domingo, 12 de dezembro de 2021

O diabo no corpo (Contos Fantásticos), Viriato Padilha

 

O DIABO NO CORPO

Manuelinha era uma mulata de 18 anos incompletos e um verdadeiro modelo de mestiça bonita e apetitosa.

Não tinha alta estatura. Ao contrário, era toda miúda de corpo e de forma, porém enxuta de carne, de braços e pernas roliças, anca refeita, seio agradavelmente espontado sob a chita do corpete, pescoço cilíndrico.

Olhos grandes, amendoados, negros, vivos e pestanudos, a boca pequena, de lábios carnudos e guarnecida de dentes muito brancos e juntos, nariz perfeito, pele fina, macia, suavemente amorenada, cabeleira farta, sem ser crespa em demasia.

Muito viva, movimentos brevíssimos, olhar ligeiro e petulante, ademanes rápidos, e sabia rir de qualquer coisa com graça encantadora. O muxoxo na boca tinha um quê especial.

Manuelinha tinha consciência de sua beleza e sabia a fazer valer. Debalde muito cabra valente, num pé-de-viola, lhe fizera roda. Inutilmente os arrieiros faziam piegas em seus cavalos aparelhados de prata, quando passavam junto a sua porta. Manuelinha olhava a todos sobre o ombro, e se algum mais ousado se animava a lhe dirigir uma graçola qualquer, por exemplo:

— Puxa, mulata, machucadeira de coração!

Era infalível de sua parte um atrevido:

— Não te enxergas?, seu sujo!

Ou então:

— Vai te lavar na maré, pato checo!

E assim vivia Manuelinha, contente descuidosa, cortejada por todos, porém sempre esquiva e orgulhosa de sua beleza e da fascinação que exercia sobre todos os homens, que, nos dias de pagode em sua casa, nunca ali faltavam, como atraídos pela interessante moça.

***

Toda a rapaziada da vizinhança se derretia por Manuelinha. Mas dentre a chusma de seus adoradores um merece ser destacado com certo relevo, não só pelo importante papel que representará na sequência desta história, como pela extravagância do tipo.

Esse apaixonado era nada mais nada menos que Pedro Camundá, africano com perto de 70 anos, e tio-avô da mulatinha.

Por artes do Diabo, aquele cação, como lhe chamava a malcriada mulatinha, se enamorou perdidamente da sobrinha-neta, e levava todo santo dia a importunando, apesar das insolentes rebatidas da moça.

Pedro, ou antes, pra dizer exatamente seu nome com todos os estrambóticos apelidos por si forjados, Pedro Camundá Lopes Martins Júnior Filho do Gama Pesca de Dia de Noite Escama Cócôriôcô Galo Quando Canta É Dia, entendia lá em seu bestunto que, se sendo tio-avô de Manuelinha tinha mais que qualquer outro direito de a possuir, e pouco se lhe dava a diferença de idade entre os dois e a repugnância que em geral a mulata sente pelo negro.

Pedro não refletia isso. Era tio e essa consideração do parentesco julgava ele suficiente pra destruir todos os obstáculos. Não desanimava, pois, de fazer render a moça sua concupiscência.

É claro, porém, que a moça, por mais depravado que fosse seu gesto, nunca poderia se entregar voluntariamente àquele urutu de venta esborrachada, carapinha enredada, cambaio, desdentado e de olhos sangrentos. Era, portanto, em vão, que Pedro Camundá Lopes Martins, etc., etc., ostentava, prà agradar, diversas habilidades que possuía, tais como tocar flauta de taquara no nariz, pegar cobra com a mão, tirar ponto de jongo e outras astúcias mais.

Manuelinha cada vez se aborrecia mais, e se não o enxotava de casa é que Pedro tinha fama de grande feiticeiro. Nessa qualidade o temia extraordinariamente. Mau trato, porém, não lhe poupava, e a todo o momento lhe assacava epítetos os mais injuriosos.

***

Era de uso antigo em casa de Manuelinha se festejar com uma grande pagodeira o dia de nossa senhora da Conceição, madrinha celeste da mulatinha. Chegado o dia, começaram a afluir visitas de toda parte, tanto homens quanto mulheres, pois essa festa tinha fama na vizinhança.

Se cantava uma ladainha, ia depois a uma mesa bem servida de suculentas iguarias, e depois se caía no batuque, que durava até amanhecer.

