quinta-feira, 18 de novembro de 2021

O homem pequeno (Conto popular), de Sílvio Romero


O HOMEM PEQUENO

Uma vez um príncipe saiu a caçar com outros companheiros, e enterraram-se numa mata. O príncipe, que se chamava D. João, adiantou-se muito dos companheiros e se perdeu. Ao depois de muito andar, avistou um muro muito alto, que parecia uma montanha, e para lá se dirigiu. Quando lá chegou conheceu que estava numa terra estranha, pertencente a uma família de gigantes. O dono da casa era um gigante enorme, que quase dava com a cabeça nas nuvens; tinha mulher também gigante, e uma filha gigante de nome Guimara.

Quando o dono da casa viu a D. João gritou logo:

 — Oh, homem pequeno, o que anda fazendo?

O príncipe contou-lhe a sua história, e então o gigante disse:

 — Pois bem; fique aqui como um criado.

O príncipe lá ficou, e, passados tempos, Guimara se apaixonou por ele. O gigante, que desconfiou da coisa, chamou um dia o príncipe, e lhe disse:

 — Oh, homem pequeno! Tu disseste que te atrevias a derrubar numa só noite o muro das minhas terras e a levantar um palácio?

— Não, senhor meu amo; mas, como vossemecê manda, eu obedeço.

O moço saiu por ali vexado de sua vida, e foi ter ocultamente com Guimara, que lhe disse:

 — Não é nada; eu vou e faço tudo.

Assim foi: Guimara, que era encantada, deitou abaixo o muro, e alevantou um palácio que dar-se podia. No outro dia o gigante foi ver bem cedo a obra e ficou admirado.

 — Oh, homem pequeno?

— Inhô!

— Foste tu que fizeste esta obra ou foi Guimara?

— Senhor, fui eu, não foi Guimara; se meus olhos viram Guimara, e Guimara viu a mim, mau fim tenha eu a Guimara, e Guimara mau fim tenha a mim.

Passou-se. Depois de alguns dias, o gigante, que andava com vontade de matar o homem pequeno, lhe alevantou outro aleive:

 — Oh, homem pequeno! Tu disseste que te atrevias a fazer da ilha dos bichos bravos um jardim cheio de flores de todas as qualidades, e com um cano a deitar, a despejar água, tudo numa noite?

— Senhor, eu não disse isto, mas como vossemecê ordena eu irei fazer.

Saiu dali mais morto do que vivo, e foi ter com Guimara, que lhe disse:

 — Não tem nada; eu hoje hei de fazer tudo de noite.

Assim foi. De noite ela fugiu de seu quarto, e, com o homem pequeno, trabalhou toda a noite, de maneira que no outro dia lá estava o jardim cheio de flores, e com um cano a jorrar água; era uma obra que dar-se podia. O gigante, dono da casa, foi ver a obra e ficou muito espantado, e, então, formou o plano de ir à noite ao quarto de Guimara e ao do homem pequeno para os matar. A moça, que era adivinha, comunicou isto a D. João, e convidou-o para fugir, deixando nas camas em seu lugar duas bananeiras cobertas com os lençóis para enganar ao pai.

Alta noite fugiram montados no melhor cavalo da estrebaria, o qual caminhava cem léguas de cada passada. O pai quando os foi matar os não encontrou, e disse o caso à mulher, que lhe aconselhou que partisse atrás montado no outro cavalo que caminhava cem léguas de cada passada, e seguisse a toda a brida. O gigante partiu, e, quando ia chegando perto dos fugitivos, Guimara se virou riacho e D. João um negro velho, o cavalo num pé de árvore, a sela numa leira de cebolas, e a espingarda, que levavam, num beija-flor. O gigante, quando chegou ao riacho, se dirigiu ao negro velho, que estava tomando banho:

 — Oh, meu negro velho! Você viu passar aqui um moço com uma moça?

O negro não prestava atenção, mergulhava n’água, e quando alevantava a cabeça, dizia:

 — Plantei estas cebolas, não sei se me darão boas!...

Assim muitas vezes, até que o gigante se maçou e se dirigiu ao beija-flor, que voou-lhe em cima, querendo furar-lhe os olhos. O gigante desesperou e voltou para casa. Chegando lá contou a história à velha sua mulher, que lhe disse:

 — Como você é tolo, marido! O riacho é Guimara, o negro velho o homem pequeno, a leira de cebola a sela, o pé de árvore o cavalo, e o beija-flor a espingarda. Corra para trás e vá pegá-los. 

O gigante tornou a partir como um danado até chegar perto deles, que se haviam desencantado e seguido a toda a pressa. Quando eles avistaram o gigante, a moça se transformou numa igreja, D. João num padre, a sela num altar, a espingarda no missal, e o cavalo num sino. O gigante entrou pela igreja adentro, dizendo:

 — Oh seu padre, o senhor viu passar por aqui um moço com uma moça?

O padre, que fingia estar dizendo missa, respondeu: 

Sou um padre ermitão,
Devoto da Conceição,
Não ouço o que me diz, não...
Dominus vobiscum. 

Assim muitas vezes, até que o gigante se aborrece e volta para trás desesperado. Chegando em casa contou a história à mulher, que lhe disse:

 — Oh, marido! Você é muito tolo! Corra já, volte, que a igreja é Guimara, o padre é o homem pequeno, o missal a espingarda, o altar a sela, o sino o cavalo.

Eles lá se desencantaram e seguiram a toda a pressa; mas o gigante de cá partiu como um feroz; ia botando serras abaixo, e, quando estava, de novo, quase a pegá-los, Guimara largou no ar um punhado de cinza e gerou-se no mundo uma neblina tal que o gigante não pôde seguir e voltou. Depois disto os fugitivos chegaram ao reino de D. João. Guimara, então, lhe pediu que, quando entrasse em casa, para não se esquecer dela por uma vez, não beijasse a mão de sua tia. O príncipe prometeu; mas quando entrou em palácio a primeira pessoa que lhe apareceu foi sua tia, a quem ele beijou a mão, e se esqueceu, por uma vez, de Guimara, que o tinha salvado da morte. A moça lá perdeu na terra estranha o encanto, e ficou pequena como as outras, mas sempre triste. 


---
Ano de publicação: 1883
Origem: Sergipe (Brasil)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

Nenhum comentário:

Postar um comentário