quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Joaquim, o enforcado (Histórias da avozinha), de Figueiredo Pimentel

 

JOAQUIM, O ENFORCADO

Ter um ofício qualquer que seja ele, por mais rude que possa parecer, mesmo o mais brutal e pesado, é a melhor coisa que pode haver. É por isso que o Positivismo, a bela e nobilíssima religião da Humanidade, fundada pelo imortal filósofo Augusto Comte, exige dos seus adeptos que aprendam um ofício, que tenham uma profissão, uma arte manual. Devia até ser obrigatório a todos os cidadãos.

Ora, ouçam, o que sucedeu a três irmãos: João, José e Joaquim.

Vivendo numa cidade antiga, há muitos e muitos anos passados, o mais velho, João, aprendeu para ferreiro, José para carpinteiro, e Joaquim para barbeiro.

Quando já se achavam mestres em seus ofícios, os dois primeiros solicitaram do pai licença para irem ganhar a vida, e lhe pediram a bênção à hora da despedida.

Joaquim quis também ir correr mundo; mas em vez da bênção, que não lhe encheria a barriga, disse o perverso e mau rapaz, em tom zombeteiro, que queria a pequena herança que lhe coubera por morte de sua mãe.

Por isso foi castigado. Quando saiu de casa, ao transpor a porta da rua, deu uma topada tão forte que lhe arrancou uma unha. Foi esse o primeiro contratempo que teve.

Enfurecido, vendo estrelas ao meio-dia, cego com a dor, exclamou:

— Diabos te levem, porta do inferno!...

Ouvindo-o o pai retorquiu-lhe

— É no inferno mesmo que hás de ir parar um dia, filho desnaturado!

Joaquim respondeu com mau modo, e partiu em busca de João e José, seus irmãos.

Depois de haver andado por muitas cidades, indagando sempre se não tinham visto dois irmãos, um ferreiro e outro carpinteiro sem que ninguém soubesse lhe dar notícias deles, já estava desanimado de os encontrar, quando chegou, uma vez, a uma grande capital.

Como já era tarde, foi dormir na guarda do Tesouro, tendo pedido licença ao sargento comandante. Sucedeu, porém, que nessa noite os ladrões arrombaram as portas para roubar o dinheiro que ali havia.

Sendo pressentidos, foram presos, e também Joaquim, foi tomado como cúmplices deles.

Não tendo naquela cidade quem o conhecesse, o rapaz escreveu a seu pai, mas este não lhe respondeu, justamente queixoso com as ingratidões e infâmias daquele malvado filho, indigno e desrespeitador.

Achando-se Joaquim no cárcere, cumprindo sentença, aconteceu que o ferreiro da cadeia onde estava o irmão precisasse de um oficial do mesmo ofício, e João apresentou-se como ferreiro, e foi aceito, começando a trabalhar logo na forja. Como era bom oficial e muito hábil, dentro em pouco tempo passou a contramestre.

Mais tarde precisou-se de um carpinteiro e José ofereceu os seus serviços.

No dia em que Joaquim dava entrada na cadeia, preso, escoltado por seis soldados, João e José, usando da grande consideração com que eram tratados pelo administrador das prisões, por serem ótimos oficiais e homens honrados e dignos, foram empenhar-se com o rei para soltar o irmão, alegando que ele era inocente.

Sua majestade não lhes atendeu o pedido e o mais moço foi condenado à forca, ao passo que os verdadeiros ladrões que haviam arrombado o Tesouro foram absolvidos recaindo toda a culpa, por uma dessas fatalidades inexplicáveis, um desses erros muito comuns na justiça de todo os países, sobre o inocente.

No dia da execução, na praça pública, quando Joaquim já estava quase a ser enforcado, chegou um cavaleiro a toda a brida, gritando que suspendessem tudo. Dirigiu-se ao palácio do rei e disse-lhe:

— Venho para que atendas ao pedido que te fizeram os irmãos daquele inocente, e isso quanto antes senão morrerás, e Joaquim ficará com o teu reino.

O rei pasmado com tamanha audácia, e ao mesmo tempo encolerizado, bradou:

— Quem és tu, homem atrevido, que vens ao meu palácio me ordenar coisa que não quero fazer? Vai-te embora, senão mando-te fazer companhia àquele pobre diabo que a esta hora já deve estar enforcado.

O cavaleiro, que era o diabo, soltou estridente gargalhada. Em seguida encostou um dedo na fronte do rei, que tombou fulminado, como se fosse um raio que lhe tivesse caído em casa.

Ficou o ex-preso, pois, com a coroa, e João e José tornaram-se vassalos de seu irmão.

Essa notícia correu mundo, e chegou até aos ouvidos do pai de Joaquim, que, quando soube que o seu filho era rei de um grande e opulentíssimo país, se dirigiu ao palácio, pedindo-lhe perdão pelo que tinha dito quando saíra de casa.

Joaquim respondeu:

— Fique sabendo meu pai, que passei por grandes aflições, disse o rapaz. Estive preso por ladrão, e quase fui enforcado; vi a morte de perto, e quem me salvou foi o diabo. Quem o há de valer nos mesmos perigos será minha mãe. Por isso quero que a traga aqui, sob pena de mandar enforcá-lo.

O velho humilhando-se, respondeu cheio de medo:

— Ah! rei, senhor e caro filho. Tua mãe eu a mandei matar por ter três crianças. Quem te amamentou foi uma vaca, que hoje pertence ao Rei das Chamas e está no campo das Feras.

