Deve
ainda viver aqui, no Rio de Janeiro, alguém que se lembre, e talvez com saudade,
do velho Apolinário, indivíduo de costume e maneira bastante singulares, porém
o mais hábil tocador de violão que este país produziu.
Era um
homenzinho magro, enfezado, usando a barba meticulosamente raspada, muito
trêmulo, e já quase cego, ou ao menos muito míope.
Vivia
isolado numa casinha de sua propriedade na rua Formosa. A ninguém visitava, não
passeava, não ia a divertimento e apenas saía à rua uma vez por dia, à 1h da
tarde, pra almoçar e jantar ao mesmo tempo.
Se o
velho Apolinário a ninguém visitava, era muito procurado em sua casinha da rua
Formosa, pelos amadores do violão, que o solicitavam pra o ouvir simplesmente
tocar ou pra receber lições suas, pois então o violão fazia as vezes do piano e
era instrumento obrigado nos serões de família.
Não
era a todos, porém, que o velho Apolinário exibia seu grande talento de
executor ou se prestava a dar lição musical, sendo muito excêntrico. Qualquer
coisa o indispunha com o pretendente e quando tal acontecia nada mais era
possível se obter dele.
Era
necessário muito jeito pra que o velho nos deliciasse com as profundas
harmonias que ninguém mais sabia arrancar do bojo do violão.
Bastava,
por exemplo, perceber que o indivíduo que o procurava era um irreligioso e já
não havia meio de o fazer pegar no instrumento, pois Apolinário era
profundamente crente e todos que consigo tinham relação sabiam disso.
***
A
casinha onde Apolinário morava se compunha unicamente de duas peças: Uma sala e
um quarto. Ao penetrar na primeira logo se ficava impressionado pelo fato de
estar forrada de litografia representando santo e cena religiosa. Aquilo não
era o aposento dum celibatário. Era uma capela ou, mais propriamente, a loja
dum mercado de imagem.
Algumas
gravuras estavam encaixilhadas em molduras de madeira, outras simplesmente
coladas com goma à parede. Havia seguramente umas trinta ou quarenta
nossas-senhoras de diversas invocações, os são-josés pululavam, os
santo-antônios e os são-franciscos vinham do teto ao soalho, as imagens do
senhor dos Passos e do senhor crucificado eram a granel, e pra qualquer lado
que se lançasse a vista estava um são-benedito, um são-jerônimo, uni são-roque,
um são-maurício retalhando o legendário manto, um são-jorge, firme na montaria,
um são-sebastião crivado de seta. Havia de tudo ali.
Dumas
das imagens pendiam fitinhas, rosários bentos, velas de cera. Outras eram
circundadas por flores murchas. Algumas eram encimadas por palmas e ramos de
buxo. Santos e instrumentos de música eis o que unicamente se via na modesta
casinha do velho Apolinário.
Sobre
os móveis estavam três rabecas. Penduradas nas paredes se viam outros tantos
violões. Aqui e ali uma flauta ou um pistão azinhavrado. E num canto uma velha
harpa já muito usada.
***
Eu
sabia de todos esses pormenores a respeito do velho Apolinário e de sua
habilitação. Assim, foi com o maior cuidado que o procurei.
Logo à
entrada da casinha me descobri respeitosamente e disse:
— Com
licença, senhor Apolinário.
E
imediatamente, antes que o velho me desse resposta, comecei a correr com a
vista as paredes de alto a baixo, com o ar mais hipocritamente devoto que era
possível exigir um ator consumado, quando o velho respondeu com voz trêmula:
—
Podes entrar.
Fiquei
ainda olhando a santarada, como que embevecido naquela contemplação.
Percebi
logo que isso agradava a Apolinário, pois, ao contrário do que praticava a
todos, se levantou e se aproximou muito risonho. Eu disse, sempre com os olhos
pregados nas amareladas gravuras que cobriam as paredes:
— Não
julgava encontrar aqui um homem tão piedoso. Sim, senhor. Isto alegra uma
pessoa.
