domingo, 12 de dezembro de 2021

A vingança do morto (Contos de Assombração), Viriato Padilha

 

A VINGANÇA DO MORTO

A história que passamos a contar e que desentranhamos duma velha crônica, já rendada pela traça, remonta ao primeiro período da colonização do Brasil. Teve como teatro a velha capitania de Pernambuco, e começa em tempos do governo-geral de Manuel Teles Barreto.

***

Lopo de Vila-Flor era quem, com toda a franqueza e sencerimônia, se pode chamar um refinado patife.

Bêbado, jogador, devasso, desordeiro e mesmo ladrão, quando se lhe oferecia ocasião de defraudar o alheio, o governo de Portugal se viu obrigado a o deportar ao Brasil, não obstante ser filho espúrio dum dos condes de Vila-Flor, gente que surgia na primeira linha da nobreza lusitana.

Não eram raros os indivíduos desse quilate entre os fidalgos do século 16. Os extensos privilégios que gozava a nobreza, a noção errônea e perniciosa do demérito trazido pelo trabalho, a divisão social em classe, a frouxidão da justiça, embaraçada e desvirtuada pela incompreensão do princípio de equidade, uma pesada ignorância, fanatismo e preconceito de toda a casta, influíam tão diretamente na depreciação do caráter, que até príncipes herdeiros presuntivos da coroa, como esse filho de Henrique IV de Inglaterra, e outros, figuram às vezes na tradição como heróis de orgia, onde da bebedeira se passava ao roubo e ao homicídio, sendo em seguida tudo isso lavado da consciência por uma rica dotação a um convento ou uma peregrinação aos grandes centros de devoção cristã: Jerusalém, Roma, Santiago, etc.

Ora, nesse caso estava o herói da presente história. Filho do conde de Vila-Flor com a viúva dum fidalgo que morrera na Índia pelejando pelo lustre das quinas portuguesas, Lopo fora criado com todo o carinho e mais que exagerada solicitude no faustoso solar do conde. Crescera, lhe sendo permitidas pelo pai todas as extravagâncias, e cedo os fâmulos e servos começaram a suportar o gênio caprichoso e brutal do fidalguinho, sempre desculpado pelo velho conde que por ele tinha uma afeto vivíssimo.

Chegando à idade viril começou dilatado assim o campo de suas aventuras, a exercer sua índole, mas nos simples campônios, que o tinham por verdadeiro demônio: Quotidianamente chegavam ao pai notícias de espancamento, desrespeito a donzela e perversidade de toda espécie praticadas por seu Benjamim, que tanto cresceu em audácia e cinismo que um dia levantou mão criminosa contra o pai, quando o repreendia por certo delito.

O velho e honrado conde se indignou de tal forma com esse iníquo procedimento do infame, que, fazendo calar o grande amor que lhe consagrava, o expulsou da casa paterna, o cobrindo de maldição.

Então Lopo passou a Lisboa, onde, em consequência do alto conceito que gozava sua família, recebeu logo ao chegar favorável acolhimento na corte. Cedo, porém, revelando o degradante fundo de seu caráter, se incompatibilizou com a sociedade lisbonense, e a polícia do rei se viu obrigada a o deportar ao Brasil, onde não seria tão prejudicial por ser este país uma terra larga, dizia o alvará que o remeteu.

Eis a personagem que figurará como protagonista da presente história.

***

Com a mudança de ar Lopo não modificou seu comportamento, e a população de Olinda contou desde o dia de sua chegada com mais um flagelo em seu seio. Sua vida decorria entre o bordel, a taberna e a espelunca, se lhe atribuindo grande número de desacatos às pessoas e lesões às propriedades. As coisas chegaram a tal ponto que o ouvidor lhe moveu séria perseguição, e nosso valdevinos, pra se furtar às garras da justiça, se evadiu de Olinda numa madrugada, buscando a vila do Cabo. Com isso se contentaram os moradores da velha capital pernambucana e o ouvidor deu por finda a missão.

A nossa irá mais longe. E nessa batida não abandonaremos mais o tresloucado fidalgote.

***

Havia duas horas que Lopo cavalgava em direção ao Cabo, e o sol já vinha rompendo, quando percebeu em sua frente outro cavaleiro, que seguia na mesma direção. Lopo, se interessando em saber quem era o cavaleiro, deu de espora à égua que montava e em breves minutos emparelhou com o matutino viandante.

Era dom Sancho, jovem fidalgo seu conhecido, bom rapaz, porém um tanto amigo do jogo, fato que permitiu a Vila-Flor travar consigo relação numa espelunca.