— Não quero saber disso. Quero já e já, sem demora, minha mãe e mais a vaca que me amamentou.

O velho retirou-se do palácio, muito triste, quando encontrou um cavaleiro que lhe perguntou por que motivo ia ele tão aflito.

O pobre homem narrou o que acabava de lhe suceder, chorando amargamente, porque sabia que ia ser condenado à morte.

— Pois eu vou te ensinar o remédio de alcançares o que desejas. Quando tiveres percorrido os três rios deste país, distantes um do outro mil léguas, encontrarás o que queres.

O pai de Joaquim ficou espantado, ouvindo o que lhe dizia aquele desconhecido. Quis indagar de que maneira conseguiria tamanho impossível, mas não teve tempo, porquanto o misterioso cavaleiro deu de esporas ao cavalo; e partiu na disparada, rápido como um relâmpago.

O velho, pôs-se, então, a matutar.

Lembrando-se que tinha fatalmente de fugir, para ver se conseguia escapar aos furores do novo rei, resolveu seguir o conselho do cavaleiro, pois tanto lhe fazia ir para um como para outro lado, e era bem possível que tivesse ligado com Satanás, e assim viesse a ser bem sucedido.

***

Pôs-se, então, a caminho, no mesmo instante, e tão depressa viajou, que, ao fim de três dias, chegou à margem do primeiro rio.

Não podendo atravessá-lo, por já ser escuro, e não ter canoa, ou qualquer outro meio de transporte, dispôs-se a passar aí a noite. Entrou num buraco ou gruta, cavado na ribanceira, e deitou-se.

Ora, era nesse lugar que os diabinhos se re­uniam, à meia-noite, para se comunicarem as bruxarias que faziam pela Terra, antes de se retirarem para o Inferno. Julgando-se a sós, puseram-se a conversar.

O diabo, que era o mais velho, perguntou a um deles:

— Ó Capenga! que fizeste hoje?

— No reino das Chamas fiz uma mulher ter três filhos gêmeos, porque sabia que o marido havia de matá-la.

Os outros diabinhos, cada um por sua vez, contaram então as suas proezas.

Pela madrugada findou-se a sessão; e o velho, que não tinha dormido, levantou-se do lugar onde estava e continuou a viagem.

Andou quinhentos dias e, no fim desse tempo encontrou o segundo rio. Deitou-se à margem para dormir, por ser noite fechada, e não poder atravessá-lo.

À meia-noite chegaram Fadas, em vez de demônios que ali se reuniam em certos dias do ano, em numerosa assembleia.

Sentaram-se, e a mais velha propôs:

— Vamos contar os nossos feitos pela Terra.

Uma delas tomou a palavra:

— Eu fiz um rei deserdar a filha do trono.

— Eu encantei o reino das Maravilhas, disse outra, e só o desencantará João, o Ferreiro, que é vassalo do irmão.

— Eu, retorquiu a terceira, encantei a cidade do Amor, que só será desencantada pelo José Carpinteiro.

— Eu o reino das Chamas, que só desencantará ­Jorge, pai dos três felizes que hão de ser reis, mas só depois de andar mil semanas. Terá que passar três dias debaixo da água, e ser comido pela serpente. Depois de tudo isso, será então, feliz – falou a última fada, dando-se assim por terminada a sessão.

O velho estava mais morto do que vivo, por ouvir que tinha de passar por tantas provações.

Estando muito fatigado, viu uma gruta e deitou-se para adormecer.

Ia adormecendo, quando ouviu uma voz, que lhe, disse:

— Levanta-te, depressa, segue tua viagem, senão serás comido por uma serpente.

Acordou e começou a correr. Mas já era tarde; foi engolido por uma enorme serpente, que o perseguia.

Aí, no ventre do bicho, viveu ele quatrocentas e noventa e sete semanas, quando ela entrou num grande rio, conservando-se três dias dentro da água.

No fim do terceiro dia morreu, e foi parar na outra margem, à beira das matas encantadas no reino das Chamas.

O velho saiu de dentro da barriga da serpente, muito magro e fraco. Adormeceu sobre a relva macia, e ouviu outra vez a mesma voz, que lhe dizia:

— Levanta-te e acompanha-me. Pega nestas chaves, abre aquela porta e todas as outras que encontrares em tua frente. No último quarto verás uma caixa com uma bola de vidro, e dentro da bola um fio de cabelo. Em uma gaveta da mesa que ali verás, está uma espada. Amola-a bem, até ficar afiada como uma navalha. Em seguida quebra a bola e apanha o fio de cabelo. Corta-o nos ares. Se o não cortares da primeira vez, todos os bichos ferozes que existem nas matas encantadas irão sobre ti e te devorarão. Se ao contrário, conseguires fazer o que te digo, serás feliz.

O velho seguiu, tremendo, o caminho que lhe ensinavam.

Abriu todas as portas que encontrou, e, ao chegar ao último quarto, viu os objetos que a voz lhe indicara.

Levou um dia inteiro a amolar a espada, que ficou mais afiada que uma navalha. Depois, deu um golpe no fio de cabelo, partindo-o em dois, enchendo-se, então, a casa de sangue. Tantos eram os pingos, quantos soldados apareceram.

Apareceram-lhe, depois, sua mulher mais a vaca que amamentara Joaquim. Levou-as ao rei.

Viveram todos muitos felizes, sendo o pai e cada um dos irmãos, João e José, reis de três países riquíssimos.

 

---
Ano de publicação: 1896.
Origem: Brasil (Reconto)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

Nenhum comentário:

Postar um comentário