— Ã! —
Fez o velho — Ao que vejo, também és respeitador dos santos?!
—
Certamente, senhor Apolinário. O quê seríamos sem a ajuda de Deus e dos
santos?!
—
Dizes muito bem, meu senhor. É o que me tem valido. Só Deus é quem sabe o que
seria de mim se não fossem estes santos que aí estão.
— Sim,
senhor.
—
Aqui, onde o senhor me vê já tive um grande assombro em minha vida.
— O
senhor?
— Sim.
Já fiz um concerto com uma alma do outro mundo. Nas cordas enferrujadas daquela
velha harpa que ali está já passearam os dedos duma morta. Vivi assombrado
durante muito tempo. Se não fossem estes santos que me cercam não sei onde
estaria. Mas te sentes. A que devo a honra da visita?
Compreendi
que fizera uma bela entrada na casa do velho Apolinário. Por isso foi com a
maior segurança que abri a boca e disse:
—
Senhor Apolinário, venho simplesmente a tua casa trazido pelo desejo de te
ouvir tocar violão, instrumento que muito aprecio. Tua nomeada é grande e vim
correndo atrás dela.
— Com
todo gosto. Meu instrumento predileto não era o violão e sim a rabeca. Mas
depois que fiz o singular concerto de que já vos falei, nunca mais passei o
arco nas cordas dum violino. Me atirei, então, ao violão, e, na verdade, já
consigo vencer nele algumas dificuldades, mas daí a tocar bem, vai muito. Sabes
que o violão é um instrumento dificílimo e depois os anos vão endurecendo os
dedos. Em todo caso, e somente pra fazer tua vontade, mostrarei o que sei.
Dizendo
isso Apolinário se ergueu e entrou no quarto arrastando os pés.
Já
descrevemos o físico do grande tocador de violão. Precisamos dizer que o traje
em casa se compunha invariavelmente duma camisa de chita com as fraldas saídas
a fora e de ceroula de algodão. Era assim que recebia todo mundo. Tanto no
verão, quanto no inverno nunca o viram vestido doutra forma.
No fim
de alguns segundos Apolinário saiu do quarto, sobraçando o violão. Era um
instrumento quase tão velho quanto o dono, de tampo sujo, braço muito gasto
pelo uso constante das mãos, mas de cordas novas, brilhantes as de prata, muito
claras as de tripa.
Apolinário
se sentou, soprou cuidadosamente a poeira do instrumento e começou a o afinar.
Eu
observava atentamente todos os movimentos, e, pra dizer com franqueza, duvidava
bastante que aquele ancião de dedos trêmulos, de magreza esquelética, fosse
ainda capaz de vibrar um instrumento da força do violão e com a energia dos
grandes mestres. Naturalmente lhe exageravam a capacidade de executor, pensava
eu. Naquela idade e naquele estado não seria possível que se fizesse mais algo
em música de modo a surpreender um conhecedor hábil.
Assim
pensava enquanto Apolinário se preparava pra tanger o instrumento. Bem
depressa, no entanto, eu teria de confessar que nunca uma reputação fora mais
justa que a da personagem que tinha em minha presença.
Apolinário
era realmente um artista consumado, em tudo digno desse belo título. Assim que
começou a execução aqueles dedos magros, esqueléticos, que me pareciam
incapazes de agilidade, impróprios pra se fixar numa pestana, tão fracos pra
vibrar um acorde, nalguns rápidos passeios que fizeram no braço do instrumento,
giros nos quais os dedos do velho pareciam as longas pernas duma aranha
dançando na renda da teia, demonstraram uma facilidade de execução, um vigor,
uma força incomparáveis.
Fiquei
aturdido.
