quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Santo judeu (Conto tradicional português), de Ana de Castro Osório

 

SANTO JUDEU
 

Vivia um velho muito avarento quase sempre fechado em casa, servido por submissa criada, também idosa, e tendo por companhia um gato. Não dava nada a ninguém nem queria falar com pessoa alguma, receando que lhe pedissem esmola.

Chegou o Entrudo e uns rapazes da vizinhança resolveram enganar o avarento, que era ao mesmo tempo um grande finório. Vestiu-se um deles com fato muito poeirento e remendado, a fingir de pobre pedinte que vinha de longe, e foi bater à porta do velho. Tanta lamúria fez que a criada o deixou entrar para a cozinha. Veio o avarento e não gostou da graça, mas, como o rapaz fazia muito bem o seu papel de tontinho, deixou-o ficar, achando até graça às perguntas que ele fazia, e respondendo a tudo às avessas. Assim dizia o rapaz:

— O senhor como se chama?

— Santo Judeu.

Bem sabia ele que tal não era, mas fingiu acreditar, com cara de muito pateta. Viu a cama onde dormia a criada, e perguntou:

— E aquilo o que é?! Responde o velho:

— É o cabo da folgança.

— Sim senhor, bonito nome! — Olhou para o lado, viu o gato e disse:

— Ui que bicho tão feio! O que é?

— É um animal chamado pilpirratos.

Como a velha estava a fiar estopa, perguntou:

— E aquilo que a sua criada está a fiar como se chama?

— Calhamandras.

— Muito engraçado nome! E o que está naquele pote?

Era água, pois vinho nunca lá tinha entrado em casa.

— Aquilo é abundância (respondeu o velho por troça).

— Sim senhor. E como se chama esta casa onde vive?

— Isto não é casa, é altas miras.

— Bom; agora que já vi tudo, há de dizer-me o que é que ali tem pendurado? — Era um presunto e chouriços que estavam no fumeiro.

— Aquilo (disse o avarento, fingindo-se muito admirado)?! Pois também não sabe o que tenho ali?!

— Eu, não senhor! É coisa que nunca vi.

— Pois admira! Aquilo é Jesus Cristo e os Apóstolos.

Chegou a hora de se irem deitar, e o rapaz dizia consigo:

— Deixa estar, meu velhote, que eu te direi se tu ris mais do que eu!...

Mal viu tudo sossegado, abriu a porta aos companheiros. Foram ao fumeiro tiraram os chouriços, pegaram num bocado de estopa, ataram-na ao rabo do gato e começaram a gritar:

— Levanta-te, Santo Judeu,
Desse cabo da folgança,
Que fugiu o pilpirratos

Com as calhamandras no rabo.
Se a abundância lhe não acode
Lá se vão as altas miras!

Altas miras, senhor meu amo!
Fique-se com Jesus Cristo
Que nós cá vamos com os Apóstolos!

Enquanto o velho se levantava, todo aflito, safaram-se os rapazes com os chouriços e foram, a rir, contar a história. Não sem desatarem a estopa do rabo do gato, que afinal não tinha culpa nenhuma das avarezas do velhote.

 

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Origem: Portugal.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

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