segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

O canto da coruja (Contos de Morte), Viriato Padilha

 

O CANTO DA CORUJA 

O pio da coruja é um sinistro agouro, crê muita gente. Os fatos às vezes justificam essa superstição popular.

Estava nessa condição o que passamos a relatar.

***

O velho doutor Sebastião Nolasco e sua esposa, a veneranda dona Sebastiana, apreciavam imensamente o jogo do solo; e durante o mês em que passei na cidade em que moravam, fui parceiro obrigado dos Sebastião todas as noites, das 8h às 10h.

Sebastião Nolasco era médico ilustre. Além disso possuía variado conhecimento e tinha uma bela prosa. Assim, era com o maior prazer que eu me sujeitava a parceirar consigo.

Uma noite estávamos os três empenhados no jogo. Se distribuíram cartas, e logo que o doutor abriu as suas na mão esquerda, lhes dando a forma de leque, notei que os olhos despediram um lampejo vivíssimo e a fisionomia se tornou radiante.

Doutor Sebastião jogava de mão. Assim, logo que verificou bem as cartas, exclamou com ar de triunfo:

— Bolo natural em ouro!

Como sabem todos que conhecem o solo, um bolo natural em ouro é a maior dita que pode ter o jogador. E doutor Sebastião, muito satisfeito, deporia as cartas na mesa, quando bem sobre o telhado da casa piou uma coruja, soltando a risada medonha, seguida dum ruído semelhante ao que se faz ao rasgar um pano novo.

Imediatamente doutor Sebastião ficou pálido como um defunto.

— Sentes algo?, doutor.

— Pois não ouviram? — Perguntou, quase sem fala.

— O quê?

— A coruja.

— Á! Sim! Ouvi distintamente. Mas o que tem isso?, doutor.

— Á!, meu amigo. Não joguemos mais hoje. O pio dessa coruja me abalou de modo estranho todos meus nervos e músculos. E eu, que não sou supersticioso, não sei por que motivo como o que vi na terrível risada de tão feia ave um aviso de grande desgraça que pesa sobre mim. É uma coisa incrível o que estou sentindo. Eu, que nunca acreditei em agouro! Boa noite, meu amigo, guardemos o final da partida na manhã.

E dizendo isso doutor Sebastião se recolheu ao interior da casa, visivelmente impressionado. Eu, me despedindo de dona Sebastiana, tomei o chapéu e me retirei.

Meus negócios particulares me obrigaram a me retirar da cidade logo no dia seguinte ao que teve lugar essa cena, que, seja dito de passagem, só me causou emoção muito leve. Já decorreram quinze dias que deixara aquele lugar, quando numa tarde o estafeta me entregou uma carta vinda via correio e tarjada de preto.

Estremeci e abri a carta cheio de apreensão. Estava assinada pela veneranda dona Sebastiana e me comunicava a morte do marido, o excelente doutor Sebastião Nolasco, meu bom parceiro no solo.

Disse dona Sebastiana na carta:

Desde o momento que aquela maldita coruja soltou a infernal risada, isto quando meu marido fazia o bolo natural em ouro, não teve mais um momento de tranquilidade, e a todo o instante me dizia que a triste ave rasgara o metim de sua mortalha. Debalde procurava o distrair de tão fúnebre ideia. Não pensava noutra coisa, e no fim de três dias caiu de cama com febre violenta, que sempre aumentando lhe trouxe a morte dali a outros três dias. É notável que a maldita coruja que lhe pedisse esse fatal acontecimento, na noite em que meu bom marido morreu, veio outra vez se empoleirar na cumeeira de nossa casa e gelou a todos de horror com sua sinistra risada.

 

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Ano de publicação: 1925.
Origem: Brasil (Nordeste) 

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