sábado, 4 de dezembro de 2021

A filha do Diabo (Conto popular), de Teófilo Braga

 

A FILHA DO DIABO
 

Era uma vez um rei; tratava mal a rainha porque não tinha filhos, e como esta andava com uma grande aflição, numa hora de desespero, clamou:

— Quem me dera um filho, ainda que fosse por obra do diabo.

Passado tempo, a rainha teve uma menina muito linda, e o rei andava tão contente que não cabia em si. A criança medrava a olhos vistos, mesmo sem comer nem beber. Em pouco tempo ficou uma senhora, com um tino que maravilhava; sabia ler, escrever, bordar, cantar, tinha todas as prendas do mundo sem ter aprendido nada.

O rei todo orgulhoso da sua filha mandou deitar um pregão: Que se houvesse alguém que fizesse uma pergunta a sua filha e ela não fosse capaz de responder, se fosse homem havia de casar com ela, e se fosse mulher dar-lhe-ia uma tença. Veio muita gente de toda a banda, mas a tudo ela dava troco e deixava de boca aberta.

Um camponês, quis campar de esperto, e também se lembrou de ir ao chamado do pregão; meteu-se a caminho, andou, andou, e depois de muito cansado viu uma casa na encosta de um monte e foi ali descansar das calmas. O camponês encontrou ali um moço, e perguntou-lhe — se ele vivia ali sozinho?

— Não senhor; vivo com meu pai, que foi dar uma jeira a quem não pode dar outra, e com dois irmãos, que foram ver a seara dos arrependidos.

O camponês não percebeu nada destas palavras e pediu-lhe a explicação.

— A explicação é clara; meu pai foi dar uma jeira a quem não pode dar outra, quer dizer que foi acompanhar um morto à sepultura; os meus irmãos foram ver a seara dos arrependidos, porque se ela estiver boa, ficam arrependidos por a não terem semeado toda, e se estiver ruim também ficam arrependidos por terem semeado essa mesma.

O camponês seguiu o seu caminho muito satisfeito, até que chegou ao palácio. Pediu para o levarem à princesa, e contou-lhe o seu caso. A princesa deu-lhe logo a explicação de tudo. Depois virou-se de novo para o campônio, e disse-lhe:

— Já que és tão sábio, diz-me lá a razão, porque é que eu vivo sem comer, sem beber, nem dormir.

— Perdoe-me vossa alteza, mas eu não me fio nisso.

— Pois então hás de ficar três dias no meu quarto para veres com os teus olhos.

O rapaz susteve-se o primeiro dia sem dormir para espreitar tudo o que se passava; custou-lhe muito a aguentar-se, e quando veio o terceiro dia, disse:

Princesa, minha senhora,
Cá pra mim mulher que não come,
Nem bebe, nem dorme,
É filha do diabo, que não doutro home.

Assim que a princesa ouviu isto foi ter com a mãe para que lhe explicasse o seu nascimento. A rainha contou-lhe tudo o que dissera quando o marido a tratava mal por não ter filhos; e assim que acabou de falar sentiu-se no palácio um barulho como de um furacão que passasse. O palácio ficou livre daquele encantamento, e todos ficaram obrigados ao campônio, a quem o rei deu a princesa em casamento em paga de a ter livrado daquela coisa ruim.

 

---
Ano de publicação: 1883
Origem: Portugal (Algarve)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

Nenhum comentário:

Postar um comentário