Entre outras pessoas estranhas que vieram em primeira vez a essa pândega, se notava o senhor Antônio Guimarães, ilhéu chegado pouco antes do Faial e hortelão duma fazenda da vizinhança.

Era um sujeito grosso de corpo e de espírito, usando barba de varre-lama e de queixo e beiço raspado.

Ainda vinha metido na pesada saragoça de além-mar, com o clássico remendão nos fundilhos, e trazia atarracado à alentada pata o grosso tamanco de beiça grande e revirada, guarnecido de cravos fortes de cabeça chata.

Guimarães logo que pousou a vista na mulatinha, nesse dia vestida e penteada a capricho, começou a sentir comichão na garganta e começou a mexer no banco, todo esquerdo, todo casmurro. Logo se via que aquela alma ilhoa queria reza mas, o que é mais singular, Manuelinha, a invencível mestiça, a tirana que orgulhosamente desprezara o amor da mais desempenada caipiragem, simpatizou igualmente com o forasteiro, e logo todos, inclusive Pedro, perceberam que os dois, no fim de meia hora, estavam de namoro trançado.

Muitos se arreliaram com isto. O preto-velho, porém, se encheu da maior das raivas, e os seus olhos, que pareciam duas postas de sangue, não se despregavam da sobrinha, como a ameaçando.

***

Todavia este incidente não desmanchou a festa. Ao contrário, como Manuelinha parecia ainda mais alegre que de costume, a rapaziada fez vista grossa ao namoro com o ilhéu e entrou no batuque, desembaraçada de preocupação. Oras bolas! Era senhora de gostar de quem quisesse.

Muitos até começaram logo a lançar olhar às outras moças, quando mais não fosse pra moerem a impostora que desprezara seus patrícios e estava agora se derretendo com um sujeito à-toa, vindo da estranja ou donde Judas perdeu as botas, só porque o pé-de-chumbo era de sangue sem mistura. Diziam, uns aos outros, despeitados:

— A negrinha quer limpar o sarro da senzala na barba do portuga.

No entanto estrugia o sapateado e quando cessava era apenas pra se fazer ouvir algum cantador que extravasava os queixumes ou os fingidos desdéns numa quadrilha estribilhada pelo Quero mana, lerê, quero mana! ou pelo Vai de roda, siá dona Geralda e outros.

Todos folgavam ou pareciam folgar com a maior alegria. Só Pedro, o preto-velho, acocorado num canto da sala, remoía a grande raiva concentrada.

***

Num dos intervalos do batuque e depois que alguns cantadores trocaram algumas trovas em desafio, Manuelinha se chegou a Guimarães, que não tirava os olhos de cima dela, e disse, com muitos requebros no corpo e doçura na voz e na fala:

— Cantes algo pra gente ouvir, seu Antônio.

Guimarães, assim rogado tão agradavelmente, ficou um tanto envergonhado, e torcendo a tramela da porta pra disfarçar a confusão, disse:

— Lá o cantar eu cantava, pois com a ajuda de Deus não nasci com a língua pregada, mas é que sei somente cantar à moda de minha terra e talvez as pessoas que aqui estão não gostem.

— Por que não se há de gostar? — Disse a mãe de Manuelinha, uma mulata escura que outrora vivera amasiada com um português. — Até tem mais graça porque é uma coisa nova.

— Decerto que sim. — Confirmaram algumas outras mulheres — A gente já anda tão enfarada dessas modas daqui.

— Cantes, seu Antônio. — Rematou Manuelinha, arrebitando o nariz — Se alguém não gostar não faltará quem aprecie.

Ao ouvir tais palavras Guimarães entendeu que não devia mais resistir e assim falou:

— A sôra dona Manuela manda em quem bem quer lhe servir. Benha daí uma biola. Lá pelas nossas terras antes dum homem se pôr a cantar bota pra baixo um bom pichel de vinho. Mas como ele não há por cá, me mandem uma pouca de aguardente pra desencatarrar o peito.

Sendo logo servido no que pedira, Antônio tomou uma viola, a afinou a seu jeito, e, ao som de um estabanado rasgado, cantou o seguinte:

Ai!, belas manhãs da Lapa
E eu fui aos caramujos
Quando bejo mulher belha
Tiro meu chapéu e fujo
Sôra Maria,
Mestre Manel,
Quem mora na rua
Nan paga aluguel.

