quarta-feira, 17 de novembro de 2021

A proteção do Diabo (Conto popular), de Sílvio Romero



 
A PROTEÇÃO DO DIABO

Houve um rei que tinha um filho; quando este chegou à idade de dezoito anos, sua mãe mandou ver a sua sina, e lhe responderam que seu filho tinha de morrer enforcado. Desde esse dia sua mãe não pôde ter mais alegria. O príncipe, logo que notou a tristeza de sua mãe, perguntou-lhe qual era o motivo dela. Sua mãe não lhe quis dizer; mas o moço, incomodado por esse mistério, também caiu em tristeza. No segundo dia tornou a indagar da rainha, e nada dela lhe querer dizer; no terceiro dia o mesmo. Porém, tanto o príncipe insistiu, que ela se viu obrigada a declarar a causa de sua tristeza, que era por sua triste sina de seu filho morrer enforcado. O príncipe não se atemorizou, e disse a sua mãe que por isso se não incomodasse, porque morrer disto ou daquilo, de moléstia ou enforcado, tudo era morrer; e portanto lhe desse licença para ir ele correr mundo para não morrer aonde tinha nascido, para evitar a seus pais maior dor. Com custo a rainha lhe concedeu licença, e o moço foi ter com o rei que também a custo lhe quis dar. 

O príncipe se aprontou para seguir, e, na despedida, seu pai lhe deu uma grande soma de dinheiro para sua viagem. Depois de ter o moço corrido algumas cidades e reinos, chegou a um lugar onde havia uma capela de São Miguel, com sua imagem, e a figura do diabo, tudo já muito arruinado. Aí parou o príncipe a fim de mandar concertar a capela e as imagens. 

Mandou chamar operários e se pôs à testa da obra. Depois que concluiu, e restando um pouco de tinta, deixando o pintor por pintar a figura do diabo, veio ele dar parte ao príncipe que tinha concluído o trabalho, e que tinha ficado um resto de tinta por não ter pintado o diabo. O príncipe examinou a obra e ordenou que se pintasse também o demônio, e, deixando tudo pronto, retirou-se. Depois de ter corrido outras terras, foi dar à casa de uma velha, pedindo-lhe licença para aí pernoitar. Depois que a velha lhe destinou um quarto, o príncipe pôs-se a contar o dinheiro que lhe restava, o que vendo a velha foi dar parte à autoridade, dizendo que um ladrão a estava roubando em sua casa. A autoridade com uma escolta se dirigiu à casa da velha, prendeu ao príncipe, e o conduziu para a cadeia para ser processado, o que aconteceu, sendo ele condenado à pena última. Chegando o dia de a cumprir, saiu o moço da prisão no meio de uma escolta para ser conduzido à forca. São Miguel, que estava na capela que o príncipe tinha mandado concertar, perguntou ao demônio:

 — Então tu agora não estás mais bonito?

Respondeu o diabo que sim.

 — E não sabes quem concertou esta capela e nos enfeitou?

Respondeu que o príncipe, que tinha passado por ali.

 — Pois este príncipe está em caminho conduzido por uma escolta para ser enforcado, e cumprir a sentença a que foi condenado injustamente, e deves ir defendê-lo.

O diabo montou num fogoso cavalo, dirigiu-se à casa da velha, conduziu-a à justiça, onde ela declarou toda a maquinação que tinha feito para ficar com o dinheiro do príncipe. O rei, sabendo do ocorrido por intermédio do diabo, passou ordem para ser solto o príncipe e conduzido à sua presença, sendo o diabo o portador da ordem. Partiu o demônio no seu cavalo e apenas teve tempo de chegar, pois o príncipe já estava quase no ato de ser enforcado. Apresentou a ordem de soltura, e, livre o príncipe, o levou ao palácio do rei. Este interrogou ao príncipe para saber quem era e donde vinha; ao que ele respondeu justamente quem era, e que tinha saído da terra de seus pais para não morrer enforcado perto deles, pois essa era a sina que tinha trazido. O rei obrigou a velha a restituir o dinheiro do príncipe, e mandou-a levar para a prisão até chegar o dia de ser sentenciada pelo crime que tinha cometido.

O príncipe, depois que se viu livre e embolsado de seu dinheiro, indo caminhando por uma estrada encontrou-se com um fidalgo montado num fogoso cavalo, o qual fidalgo lhe perguntou para onde ia, ao que respondeu que andava em terra estranha e não sabia onde iria pernoitar. E foram andando justamente pelo caminho que ia dar à capela que o príncipe tinha mandado concertar. Ele pelo caminho foi contando ao fidalgo o que lhe tinha acontecido, e como se tinha livrado daquela vez, mas que a sua sina era de morrer enforcado. Então lhe disse o fidalgo:

 — Não sabeis quem vos defendeu?

Respondeu o príncipe que não.

 — Pois sabei que fui eu, que sou a figura do diabo que estava na capela de São Miguel, que vós mandastes concertar, e também pintar a mim. Me dizendo o santo o aperto em que vós estáveis, montei a cavalo, e ainda cheguei a tempo de vos salvar. Podeis voltar para vossa terra, porque a vossa sina está desmanchada, indo a velha ser enforcada em vosso lugar.

Desapareceu o diabo, que foi para a sua moradia na capela, onde também foi o príncipe fazer sua oração. Depois voltou para a sua pátria, onde seus pais o receberam com grande contentamento.


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Ano de publicação: 1883
Origem: Rio de Janeiro (Brasil)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

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