Se cumprimentaram alegremente e logo entabularam conversação. Dom Sancho ia à vila da Escada visitar um tio, rico proprietário de engenho dessa localidade. Lopo, ocultando o verdadeiro motivo de sua retirada de Olinda, disse ao companheiro que se dirigia à vila do Cabo por motivo de negócio.

Não falaram mais sobre os motivos da jornada, e começaram os dois, ao trote largo das cavalgaduras, a confidenciar sobre a vida em Olinda, e principalmente sobre aventuras de jogo.

Assim chegaram a um ponto em que o caminho era atravessado por um límpido regato. Então dom Sancho, se virando a Vila-Flor, disse:

— Amigo, já que o acaso nos reuniu pra companheiros de jornada, permitas que te convide a participar dum magro almoço que aqui trago, o qual, embora pouco sólido e variado, servirá pra restabelecer em nossos estômagos certo equilíbrio.

— De bom grado. Mesmo porque o ar fresco da manhã e o trote deste cavalo me abriram danadamente o apetite.

— Nesse caso façamos alto aqui, a fim de aproveitar esta belíssima água.

— Como queiras.

Se apearam, amarraram os cavalos no tronco dum espinheiro, e se sentaram comodamente na barranca, a fim de apreciar o almoço, que constava duma boa lasca de presunto, um requeijão, farinha de mandioca e um botijão de excelente vinho português. Comeram e beberam melhor, tudo na mais satisfatória harmonia, e, terminada a refeição, Lopo disse ao companheiro:

— Pra que nossa pequena festa seja completa devemos agora jogar alguns cruzados numa pequena parada.

— Mas onde estão os dados?

—  Os tenho aqui.

— Todavia não jogo, pois não venho suficientemente abastecido de dinheiro.

— Nem eu também me acho folgado. No entanto, 20 ou 30 cruzados que se percam a ninguém aleijam, nem pelo temor de os perder se deve deixar escapar tão boa ocasião.

— Vá lá. Porém com uma condição.

— Aceito desde já.

— É que quando um de nós perca 40 cruzados não se jogará mais.

— A mil maravilhas. Todo meu dinheiro é apenas 50 cruzados. Assim ficarão ainda 10 pro gasto.

Convém observar ao leitor que 50 cruzados, ou por outra, 20 mil réis, eram naquele tempo uma quantia assaz importante, a se regular pelos ordenados dos governadores-gerais, os quais, embora representassem a pessoa real e tivessem um mando que ia até o direito de morte em peões e gentios, apenas percebiam 400$000 anuais.

Estabelecida a preliminar da suspensão do jogo, logo que um dos parceiros perdesse, 40 cruzados, Lopo, tirou do bolso do gibão uns dados de osso, e começou a partida, tendo cada um parado 10 cruzados de mão.

Lopo perdeu, e dom Sancho embolsou o dinheiro. Se seguiu outra partida, também de 10, e Lopo tornou a perder. Já um tanto impaciente, Lopo jogou na terceira partida o resto dos 40 cruzados da convenção, isto é, 20.

Tornou a perder, e dom Sancho, embolsando as moedas, se levantou disposto a prosseguir viagem. Vila-Flor o deteve com estas palavras:

— Amigo, joguemos mais uma partida.

— De forma nenhuma. Segundo dissestes, vosso dinheiro constava unicamente de 50 cruzados, e perdestes 40. Com que dinheiro fareis o resto de vossa jornada, se a sorte continuar a fugir de vós numa nova parada? Tenho por princípio inabalável não restituir dinheiro ganho no jogo, ainda que o perdesse meu próprio pai. E depois foi a condição que ditei antes de começarmos o jogo.

— Com que, então dom Sancho, — redarguiu, colérico, o filho do conde de Vila-Flor, — me arrancaste 40 cruzados e assim me deixais no meio da estrada, quase sem dinheiro pra pagar a hospedagem na primeira albergaria?! Permiti que vos diga, dom Sancho, que vosso procedimento se assemelha muito ao dum bandido de estrada.

Ao ouvir essa inconcebível insolência, dom Sancho corou até a raiz do cabelo e, colocando a mão no copo da espada, respondeu com altivez:

— Senhor Lopo, se a nobre família de Vila-Flor tem por hábito tragar sem protesto de ponta de espada insultos como o que acabas de proferir, nunca a de Sancho de Miranda, em todos os descendentes, até o mais longínquo futuro, sofrerá sem responder ao atrevido, lhe enristando o ferro dos desagravos honestos.

Eram de bom gosto nesse tempo essas tiradas infladas de bazófia e sensitivos pundonores, mas assim como se dizia se fazia, e, seguindo a regra dom Sancho procurou desnudar a espada.