Apolinário
começou executando uma série de escalas cromáticas brilhantíssimas, tiradas com
uma limpeza admirável, sem arrastar nota, sem vacilação nem um esbarro. Em
seguida passou a tocar um melodioso prelúdio do célebre Aguado, e depois
algumas variações de Carcassi, notáveis pelas combinações harmônicas. Ainda me
deliciou com uma composição de sua lavra, uma valsa a que dera o título de Stella Maris e rematou a exibição
artística executando um soberbo fadinho, música sua também e que qualquer outro
nunca seria capaz de interpretar.
Ali
nesse gênero de música popular, trivial mesmo, é que era de se ver a
superioridade do artista. Era simplesmente prodigioso o fadinho tocado pelo
velho Apolinário. Aturdia a gente ver a rapidez vertiginosa com que os dedos
saltavam nas cordas e produzir sempre uma música que variava ao infinito, no
tom, compasso ou acento. Música gaiata, ora foliona, imitando rufos de pandeiro
e estalido de castanhola, música saracoteante, brejeira, que de momento a outro
se tornava serena e lasciva, e, depois, sem perder o caráter de fadinho,
produzindo sonâncias graves ou agudas, plácidas ou febris mas sempre viva,
animada, se desdobrando numa cascata de acordes inesperados, se espraiando nuns
requebros dulcíssimos produzidos em escala, trêmulos, fugas, corridas loucas
que vinham desde o mi do bordão grosso até o último trasto da prisma.
Fiquei
tonto. Nunca pensei que se pudesse fazer tanto naquele instrumento. Assim,
quando Apolinário deixou o violão o apertei nos braços comovido, e em termos
dos mais calorosos lhe signifiquei minha profunda e sincera admiração.
Apolinário
se mostrou radiante.
***
No
entanto estava me custando a deixar aquela casa onde me embriagara com
harmonias e melodias tão doces. Depois de gozar a obra, se me despertara o
desejo de conhecer mais intimamente o autor. De mais, minha curiosidade fora
provocada pelas misteriosas palavras que Apolinário deixara escapar, e a harpa
velha que via num canto, a harpa fantástica em cujas cordas passearam noutro
tempo os dedos duma morta me incitavam a penetrar o mistério da vida do grande
artista.
Por
minha fingida devoção ou pelo entusiasmo que se apossara de mim o ouvindo
tocar, Apolinário simpatizara comigo, e eu, me aproveitando dessa
circunstância, fui jeitosamente encaminhando a conversação ao assunto do
concerto da morta, até que afinal, depois dalguma hesitação do velho, colhi de
sua boca a seguinte história:
***
Romualdo
Castelo, que fora nomeado mestre de coro da capela real, logo que dom João VI
escolhera esse templo pràs devoções particulares de sua casa, tinha uma filha
moça de 21 anos que à mais peregrina beleza aliava um talento musical
excepcional e que era dotada de voz magnífica.
O
instrumento da predileção de Maria da Conceição, assim se chamava a filha de
mestre Romualdo, era a harpa. No coro da Capela, porém, ela fazia a parte de
contralto sempre que se cantava alguma peça de mais fôlego, e em toda a cidade
do Rio de Janeiro, quando se falava do talento lírico de Maria da Conceição era
com o maior respeito, fato esse que enchia mestre Castelo de orgulho.
Nesse
tempo também tocava no coro da capela Apolinário Roma, moço de 25 anos e que
fazia o primeiro violino na orquestra real, da qual ele e a formosa Maria da
Conceição eram indubitavelmente as principais figuras.
Apolinário
frequentava assiduamente a casa de mestre Castelo, e, excetuando as noites em
que na capela havia ladainha, com acompanhamento de orquestra, ia sempre passar
o serão com o mestre e sua filha. Chegava às 6h e se retirava invariavelmente
às 10h.
Apolinário
levava o violino, mestre Romualdo assim que ele chegava ia buscar a sua flauta,
Maria da Conceição chegava à harpa e logo começava um pequeno concerto de peças
escolhidas, tendo como únicos auditores os próprios executores. As vezes Maria
da Conceição cantava e então Apolinário a acompanhava na rabeca.