Riram todos a bandeiras despregadas com os versos do casmurro, e Manuelinha exultou de contentamento, por demonstrar àquela gente que o homem a quem distinguia não era pra aí qualquer pasmado. Todos gostaram dos versos, por muito estúpidos ou simplesmente por serem novidade naquele meio afeito às doçuras langues do Passo branco avoou e outras composições matutas. Todos gostaram, exceto Pedro, sempre sentado, no canto da sala, ficava cada vez mais sério e embezerrado. Se diria que tinha ciúme do triunfo que o português alcançava.

No entanto ninguém dava por isso, e Antônio Guimarães, se animando aos poucos, destampou outra vez o peito e berrou:

Ó! munina da labada
Rega teu manjericão
Que hoje estou devoleto
Amanhã estarei ou não
Senhor João do Norte
Bem todo ratado
Co'as buxigas loucas
Do ano passado.

Novas gargalhadas acolheram tal destempero poético. A caipirada achava um cômico irresistível nos versos do ilhéu, e Manuelinha, interpretando os risos como sinais de admiração, no tamborete em que se achava, se remexia de contentamento.

Pedro, cada vez mais enfiado, mastigava em seco no canto da sala, e Antônio Guimarães, impando de orgulho, e querendo mostrar à cabritada que era homem de recurso no braço duma viola, variando a música e o ritmo despejou dum só fôlego toda essa embrulhada:

Quando Cristo frumou Judas
Palácios de grande altura
Muita gente lá morreu
Foram para a sepultura
Casa grande tem fartura
Andam lebres nos trigais
Comem-n'as aves o milho
Quaim paga são-n'os pardais
Cabalo grande é trangola
Puquenino é perereca
Pau furado é biola
De caracol é raveca.

E deixando pender o corpo todo a Manuelinha, sentada a seu lado, rematou de forma assim extravagante sua lenga-lenga:

E agora, senhores meus
Uma coisa bou dizeire
Andam cabras pelo monte
Muito custa um bem quereire
Esta munina é minha
Compei-a numa audiência
Na Relação de Lisvoa
Na mesa da consciência.

Todos compreenderam perfeitamente a alusão que o português fazia à facilidade com que realizara a conquista amorosa, a despeito dos cabras que andavam naquele monte, e Manuelinha mostrava estar satisfeita com aquela declaração brutal.

Um murmúrio surdo de indignação se fez ouvir logo. Os caipiras olhavam uns aos outros, como se quisessem consertar algum plano contra o ilhéu, pois aquilo já estava cheirando a desaforo grosso, e Pedro, que ouvira toda a versalhada de Guimarães, dando sempre os sinais mais visíveis de indignação, entendeu que devia mostrar a todos que também sabia cantar. Deslumbraria o português, e conjuntamente a mulatinha, que não podia deixar de preferir seu canto.

***

Assim, logo que o português se calou, Pedro, como picado por tarântula, pulou ao meio da sala e a se desengonçar todo e a bater palmas, berrou descompassadamente em sua meia-língua:

Eh! Eh! Eh! Eh!
Maria sobe moro
Bunda teremê
Coração min dóe.

Pedro não pôde continuar. Manuelinha, envergonhada e irritada com aquela entrada estapafúrdia do tio, tão fora de tempo e de propósito, foi a seu encontro, e gritou com a insolência que lhe era própria:

— Cales a boca, burro!

— Burro não, sua malcriada! Mais respeito com teu tio! — Retrucou Pedro, enfurecido.

— Que tio! Que nada! Vosmecê não vê que não sabe cantar? Pra quê está aborrecendo a gente com essa porcaria de jongo. Sempre mostra que é negro!

Manuelinha não chegou a terminar bem a frase. Pedro, enciumado e ferido no amor-próprio de modo tão público desandou tão violenta bofetada, que a mulatinha se estendeu a fio comprido no chão.

Se levantou logo grande celeuma entre os foliões, e Antônio Guimarães, irritado com aquela ofensa à mulata, a qual já considerava como coisa sua, arrancou do pé o grosso tamanco ferrado de cravos de cabeça chata, e o vibrou com toda força na cabeça do negro, donde escorreu logo um fio de sangue.

Então ferveu o sarceiro. Diversos caipiras, querendo se tornar agradáveis a Manuelinha, se colocaram ao lado do português. Outros, porém, se declararam a favor de Pedro, e o pau roncou deveras, fazendo as mulheres grande berreiro.