Se embaraçou, porém, em a tirar da bainha, e o pérfido Vila-Flor se aproveitando desse desarmamento momentâneo, sacou sua adaga e a enterrou até as guardas no peito do inimigo.

Dom Sancho, sem soltar um gemido, tombou, golfando sangue na boca.

Em três segundos era cadáver.

Lopo, lhe saqueando as algibeiras, arrastou o corpo a junto dum penhasco, que da estrada não se percebia, e em seguida continuou a viagem, sem se preocupar o mais levemente possível com o monstruoso crime que acabava de perpetrar.

Ora! Tinha na algibeira dinheiro suficiente prà crápula. O que lhe importava o cadáver feito por suas mãos, que apodrecia junto à estrada, sem ao menos uma cruz presidindo à final consumação da carne?

Passou o tempo. Insuficiente como era a polícia no primeiro período da colonização do Brasil, tendo de se exercer com minguadas forças e em dilatadas extensões, apesar do esforço empregado pela família de dom Sancho, a fim de o descobrir, o crime de Lopo não foi conhecido, e o assassino continuou a desregrada vida de bebedeira, jogatina e crápula.

Cinco anos já eram decorridos, quando aconteceu um dia cursar Vila-Flor o caminho entre a Escada e Olinda. Era a primeira vez que isso acontecia, depois que ali praticara o nefando homicídio, do qual já bem pouco se lembrava.

Cavalgando, chegou ao riacho, onde cinco anos antes fizera a merenda e jogara aquela partida de dado que tão fatal fora a dom Sancho.

Então lhe veio ao pensamento todos os incidentes daquela triste cena, e como por sugestão diabólica teve uma viva curiosidade de examinar o lugar onde depositara o cadáver do inditoso mancebo. Não pôde resistir à tentação, e, se apeando, se dirigiu ao penhasco. Logo o encontrou.

O cadáver apodrecera ali mesmo, e fora devorado pelos corvos. Os ossos estavam espalhados num circuito de 4 a 5 braças, no qual a relva fenecera.

Bem no centro da ossada dispersa estava a caveira.

Lopo teve um gesto de horror, assim que avistou esse resto, mas domando tal movimento, procurou se encher de coragem, e apostrofou a caveira da seguinte forma:

— Então, dom Sancho, queres agora jogar mais uma partida de dado?

E sorriu, admirado do próprio cinismo.

Porém grande foi o assombro ao ver a caveira se torcer no chão, com estalidos secos, e responder com voz de tão estranha modulação que gelou o sangue nas veias:

Vás seguindo teu caminho
Não perturbes minha paz
Joga, te encharques de vinho
Faças tudo o que te apraz
Por ora nada te oprime
E te digo mais nada
Mas tua conta de crime
Será na Bahia ajustada

Lopo, ao ouvir tão estranhos versos, cujo sentido não compreendia, sentiu o cabelo se levantar na cabeça, e o corpo todo tremendo. Assim permaneceu alguns segundos, porém, afinal, recobrando algum ânimo, correu, espavorido, à estrada, montou a cavalo, e a todo galope fugiu daquele sítio assombrado.

***

Mas as medonhas palavras que ouvira não podiam sair da mente. E assim, na primeira povoação aonde chegou procurou um padre e pediu que o ouvisse em confissão, comunicando ao sacerdote o crime e a terrível ameaça da fantástica caveira.

O padre ficou assombrado com o que ouvira, e, prescrevendo ao criminoso dura penitência, o aconselhou que nunca dirigir os passos à Bahia, pois as palavras da caveira anunciavam que nesse lugar encontraria castigo ao delito.

***

Durante alguns meses Lopo permaneceu apreensivo sobre seu destino, mas afinal a vida de dissipação que levava, e o firme propósito que formara de nunca ir à Bahia, o tranquilizaram de todo. Assim pouco a pouco foi perdendo a lembrança do sucedido.

Nesse tempo os holandeses invadiram Pernambuco, e vencendo a tenaz resistência que lhes opusera o esforçado Matias de Albuquerque, conseguiram destruir o arraial de Bom-Jesus e expelir os portugueses de Pernambuco, depois de os derrotar em diversos pontos.

Lopo pelejava ao lado dos portugueses, como comandante duma companhia, e, assim, quando o príncipe de Bagnuolo, após o insucesso de Porto Calvo, se retirara a Alagoas, Lopo, bem como todo o exército português, fora obrigado a o acompanhar.

Senhores de Pernambuco, os batavos perseguiram os portugueses até as margens do São Francisco, e eles, não podendo oferecer resistência eficaz ao inimigo, em Sergipe, tiveram de se recolher à Bahia.

Lopo se achou, pois, sem querer e sem pensar, no lugar que tanto temia, ali conduzido pelo acaso ou pelo desígnio da providência.