Ambos
moços, ambos artistas de talento, ambos doidos pelo belo ideal que sabiam
descobrir nos sons, suas almas tão irmãs quase sem o sentir se apaixonaram
mutuamente com amor puro, casto, quase religioso. Assim viviam enleados,
inteiramente venturosos, sem que se lembrassem de dizer um ao outro o que
sentiam de doce no terno coração.
Disso,
porém, não tinham necessidade, pois a linguagem que falavam com os olhos e a
que diziam na suavidade da música era suficientemente expressiva.
No
entanto Apolinário pensava seriamente no amor que sentia por Maria da
Conceição. Desejava ardentemente a pedir em casamento, e, se o não fizera ainda
é que o impedia uma circunstância bastante embaraçosa. Mestre Romualdo Castelo
era um esquisitão, um homem de mania e entre outras extravagâncias assentara em
não dar a mão de sua filha a um músico.
Mestre
Romualdo era um excelente músico e um apaixonado fervoroso da grande arte e em
toda sua vida só fizera música boa. Além disso mestre Romualdo era muito amigo
dos de sua classe e muitas vezes sua magra bolsa se esvaziava de todo pra
socorrer colegas necessitados. Mas, mestre Romualdo sofrera muitas
contrariedades durante seu longo tirocínio artístico, e dali a convicção de que
todo músico era um ente infeliz, um rematado caipora ao qual não devia entregar
a filha, pois seria o mesmo que condenar a mísera à desventura.
Assim
pensava mestre Romualdo e por tal motivo Apolinário não se animava a fazer o
pedido. O moço esperava que o tempo, uma longa convivência com ele, a amizade
que naturalmente despertaria e finalmente os próprios acontecimentos fossem
demonstrando ao velho mestre de coro a sem razão de seu modo de pensar. Até que
chegasse esse dia se contentaria com os gozos puros, celestiais, nos quais se
engolfava quando no coro da capela ou nos serões da casa do mestre sua alma se
enluarava com as suaves claridades que desciam dos olhos de Maria da Conceição,
olhos pestanudos e dum negror e maciez de veludo.
Assim
eram os dois perfeitamente felizes. De dia se sentiam mais mutuamente atraídos
e mestre Romualdo Castelo, o velho regente de orquestra da capela real, tão
simples era o pobre homem e tão preocupado andava com sua música, que nunca
percebera ou adivinhara alguma cena daquele idílio.
***
Na
capela real um dia se cantou uma bela missa composta por um frade carmelita que
dom João VI muito distinguia.
Era
uma formosa peça. Se sentia que havia nela inspiração verdadeira e sentimento
real.
A
execução foi primorosa e Maria da Conceição, principalmente, esteve
incomparável nesse dia.
Sua
voz puríssima e impregnada de doce misticismo conseguiu levar à alma de todos
os fidalgos reunidos na igreja um encanto indefinível e dom João VI, de sua
tribuna, não pôde conter a lágrima.
Nunca
Maria da Conceição se apossara daquela forma de sentimento religioso no canto
sacro. O ateu se transformaria em crente fervoroso a ouvindo.
Assim
que terminou a cerimônia, o frade carmelita, radiante de contentamento pela
surpreendente execução que tivera sua missa, beijou enternecido as mãos de
Maria da Conceição. A rainha dona Carlota Joaquina veio pouco depois a abraçar,
e todos os fidalgos e damas da alta linhagem, seguindo o exemplo da soberana,
se comprimiram junto da formosa cantora e lhe fizeram a mais entusiástica
ovação.
Na
verdade fora estrondoso o sucesso alcançado pela filha de mestre Romualdo, e
durante muitas semanas não se falou noutra coisa em toda a cidade.
Dom
João VI a convidou a ir ao palácio. Ali a recebeu com o maior carinho, e,
sabendo que Maria da Conceição era uma excelente harpista, lhe deu de presente
uma magnífica harpa, trabalho do mais delicado lavor, todo dourado com
incrustações de madrepérola, ouro e marfim e tendo gravados o nome da cantora e
a data de seu memorável triunfo lírico.