Se quebraram diversas cabeças e muitos ficaram contundidos mas, afinal, todos se reconciliaram. Houve explicação de parte a parte, se trocaram desculpas e todos se mostraram dispostos a recomeçar o pagode.

Quem não se acalmou, porém, foi Pedro. Recusando lavar o sangue que escorria da cabeça lascada pelo tamancão do ilhéu, parecia endemoniado, e vendo que todos se voltavam contra si, por sua obstinação em insultar a sobrinha, pôs arrebatadamente na cabeça o chapéu de palha,

Foi à porta, e dali, cuspindo três vezes a dentro da sala e lançando à mulatinha um olhar terrível, disse:

— Negro, hem?! Negro?! Me pagarás!

Acabando de pronunciar tais palavras, desapareceu na escuridão da noite, deixando todos sob o peso daquela terrível ameaça dirigida à rainha da festa.

***

Não era uma coisa à-toa esse projeto de vingança formulado pelo preto-velho.

Todos o tinham como feiticeiro terrível e se sabia que fazia de rei nos canjerês arranjados pela negrada das fazendas vizinhas.

Sua habitação, uma choupana esburacada e mal coberta, metida no sambambaial da lomba duma serra onde vivia sozinho com um gato preto e um bode velho, estava atulhada de coisas estranhas, e todos a evitavam com horror. Eram cobras mansas, morcegos espetados nas paredes, sapos, braços de crianças pagãs que desenterrava nos cemitérios, dentes de animais peçonhentos e outras bruzundangas.

Ali vivia desde que se libertara, e muita gente se queixava de seus feitiços. Se dizia que seu olhar continha um fluido venenoso que matava os animais e causava moléstia nas criaturas. Com sua arte realizava desunião de casal. E lhe atribuíam mil outras perversidades.

Por isso ficaram todos apreensivos com a ameaça. Pedro não era pra graça. Aquilo era negro danado, couro azul, diziam os caipiras entre si, comia brasa de fogo, fazia vez de cururu.

***

Decorreram alguns dias depois da pouco edificante cena que acabamos de descrever.

Assustada durante os primeiros dias com a ameaça do tio, afinal Manuelinha a esqueceu completamente.

Guimarães pouco e pouco foi se insinuando cada vez mais no espírito da gentil mestiça, sabendo a conquistar, a seduzir, até que veio a se assenhorear completamente de seu coração, desejo, vontade, chegando à possuir. Se falava num futuro casamento mas ninguém acreditava, porquanto o português já quase morava em casa de Manuelinha, dormindo lá nos sábados, passando o domingo todo, pra só se retirar na segunda-feira.

Entretanto a ameaça de Pedro não fora vã, e durante certo tempo transtornou a paz em que a rapariga vivia.

Num domingo na manhã, Guimarães estando em casa, como de costume, Manuelinha pôs na cabeça um pote de barro e foi à fonte, a fim de trazer água pra cozinhar o almoço.

A fonte era pouco distante da casa. Se descia apenas uma pequenina ribanceira e ela surgia jorrando água cristalina, cantante, muito clara, muito fresca, deslizando entre imensas pedras limosas e toda cercada por largas folhas de inhame e de taioba.

A moça chegou ao puríssimo veio d'água, lavou rosto e os braços, encheu o pote, e se preparava pra o pôr na cabeça, quando sentiu um ruído nas folhas secas do matagal vizinho.

Tornando a descansar o pote no chão, procurou observar o que se passava e, se agachando pra olhar sob a ramaria avistou um moleque muito preto, coberto de andrajo e com grande quantidade de latas velhas amarradas no corpo.

Assim que os olhos pousaram sobre ele, o moleque começou a lhe fazer trejeitos e caretas. A moça, assustadíssima, correu a casa pra relatar o que vira à mãe e ao amante.

Guiados por Manuelinha correram os dois à fonte. Apenas chegados, a mulatinha, muito nervosa, gritou, apontando ao mato:

— Lá está o moleque, mamãe! Veja, seu Antônio! Te esconjuro, Diabo!

A mulata velha e o português olharam atentamente ao lugar indicado por Manuelinha, porém nada viram.

— Onde? — Perguntaram os dois ao mesmo tempo.

— Ali, gente! Mesmo em frente de nós. É moleque muito preto, todo coberto de mulambo e com uma porção de lata velha pendurada no corpo. Ouvis como batem as latas entre si!