***

No entanto o filho do conde português não ligava mais importância às antigas apreensões. Os episódios da grande guerra em que estava empenhado, o espetáculo da morte que tantas vezes presenciara o tornaram inacessível ao remorso, e, como outrora, a única preocupação era jogar, beber e folgar.

Uma vez Lopo convidara alguns camaradas de arma almoçar consigo e depois jogar algumas partidas.

A reunião devia ter lugar numa sexta-feira, e Vila-Flor na manhã desse dia foi à praça a fim de comprar qualquer peça de carne com a qual regalar os amigos.

Com a permanência das tropas pernambucanas na Bahia, a vida nessa cidade ficara muito difícil, sendo geral a escassez de viver. Os que apareciam nas feiras eram logo arrematados por preços elevadíssimos e muitíssimas famílias começavam a sofrer dura privação.

Assim teve enorme dificuldade em encontrar um bom guisado pra oferecer aos convidados. No mercado da cidade nada mais havia de suculento pra comprar, tendo de se contentar com uma cabeça de carneiro, cujo corpo já fora arrematado por alguns oficiais que andaram mais adiantados.

Embora mortificado por esse contratempo, pagou bem caro a cabeça de carneiro, a metendo dentro dum saco de estopa, e a levou até casa, confiado que seu cozinheiro, um crioulo baiano, saberia dar a essa peça inferior um tempero digno do paladar dos amigos.

***

Quando chegou a sua habitação, lá já estavam os convidados. Eram quatro ou cinco rapazes alegres, que o receberam comuma salva-de-palma e exclamação jubilosa. Disse um:

— Com que, então temos hoje um almoço de arromba?

— Qual o quê! — Respondeu Lopo, contristado — Nos mercados nada encontrei digno de vós. Tudo já fora arrematado. Em caminho me encontrei com um gordo frade franciscano, que conduzia embrulhado no hábito seboso um excelente capão. Tive ímpeto de assassinar aquele guloso servo de Deus e roubar o bicho, que daria uma magnífica cabidela, porém temi me encontrar no Inferno com aquele patife, o qual, por seu compadresco com o Diabo, me obrigaria a restituir o frangão.

Uma gargalhada acolheu essa tirada.

— Mas, então, nada encontraste?

— Isso não. Trago uma bela cabeça de carneiro, que, sendo confiada à habilidade do nosso Lourenço, que em matéria de cozinha é mais perito que seu primo Henriques Dias, em questão de guerrilha, nos dará um almoço regular.

— Pois, então, viva a cabeça de carneiro, em falta de coisa melhor! — Exclamaram os rapazes, alegremente.

— O que garanto é que é uma cabeça de carneiro do tamanho da dum novilho. Eis.

E, dizendo isso, Lopo desceu a boca do saco e fez rolar o conteúdo no assoalho.

Mas, ó, que assombro!

Em lugar duma cabeça de carneiro rolou na sala, espadanando sangue, uma coisa monstruosa. O que Lopo e os convidados viram, no maior espanto, foi uma cabeça humana, medonhamente lívida, de olhos vidrados, lábios espumantes e cabelo empastado.

Um grito de pavor saiu de todos os peitos, e Lopo, não podendo conter a extraordinária emoção que de si se apoderou, exclamou, trêmulo e de olhos esbugalhados:

— Dom Sancho de Miranda!

O assassino reconhecera nos traços daquela espantosa cabeça as feições da vítima.

Nada mais pôde dizer. Uma névoa densa lhe obscureceu a vista, ganhou o corpo todo um torpor indizível, e rolou, sem sentido, na sala.

***

Compreenderam logo os companheiros que se tratava dum crime nefando, pois alguns reconheceram igualmente aquela cabeça como a de dom Sancho que havia muitos anos desaparecera da capitania de Pernambuco.

Assim entregaram Lopo à justiça, e o indigno, sendo tomado de estranha confusão, revelou imediatamente o crime que cometera, com todas as minudências agravantes.

Foi instaurado processo. Comparecendo a julgamento foi condenado à morte, sentença que a casa-da-suplicação de Lisboa confirmou. Como era nobre, não subiu à forca. Simplesmente cortaram a cabeça numa das praças da Bahia. E assim se cumpriu a estranha ameaça proferida pela caveira de dom Sancho.

Concluindo a crônica donde extraímos esta história:

E tudo assim aconteceu, pra que não ficasse no mundo sem castigo um homem que tantos agravos às pessoas e bens praticara. Um endurecido pecador que agora está purgando sua grande culpa na profundeza do Inferno.


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Ano de publicação: 1925.
Origem: Brasil (Nordeste)

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