Mestre
Romualdo não cabia em si de contente com todo esse sucesso tão grato a seu
coração de pai extremoso. E não era pra menos. No entanto o pobre ancião mal
poderia adivinhar que esses júbilos bem depressa se transformariam em mágoa profunda.
***
Dentre
os nobres fidalgos que na capela real ouviram Maria da Conceição cantar com
tanta arte e sentimento a missa do frade carmelita, estava o velho conde de
Baixães, fidalgo pertencente à primeira linha da nobreza lusitana e homem
notável pelos grandes cabedais e consideração que o rei lhe dispensava.
Conde
de Baixães viera pouco antes de Portugal em comissão reservada do duque de
Wellington pra dom João VI e deveria regressar brevemente ao reino, onde
possuía em Lisboa um magnífico palácio e um sólido castelo no Algarve.
Conde
de Baixães foi um dos que primeiro cumprimentaram a distinta cantora, logo que
a rainha a abraçou, e mais do que por seu superior talento artístico, ficou
enleado pela formosura de Maria da Conceição, cujo semblante na verdade
tinha uma pureza angélica e cujas formas eram de correção impecável.
Baixães
ficou deslumbrado e logo no dia seguinte se dirigiu à modesta casinha de mestre
Romualdo, sob o pretexto de significar mais expressivamente à bela cantora sua
admiração.
Mestre
Romualdo Castelo se declarou muito penhorado com semelhante distinção que lhe
conferia o aristocrático fidalgo e, na noite, quando Apolinário chegou, não lhe
falou sobre outra coisa, engrandecendo muito a honra que receberam com aquela
visita.
Apolinário
aprovava tudo o que o velho dizia. Ao mesmo tempo, porém, observava que Maria
da Conceição não participava da alegria do pai, se mostrando, ao contrário, até
um tanto triste. Assim, se aproveitando dum momento em que o velho se retirara
ao interior da casa, procurou saber dela qual o motivo de se mostrar tão
pesarosa nessa noite.
—
Sabes, Apolinário. — Respondeu Maria da Conceição — Não gostei da visita que
hoje nos fez o conde de Baixães.
— E
por quê? Quando vosso pai se mostra tão lisonjeado com tal visita!
— O
que queres? Só sei que o coração me diz que aquele homem será o causador de
minha desgraça.
—
Então da minha, também. — Apolinário acrescentou vivamente, fazendo assim, sem
pensar, sua primeira confissão de amor.
— Sim.
Da nossa. — Apoiou Maria da Conceição.
— Mas
por quê? Santo-deus!
—
Ouças, Apolinário, o conde de Baixães não veio aqui pra patentear admiração a
meus dotes artísticos.
— Ã!
— Ao
contrário. O conde de Baixães é quase insensível à música. Percebi isso hoje,
executando em sua presença alguns trechos seletos.
— Mas
o que esse imbecil veio fazer?
— Não
adivinhaste ainda? O conde veio simplesmente pra me ver, pois está loucamente
apaixonado por mim. Eis o que é. Meu pai nada percebeu, porém as mulheres nunca
se enganam quanto aos sentimentos que fazem os homens experimentar. No entanto,
o que é pior, é que me assaltou um pressentimento de que esse capricho do
titular nos será funesto.
Nesse
momento entrou o mestre e os dois interromperam a conversa.
Maria
da Conceição, procurando disfarçar a melancolia, se chegou à rica harpa com que
a presenteara dom João VI e começou a cantar uma ave-maria, música que prezava
acima de todas. Mas nessa noite sua voz não tinha a pureza e a vibração de
costume. Parecia abafada. Se diria que antes queria chorar a cantar.
Apolinário,
que fazia o acompanhamento na rabeca, participava também da comoção que a moça
sentia. Seu arco tinha menos firmeza, tocava sem expressão, distraído, talvez
sem saber o que fazia.
O que
adivinhariam aquelas duas almas tão meigas, tão cheias de amor e de harmonia?!
