domingo, 5 de dezembro de 2021

A da varanda (Conto popular português), de Teófilo Braga

 

A DA VARANDA
 

Era uma vez um mercador que tinha uma filha linda como as estrelas e ladina como os diabos. Pegado à varanda dela era o quintal do rei. Todas as tardes ela ia regar as suas flores, e tinha um grande manjericão. O rei começou a gostar muito dela, e já a esperava à hora certa para a ver, e perguntava-lhe sempre:

Oh menina, visto ser
De tanta discrição,
Há de me saber dizer
Quantas folhas tem o seu manjericão?

Ela dava-lhe o troco, dizendo:

Vossa majestade, que sabe
Ler, escrever e contar,
Há de saber quantos bagos
De areia tem o mar?

O rei começou então a ver se podia pregar uma peça à rapariga, e aproveitou uma ocasião em que o mercador tinha saído para fora da terra. Arranjou uma tenda com quinquilharias, e foi vestido de tendeira a casa dela. A filha do mercador mandou-a entrar sem suspeitar mal; o rei levava um anel muito rico, que deixou a rapariga encantada. Gabou-o muito com pena de o não poder comprar; mas a tendeira disse-lhe:

— Eu, minha menina, dou-lhe o anel se me der um beijinho; estou perdida por si; mesmo que seja por cima deste véu que trago pela cara.

Quem mal não pensa mal não vê, a rapariga deu o beijo e ficou com o anel.

De tarde quando foi regar as flores, apareceu o rei, como de costume:

Oh menina, visto ser
De tanta discrição,
Há de me saber dizer
Quantas folhas tem o seu manjericão?

E ela retrucou logo:

Vossa majestade que sabe
Ler, escrever e contar,
Há de saber quantos bagos
De areia tem o mar?

O rei, que ficou calado, continuou:

E aquele beijo que deu
Mesmo por cima do véu?…

A rapariga ficou capaz de morrer; fez-se muito vermelha e jurou de si para si que se havia de vingar. Vai um dia, veste-se de preta, e foi à casa do rei oferecer-se para criada; primeiro combinou com o seu criado, que de noite botasse na varanda do rei a cabra que tinham no quintal. O rei tomou logo a pretinha para si, porque era muito engraçada, e com medo que ela lhe fugisse deitou-a num quarto ao pé do seu, com uma fita amarrada ao braço dela. De noite o rei puxou pela fita e ainda a pretinha respondeu; mas assim que o rei pegou no primeiro sono, a rapariga desamarrou-se, foi buscar a cabra muito devagarinho, pô-la em seu lugar, e foi-se embora. Quando o rei acordou, lembrou-se da pretinha, que era de encantar, puxou-a pela fita para a sua cama, mas a cabra começou a berrar, e o rei espantado a gritar que tinha o diabo em casa; acudiu muita gente e todos viram a cabra em vez da preta no quarto do rei. No outro dia à tarde, o rei foi ver a filha do mercador, que andava a regar, e perguntou-lhe:

Oh menina, visto ser
De tanta discrição,
Há de me saber dizer
Quantas folhas tem o seu manjericão?

E ela, em despique:

Vossa majestade, que sabe
Ler, escrever e contar,
Há de saber quantos bagos
De areia tem o mar?

Diz o rei:

E o beijinho por cima do véu?…

E ela:

E a cabra que fez méo, méo?…

O rei conheceu que ela o tinha desfrutado, mas achou-lhe graça. A rapariga não quis ficar por aqui. Soube que o rei ia para uma caçada, vestiu-se de homem, montou numa mula, e levou consigo uma máscara, e foi seguindo a comitiva de longe. Depois de muito andar, o rei disse para parar um pouco, e que o deixassem sozinho. Assim que os cavaleiros se afastaram para longe, a rapariga tira a máscara da algibeira, saca de um punhal e vai para o rei, como quem quer matá-lo, e grita-lhe:

— Beije já o rabo da minha mula, senão mato-o aqui já.

Naqueles apertos, o rei como estava ali sozinho beijou o rabo da mula.

A rapariga voltou para casa; no outro dia estava regando as flores, e o rei apareceu, e fez as perguntas do costume:

Oh menina, visto ser
De tanta discrição,
Há de me saber dizer
Quantas folhas tem o seu manjericão?

E ela:

Vossa majestade, que sabe
Ler, escrever e contar,
Há de saber quantos bagos
De areia tem o mar?

E o rei:

E aquele beijo que deu
Mesmo por cima do véu?…
 

Ela:

E a cabra que fez méo, méo?…

O rei:

Não se finja tão fula.

Ela:

E o beijo no rabo da mula?

O rei lembrou-se do acontecido, achou-lhe muita graça, e quando o mercador voltou à terra foi pedir-lhe a filha em casamento, porque com uma mulher tão esperta havia de ser por força muito feliz.

 

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Ano de publicação: 1883
Origem: Portugal
(Algarve)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

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