e  a forma como fora perseguida até o riacho do caminho.

Basílio de Moura ficou de boca aberta ao ouvir tão espantosa narração, e como sem coragem pra pronunciar a terrível palavra que logo lhe acudira à mente. Contudo, Juca Bembém que também ouvira a história, logo que a moça chegou ao episódio do riacho, exclamou com vivacidade:

— Dona Cecília, perdão se te ofendo sem querer, mas teu marido é lobisomem!

— É verdade. — Confirmou o velho Moura, consternado mas animado pela entrada de Juca — É verdade, minha filha. Que desgraça! Quincas é lobisomem!

A moça, ao ouvir essa dupla sentença, desatou em amargo pranto. O velho Moura enterrou a cabeça entre as mãos e se engolfou em profunda meditação. Juca Bembém, como um homem que resolve no cérebro uma ideia grande, torcia e retorcia nas mãos calosas o chapéu e se mostrava verdadeiramente comovido.

A cena muda durou alguns instantes e depois Juca Bembém deu alguns passos à moça e disse, decidido:

— Senhora dona Cecília, enxugue teu pranto. Deus dá remédio pra tudo e te garanto que hei de desencantar teu marido.

Basílio e a filha olhavam, admirados, o caipira mas ele tornou a afirmar:

— Desencantarei teu marido custe o que custar. Muita gente já fez o mesmo e eu não hei de ser dos mais caiporas, se Deus e nossa senhora da Conceição me ajudarem. Dona Cecília, peço que não voltes nesta semana e a seguinte a tua casa e deixes o resto por minha conta. Na sexta-feira verei o bruto. Entretanto se vier amanhã dizei que morarei consigo alguns dias. Vosmecês inventem o que quiserem, pra não desconfiar.

E dizendo isso Juca Bembém se despediu dos dois e se retirou. Se percebia no semblante que formara uma resolução inabalável.

No outro dia, logo na manhã, Quintas veio à casa do velho Moura buscar a mulher, que, ao o avistar soltou um grito de horror. É que nos dentes do marido vira pregados alguns fiapos de seu roupão de lã cinzenta. Não havia mais o que duvidar, Quincas era lobisomem.

Mas logo em seguida se tranquilizou e disse ao marido que não podia ir até casa porquanto seu pai estava doente e não tinha quem o tratasse. Efetivamente o velho Moura, com o abalo que sofrera, caíra de cama. A moça disse mais do que combinara com Juca Bembém, que enquanto seu pai se conservasse enfermo, fosse ele ao sítio a fim de lhe fazer companhia, preparar a comida e tratar da criação.

Quincas estava com lividez de cadáver e durante o tempo que a mulher falava nem uma vez lhe tirara o olhar. Assim que ela terminou a explicação, Quincas, embora fazendo grande esforço pra o reprimir, soltou um grunhido rouco, convulso, se e retirou bruscamente.

*** 

Com o piedoso intuito de desencantar o lobisomem, Juca Bembém, conforme ficara combinado, fora viver com Quincas.

É crença geral que se fazendo sangue na pessoa, quando está transformada nesse animal fantástico, o Diabo vem lamber o sangue, se considera pago de seu dízimo e a pessoa se isenta de seu sombrio fadário.

Juca Bembém tinha coragem pra travar combate contra a fantástica alimária e a ferir.

Nos primeiros dias de permanência no sítio de Quincas nada houve de anormal. Pacheco sempre muito sombrio e melancólico, evitava falar com o camarada mas ele não se dava por achado e fazia silenciosamente as obrigações, até chegar a fatídica sexta-feira.

Juca Bembém dormia na sala, numa rede. Por precaução, nessa noite resistiu ao sono, e nem ao menos se despiu. Quando o relógio bateu 12h ouviu o ruído no quarto do patrão, que dali a pouco assomou à porta e, se dirigindo à da rua, abriu e saiu. Juca Bembém fez outro tanto, se armando duma foice bem amolada, que de antemão encostara à parede, e acompanhou Quincas.

Foi direto ao alpendre dos porcos, grunhindo no caminho. Ali chegado se despiu, se atirou à poeira, se espojando nela em todos os sentidos e logo se ergueu transformado em enorme porco. Juca Bembém sentiu o cabelo se arrepiar na cabeça mas não perdeu o ânimo e, se dirigindo ao monstro, gritou com voz ameaçadora:

— Hoje é comigo, lobisomem!

O porco levantou a cabeça, bateu as grandes orelhas pendentes e se lançou sobre Bembém, que estava prevenido e com um salto evitou o esbarro.

O porco voltou ao ataque mas Juca tornou a furtar o corpo. Na terceira vez que a fera investiu contra ele o destro caipira vibrou a foice no fio do lombo e a arma pegou uma das orelhas do lobisomem e fez jorrar um grande esguicho de sangue.

Imediatamente diante do rapaz desapareceu o porco e surgiu Quincas Pacheco extremamente pálido e cansado.

— O que é isso?, patrão. — Exclamou Juca Bembém — Perdão se te feri!

— Ah!, meu bom amigo! — Quincas respondeu com voz cava — que grande serviço te devo! Me livraste dum penoso e miserável fadário: Graças a tua coragem deixarei de ser lobisomem. Andes comigo. Quero te recompensar generosamente.

E partiu a casa. Ao chegar ao terreiro, Quincas se virou a Bembém e disse:

— Esperes aqui. Buscarei uma molhadura,{10} pra recompensar  teu grande serviço.

Juca Bembém ficou esperando. Quincas entrou em casa. Dali a pouco assomou à porta, mas a molhadura que trazia era uma espingarda carregada e, antes que Bembém pudesse fazer um movimento pra fugir, deu um enorme tiro, quase a queima-roupa.

Juca Bembém caiu, e dali a três dias entregou a alma a Deus. Entraram no corpo 16 caroços de chumbo grosso. Desde então também nunca mais se viu Quincas.

Consta que fugira aos sertões de Minas ou de Goiás.

*** 

— Agora — Disse Bigode, depois de terminar a história que aqui transportei, somente alterando um pouco a linguagem — Juca Bembém morreu porque não sabia de todas as manhas do bicho. Deveria ter espetado a foice no chão, posto nela seu chapéu e o casaco e se esconder num canto. O outro daria o tiro que não pegaria. Então seria obrigado a lhe dar o dinheiro que prometera. Não sabem das coisas e querem se meter nelas! Não, pois desencantar um lobisomem tem suas histórias! Quando se livra daquele fado ruim a pessoa fica envergonhada e, se pode, dá cabo de quem a desencantou. Coitado de Juca Bembém. Era tão bom rapaz e valente até ali!

— E dona Cecília: Qual foi o destino? — Perguntei, interessado na sorte da infeliz esposa do lobisomem.

— Nunca mais quis habitar a casa. O cabelo embranqueceu todo dentro dum mês e pouco depois começou a tossir e a derramar escarro de sangue da boca. Estava sofrendo do peito. Seis meses depois da morte de Juca Bembém e do desaparecimento de Quincas, deu sua alma aos anjos. Basílio de Moura ainda é vivo. Sofreu muito mas o patrão sabe que gente velha tem couro duro pra desgosto. Já está quilotado.


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Ano de publicação: 1925.
Origem: Brasil (Nordeste)

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