***
No
entanto Maria da Conceição não se iludira a respeito da intenção do velho conde
de Baixães. O fidalgo estava mais que apaixonado. Todos os dias a visitava,
levando sempre valiosos presentes, que a moça recebia unicamente por delicadeza
e pra não desagradar ao pai.
Isso
durou cerca de duas semanas, até que afinal o conde, se aproveitando dum dia em
que Maria da Conceição estava ausente, confessou a mestre Romualdo sua grande
paixão pela filha e o desejo que tinha de a fazer feliz lhe dando a mão de
esposo.
Mestre
Romualdo ficou perplexo.
Como?!
Pois um fidalgo tão ilustre, um titular que figurava entre as primeiros
personagens do Reino-Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Um homem da imediata
confiança de sua majestade, do qual até era primo. Um homem rico, estimado,
gozando da mais elevada consideração, desceria até ele, um simples mestre
musical e com aquela sem cerimônia estendia à filha a dourada coroa de
condessa?
Nunca
mestre Romualdo, em sua mais alta ambição, sonhara com futuro tão radiante pra
sua filha. Assim, concedeu imediatamente ao conde a mão de Maria da Conceição,
se reservando o direito de a consultar a respeito, embora desde logo garantisse
ao velho fidalgo que sua filha saberia apreciar condignamente tão súbita honra.
O
conde saiu satisfeitíssimo, e mais ainda ficara o regente da orquestra, que
ansiava a chegada da filha, a fim de lhe comunicar a glória e a ventura que lhe
estavam reservadas.
***
Contudo
uma grande decepção aguardava mestre Romualdo. A filha recebeu com a maior
frieza a comunicação que lhe fez, logo que ela entrou em casa. Ao terminar,
Maria da Conceição disse:
— Nem
penses nisso, meu pai. Peço, pelo-amor-de-deus, pois só a ideia desse casamento
me horroriza .
O
músico ficou desapontadíssimo. Jamais lhe ocorrera a ideia de que a filha
recusasse tão vantajosa proposta de casamento. A princípio ficou aturdido e do
desapontamento passou a um grande furor e exclamou, no auge do maior exaspero:
— Vai
ver que anda já aí algum namoro com qualquer troca-tinta, com algum músico,
talvez!
—
Efetivamente, meu pai, a despeito do projeto que desarrazoadamente formastes de
não querer que eu me case com um músico, me sinto apaixonada por um colega. Não
ergui os olhos acima dos de minha classe. Amo Apolinário de todo o coração e só
consigo me casaria se minha vontade prevalecesse.
O
velho, ao ouvir essa declaração tão formal, se encheu de cólera indescritível.
Bracejou, gesticulou, deprecou contra os músicos, ameaçou a filha de a meter no
convento da Ajuda. Mas nada movia Maria da Conceição, embora não pronunciasse
mais.
Então
mestre Romualdo mudou de tom, e com lágrimas nos olhos suplicou à filha que não
cavasse a ruína de seu pobre e velho pai, pois se ela se obstinasse em não
querer aceitar o conde por marido, exasperaria o fidalgo e até o próprio rei.
Seria uma ofensa a toda a nobreza. Eles, pobrezinhos, sem nome, sem fortuna,
sem proteção, seriam fatalmente esmagados pelos potentados, como vermes
repugnantes.
Enfim,
tanto e tanto rogou, tanto suplicou, que Maria da Conceição, enternecida, fez
um esforço supremo sobre si, e se lavando em copioso pranto, exclamou, com voz
entrecortada pelo soluço:
— Meu
pai, vos devo a vida, a criação, e a educação. Não posso ser vosso algoz. Diga
a conde de Baixães que o aceito por marido.
***
O
casamento do velho fidalgo, com a filha de mestre Romualdo, se fez dentro de
quinze dias depois de formulado o pedido, e se realizou com o maior esplendor,
embora alguns nobres mais suscetíveis censurassem no foro íntimo o conde por
violar as conveniências de sua alta hierarquia, se consorciando com uma filha
do povo. Outros, porém, mais indulgentes, e esses eram em maior número,
entendiam que o talento e a formosura também constituíam aristocracia. Maria da
Conceição estava nesse caso.