— Eu não bejo nada! — Exclamou Guimarães, esfregando os olhos já cansados de tanto olhar.

— Nem eu! — Disse a mulata velha.

— Ó homem! Estão cegos? — Disse Manuelinha, se tornando cada vez mais agitada. — Credo! O moleque virou num sapo muito grande e com cada olho! Aquilo é coisa mandada com certeza. Olhem como o sapo está inchando!

— Raios partam o sapo mal-o o moleque! — Disse Guimarães, já um tanto aborrecido. — Pelas cinco chagas de Cristo que eu nan bejo nada!

— Chi! — Continuou a mulatinha. — O sapo virou uma cobra vermelha. T'arrenego, Coisa-ruim!

— Tu estás douda, rapariga! — Exclamou Guimarães. — Ali não há cobra nem cousa biba nenhuma! Não estás voa, com certeza!

— Pois você não vê ali uma cobra tamanhona! Olhe, veja bem como ela se enrosca nos paus e dá botes a todos os lados. Ai, meu-deus! Agora virou num lagarto. E lá vem ele a cima de nós. Foge, seu Antônio, foge mamãe. Aquilo é coisa mandada!

E não pôde dizer mais. Caiu redondamente ao chão e começou a estrebuchar em convulsões medonhas. Num momento as roupas ficaram em tiras, e ela, com a barriga e as pernas nuas, se torcia doidamente no chão, se ferindo no saibro da vereda.

Os olhos viraram a trás, a boca se torceu e dos cantos dos lábios começou a borbulhar uma espuma esverdeada.

— Meu Deus! O que é isso que estou vendo? — Disse a mãe, tomada de assombro. — Minha filha, o que é isso? Fales, respondas a tua mãe.

Entrementes, Guimarães observava atentamente todos os movimentos da moça e a transformação no semblante transtornado. Se diria um médico embaraçado com um diagnóstico difícil.

Afinal bateu com a pesada mão no ombro da mãe de Manuelinha e disse, possuído da maior convicção:

— Bocemecê quer saber que tem tua filha?

— Digas, seu Antônio, pelo amor-de-deus!

— Tua filha está com o Diabo no corpo. São as artes do tal negro belho.

***

Depressa correu, em toda a redondeza, que Manuelinha, a flor das mulatinhas do sertão, estava com o Diabo no corpo e sua casa começou a afluir visita de mulher e homem. Todos queriam verificar com os próprios olhos aquele caso estranho, e depois que examinavam a enferma, saíam plenamente convencidos de que a infeliz era presa dum demônio que se comprazia em a torturar. E choviam as maldições sobre Pedro. Pois quem, a não ser ele, seria capaz de tamanha perversidade?

Na verdade os sintomas da moléstia eram muito singulares. A barriga começou a lhe crescer de modo espantoso, se diria em adiantada gravidez, e nas crises agudas ela se torcia como uma possessa na cama, injuriava a todos, proferia obscenidade, e, o que é mais singular, às vezes ficava suspensa no ar durante um ou dois minutos. Nesses momentos os olhos viravam mostrando somente o branco, a boca entortava e escorria copiosa espuma.

Outras vezes discutia com o Demônio que em si encerrava, e ao qual dava o nome de Caviru. O insultava ou lhe rogava que a deixasse. Outras ainda sua voz mudava. Parecia doutra pessoa e começava a dizer frases incoerentes ou de sentido misterioso.

Vieram muitos curandeiros visitar a inditosa rapariga. Várias mulheres a fizeram engolir drogas nauseabundas mas ninguém fazia melhorar a pobre moça que dia a dia definhava sobre o catre.

Todos se condoíam do lastimável estado da pobrezinha, e Guimarães estava inconsolável.

***

Essa triste situação durou algumas semanas e a moça ia cada vez a pior, quando veio a visitar uma preta-velha, que era a sua madrinha de apresentação.

Manuelinha, assim que a madrinha assomou à porta começou a gritar horrivelmente, como se a cruciassem dores pungentíssimas.

Todos se admiraram com o que estavam presenciando, porém tia Maria não se abalou e disse aos mais que ficassem tranquilos, pois tiraria o Diabo do corpo de sua afilhada.

— O coisa-ruim já me conhece. Agora vai ele ver o ruço comigo.

— Quando ele, o estapoire saire, logo se conhece. A rapariga há de daire um grande bufa.