Oito
dias depois de realizado o consórcio o conde de Baixães com a esposa deixaram o
Brasil e foram residir em Portugal. Ele nadando na mais indizível alegria, ela
abatida, com os olhos empanados constantemente pela lágrima e a alma ensombrada
pelo negror duma tristeza imensa. Partiram, pois, e Apolinário com a alma
alanceada pela dor, quase doido, viu a sua querida Maria deixar esta terra,
talvez até sempre. Durante horas se deixou ficar esquecido na praia, vendo
desaparecer no horizonte a fragata que a longe levava aquele pedaço de seu
coração.
***
Maria
da Conceição desde o dia em que se casara com o conde de Baixães, se sentiu
possuída por tristeza infinda. Os lábios nunca mais se entreabriram num
sorriso. Sua alma se fechara duma vez às alegrias e por mais que o velho marido
se esforçasse em lhe procurar divertimento e a cercar do fausto e de cuidados
os mais carinhosos, seu semblante não se desanuviava. Maria da Conceição, desde
o dia em que a arrastaram no altar, passou a viver enclausurada em grande
desgosto.
Pouco
depois adoeceu e embora o conde de Baixães chamasse os médicos mais afamados de
todo o país, a doença progredia a olhos vistos, e já os doutores desanimavam de
a salvar. O conde estava inconsolável.
Mas
nos voltemos ao inditoso Apolinário.
O moço
sentira profundo abalo com a partida da mulher adorada à Europa. Só então
conheceu quanto a amava. Ela era a escolhida de seu coração, a companheira leal
de suas expansões de artista. E ele, auscultando o íntimo, chegou a compreender
que seu peito só albergava dois afetos únicos: Conceição e a música. Demais pro
pobre rapaz, Conceição era inseparável da arte, e perdendo a primeira, a música
se despoetizara pra ele, se transformara numa coisa banal, prosaica,
fastidiosa. Se a fazia ainda no coro da capela era indiferentemente, sem
paixão.
***
Um dia
entrou no Rio de Janeiro um brigue vindo de Portugal, trazendo a dom João VI a
notícia da revolução do Porto e a Apolinário Roma uma carta concebida nos
seguintes termos:
Apolinário.
Me
sinto morrer aos poucos neste triste país, longe de ti e daquela bela música
cujo sentido eu só compreendia quando estava a teu lado. Me sinto morrer, porém
me diz o coração que ainda nos encontraremos. Quando, não sei. E como outrora
executaremos juntos aquela sublime Ave-maria,
que é a mais doce inspiração de Palestrina e da qual tanto gostávamos. Adeus,
Apolinário, não tenho força pra alongar mais esta carta. Nunca te esqueças de
tua infeliz
Conceição.
As
lágrimas jorraram dos olhos do pobre rapaz ao ler estas linhas traçadas pela
mão de sua inolvidável Conceição. Depois de cobrir de beijos quentes, febris, o
papel, o comprimiu ao peito e se atirou ao leito soluçando convulsamente.
As
palavras escritas por Conceição lhe aviventaram todas as dores de sua alma, tornaram
mais amarga a desventura. Parecia que tudo estava acabado no mundo.
E
deitado sobre o leito se deixou permanecer chorando, sempre apertando a carta
de Conceição sobre o coração, ao mesmo tempo que os olhos anuviados pelas
lágrimas se esqueciam fitando uma harpa que havia no aposento.
Esse
instrumento era uma relíquia pra Apolinário. Lhe dera Conceição quando fora à
Europa.
***
Anoiteceu.
A treva invadira pouco a pouco o aposento, e Apolinário, afundado em grande
dor, se conservava sempre na mesma posição.
Se
passaram horas, e já os sinos da igreja mais próxima vibrado as doze pancadas
da tétrica meia-noite, quando o rapaz, tendo consciência de que estava bem
desperto, se admirou ao ver que seu quarto se enchia duma claridade branda,
muito leve a princípio. Imediatamente se sentou na beira da cama, e mais
aturdido ficou ao verificar que a porta e as janelas estavam hermeticamente
fechadas.
No
entanto a claridade crescia, e no fim de alguns minutos o aposento era
perfeitamente banhado por uma luz amarelada, ora branquicenta, como se fosse
coada através dum globo de prata.
E ao
mesmo tempo que tal fenômeno se produzia, ele, com o cabelo eriçado pelo medo,
viu se destacar das sombras dum dos cantos do aposento uma mulher, que, sem
fazer bulha no soalho se aproximou da harpa e a ela se inclinou na atitude de
quem queria a tanger.
Nesse
momento a luz branquicenta golfou outra vez no quarto e iluminou o rosto da
mulher. Apolinário a reconheceu logo. Era Conceição. Estava vestida com roupa
ampla, negra. Em seu belo cabelo destrançado se distinguiam algumas flores,
todas roxas, flores de finados, saudades, goivos, perpétuas, e sobre seu seio
repousava um grande amor-perfeito, já com as pétalas aveludadas começando a
mirrar.
No
primeiro momento quis correr ao encontro daquela visão querida, mas lhe faltou
ânimo. Conceição estava pálida como cera, aquela roupagem negra, aquelas flores
tristonhas lhe davam o aspecto duma defunta.
Apolinário
ficou tomado do maior assombro que enquanto ele durava, Conceição ou seu fantasma
começou a passear os dedos muito brancos sobre as cordas da harpa, delas
tirando uns acordes que vibravam de modo estranho na alma do jovem. Aqueles
acordes ele os conhecia muito. Eram o prelúdio da Ave-Maria, de Palestrina, o grande mestre da música sacra italiana,
a sublime composição com a qual se embevecia outrora, na quadra de sua
felicidade.
Ficou
extasiado ao ouvir aqueles acentos que lhe eram tão fagueiros e, sem ter a
noção exata do que estava praticando, tomou uma rabeca e começou a fazer o
acompanhamento ao canto que a visão desferiu, modulado com suavidade angélica.
Esse
concerto estranho, fantástico, durou seguramente 20 minutos. Quando as notas
graves, untuosas, profundamente místicas do amém
se soltaram da garganta da mulher, bem como das cordas dos dois instrumentos,
as trevas invadiram outra vez e repentinamente o quarto, e tudo sumiu.
***
Disse
o velho Apolinário, rematando a triste história dos seus velhos amores:
— Meu
bom amigo, contando dia a dia e hora a hora, dali a um mês, por uma embarcação
que chegava de Portugal, vim a saber que minha doce Maria da Conceição
entregara a alma pura aos anjos, naquela mesma noite em que seu espírito me
visitava, e morrera, meu senhor, encostada à harpa que lhe dera o rei e
modulando a Ave-Maria de Palestrina.
Não foi uma visão o que presenciei, foi um fato real. No outro dia, das cordas
em que pousaram os dedos de neve de meu anjo pendia uma infinidade de flores
roxas, já murchas: Goivo, perpétua, amor-perfeito e saudade. Fiquei
horrivelmente assombrado com aquele fato estranho e caí gravemente enfermo.
Estive às portas da morte e já os amigos desesperavam de me salvar, quando me
lembrei de me apegar com os santos, que desviaram a morte suspensa sobre minha
cabeça e me conservaram até hoje Pobre Maria da Conceição! Como eu te amava,
minha doce Conceição!
***
E saí,
deixando o grande e venerando artista soluçando, abraçado à velha harpa que
jazia num canto. Saí, ou antes me esgueirei na porta, a fim de não perturbar o
ancião naquele desafogo. Levava o coração opresso. Senti remorso por revolver
aquela dor tão velha e, não obstante, tão viva ainda.
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