— É tal e qual. — Confirmou tia Maria. E dizendo isso a preta agarrou a afilhada nos pulsos e gritou:

— Caviru! Caviru! quem te mandou ao corpo desta menina? Fales!, Coisa-ruim.

A moça se torceu toda, porém os lábios não se descerraram.

— Você fala ou não fala?, Caviru.

Nenhuma resposta se ouviu.

— Á! Essa peste está reinando! Vão buscar uma vara de guiné e um galho de arruda. Á!, preto-velho caborjeiro, eu bem conheço tuas maldades! Fazer isso com a pobre minha afilhada!

E começou a rezar e a benzer a sobrinha em todas as direções.

Dali a pouco lhe trouxeram a vara de guiné e o galho de arruda.

— Vão agora buscar um gato preto, pro Diabo passar ao corpo dele. Só quando a rapariga der um bufo é que ele sai.

Enquanto procuravam o gato tia Maria amarrava com um largo tinteiro o galho de arruda sobre o roliço ventre da moça, e chegando o gato, ordenou a Guimarães o amarrar.

***

Todos acompanhavam o preparativo com o maior interesse. Tia Maria, depois de riscar três cruzes com o dedo molhado em azeite sobre os seios da moça, que estava nua sobre a cama, pegou da flexível vara de pau-guiné e gritou de novo:

— Caviru! Caviru! Quem te mandou ao corpo desta menina?

Como nas outras vezes nenhuma resposta se fez ouvir. Então a preta-velha vibrou com a vara de guiné uma forte vergastada nas nádegas carnudas da moça.

Manuelinha deu um grande grito e esperneou na cama.

— Anda, Peste! Quem te meteu aí?

Ainda nada de resposta e a vara de guiné tornou a silvar no ar e a cair sobre a carne da moça.

— Fales, Desgraçado! Quem te meteu aí?

E como o Demônio se obstinasse em não dar resposta, a velha amiudou as varadas, aos gritos da infeliz que pinoteava no leito, até que afinal a moça, como fazendo um grande esforço sobre si, gritou convulsivamente:

— Foi Pedro!

— Eu nan disse que era aquele estapoire! — Disse logo Guimarães.

— Segure o gato, seu Antônio! Caviru já obedece, agora ele tem que sair. Queira ou não.

E tocou a zurzir a vara nas nádegas da moça, aos berros de Sai! Sai, maldito!

A moça, já com a carne todas lanhada, cada vez gritava mais.

— Segures o gato!, seu Antônio. O bicho está aqui fora.

— Cá o tainho bem preso pelo toutiço.

Entrementes a vara não descansava. A mãe de Manuelinha a segurava nos braços, outra agarrava as pernas. Guimarães, no meio do quarto, segurava o gato no cangote.

De repente a moça se inteiriçou toda no catre e exalou um suspiro. Ao mesmo tempo o ventre, que até então se conservara duro como o diafragma dum zabumba, emurcheceu subitamente e um forte cheiro de gás ácido sulfúrico, acompanhado de estrondo, se espalhou no aposento.

— Solte o gato!, seu Antônio.

Guimarães soltou o bicho dizendo:

— Eu nan lhes disse que o estapoire só sairia do corpo da moça, quando ela desse uma grande bufa?

O gato, assim que se viu livre das garras do ilhéu, ganhou a janela num salto e a miar como um desesperado fugiu ao mato com a cauda erguida e o pelo todo eriçado.

— Vás, excomungado, às areias gordas. — Gritava tia Maria. — Graças a nossa senhora da Conceição, saiu o Diabo do corpo de minha afilhada. Á!, Pedro! Feiticeiro danado! No Inferno pagarás esta grande maldade. Te esconjuro!, Coisa-ruim.

Todos ficaram convencidos de que o Tinhoso escapulira do corpo da moça. Por conseguinte estava terminado o sofrimento.

Efetivamente Manuelinha, caindo primeiro numa grande prostração, foi se restabelecendo a poder de gordos caldos de galinha, e no fim dalgumas semanas estava curada.

Guimarães, dali a seis meses comprou um pequeno sítio e lá foi viver com a mulatinha. Dentro de anos juntou alguns cobres, porém tinha sempre no nariz e nos ouvidos a grande bufa que a rapariga soltara, quando o Diabo lhe saiu da entranha.


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Ano de publicação: 1925.
Origem: Brasil (Nordeste)

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