domingo, 12 de dezembro de 2021

O saci (Contos Folclóricos), Viriato Padilha

 

O SACI

Os dois cegos, moços ainda, porém escaveirados pela miséria, trêmulos de fraqueza pelos longos dias de fome, andrajosos, sujos, repugnantes mesmo, e que de mãos dadas percorriam as poeirentas estradas e os arraiais, tinham sua história.

História singela como podiam ter criaturas simples, alheias à maldade, ignorantes do mundo e das coisas, mas triste, lancinante, porque esses pobrezinhos que ali estendiam as magras mãos, implorando o pão amargo da esmola, foram, ao nascer, osculados pela desgraça, vítimas inocentes dum destino cruel.

Contarei essa história, assim como ouvida da boca do povo. Pobre história duns pobres-diabos, tão rústica e singela quanto eles.

Quando Adão se casou o primeiro cuidado foi abrir um roçado pra plantar um punhado de milho, e levantar um ranchinho onde se metesse com siá Teresa, porque isto de morar em casa de sogro não tinha jeito.

Quem casa quer casa, diz o ditado, e diz muito bem. Nada há como a gente debaixo de seu sapê, comendo sossegado o que Deus lhe dá. Casa alheia brasa no seio.

Assim, uma semana depois do enlace matrimonial, Adão escolheu um bom pedaço de terra roxa, própria a toda a cultura, e numa segunda-feira se dirigiu até lá armado de foice e machado. O acompanhava a mulher, carregada com o caldeirão pra lá mesmo cozinhar a feijoada.

O trabalho de foice era pequeno: O mato estava limpo, as árvores, tendo crescido muito e formado grandes copas, mataram, pela falta de luz e de calor, os arbustos e as plantas rasteiras.

Por isso, depois de cortadas algumas touceiras de cipó, que se enredavam nesta ou naquela fronde, Adão cuspiu nas mãos, pra não as aquecer muito, e vibrou, decidido, o machado no madeirame grosso. Dali a pouco era cavaco a todo o lado, e depois duma centena de golpes a árvore, cavada na cepa, estremeceu, tornou a estremecer, e em seguida tombou, gemendo surdamente e espalhando no chão a basta galhada.

Todas as vezes que um pau caía, Adão, satisfeito, acompanhava o despenhar da árvore com um grito prolongado — Ê! Ê!, e siá Teresa respondia com uma trova, cantada com voz fina e bem modelada:

Dei um grito de alevante
E dei um de alevantá
Dei outro mais pequenino
Que torceu o maricá
Corre a onça, corre o porco
Caringa o tamanduá
Nas abas daquela serra
Vai respondê meu cantá.

E os paus caíam um a um. A lomba da serra se desnudava pouco a pouco da verde-negra cabeleira. Adão limpava o suor que escorria em baga do rosto, siá Teresa atiçava o fogo sob a panela e, sorrindo ao marido, cantava em tom brejeiro:

Segunda-feira passada
Fui abrir meu roçado
Guariba levou a foice
Macaco trouxe o machado
Xauim por mais pequenino
Foi capinando de enxada.

Quando o sol começou a entrar já havia no mato uma abertura considerável.

Adão, muito contente da vida, lavou o rosto e as mãos num regato próximo, e a dizer umas tantas ternuras a siá Teresa, se abeirou do fogo, com excelente apetite ingeriu uma cuia atacada de feijão bem gordo, carne-seca e angu.

Fora um dia cheio. No sábado estaria pronto o roçado. Mandasse depois Deus nosso senhor uns quinze dias de sol, pra esturrar o mato, e estaria terminada a canseira.

Adão pôs no ombro o machado e a foice. Siá Teresa suspendeu o caldeirão, e lá se foram até casa, cansados porém alegres, muito animados pra vida.

*** 

No dia seguinte, quando o sol ainda vinha em casa de Nosso Senhor Jesus Cristo, já siá Teresa xororocava no coador o gostoso café temperado com rapadura, e Adão amolava a foice e o machado numa pedra do terreiro. Naquele dia daria uma entrada bonita no mato.

Feito o café, cada um tomou seu caneco acompanhado duma batata-doce, depois rebatido por um coitezinho de aguardente e foram ao roçado. Adão na frente, com o machado e a foice no ombro, siá Teresa atrás, com a saia um tanto arregaçada, pra não a ensopar no orvalho, depositado nas vassouras da estrada, e suspendendo o caldeirão da feijoada.

Iam tão satisfeitos os dois!. Se queriam muito, e depois as coisas pareciam ir tão de feição! Como, pois, não estariam contentes?

Quando chegaram ao lugar do roçado, o sol vinha rompendo lá em baixo na planície extensa, a espancar a neblina que se acumulara durante a noite no vale.

Adão pousou a foice e o machado no chão, siá Teresa descansou o caldeirão, e ambos olharam o roçado, a fim de contemplar o trabalho da véspera.

Mas o que era aquilo, Deus do Céu? O que viam os dois?

As árvores, cortadas na véspera pelo machado do caipira, estavam outra vez em pé, e nem sinal apresentavam de terem sido tocadas pelo ferro! Lá estavam todas, eretas como outrora, firmes na base de catana{36} e sólidas raízes, ostentando a umbela gigantesca da copa verde-negra.

— Ué! — Disse Adão, abrindo a boca e esbugalhando os olhos — Estou dormindo ou acordado?! Me falte a luz na hora da morte se ontem não derrubei esta panzaria!

— Pois antonces não derrubou?! — Disse siá Teresa, ainda mais admirada que o marido — Derrubou, tanto como haver Deus no Céu e Diabo no Inferno!

— Mas como é que elas estão outra vez de pé? — Adão disse, afinal, depois dum momento de muda observação.

— Não sei, Adão. Aqui anda coisa!

E ficaram os dois se olhando mutuamente, aturdidos, apalermados, confundidos por aquele fato tão singular, tão desviado da marcha normal da natureza.

Assim se conservaram durante um quarto de hora, sem que atinassem com a decifração do mistério, nem saber o que deviam fazer. Até que, enfim, se arrancando o Adão da atonia em que jazia, exclamou:

— Tem nada! Se a derruba de novo.

E, tomando o machado, entrou a escavacar de novo os mesmos paus que na véspera deram tanto a fazer.

Nesse dia o Adão não gritou mais: Ê! Ê! quando as árvores tombavam. Siá Teresa não fez ouvir em canções sertanejas sua voz fina e bem modulada.

No entanto, na tarde havia no mato a mesma abertura da véspera, e o casal regressou a casa, porém um tanto triste, e pouco expansivo. Que coisa mais singular aquela?! Até parecia que ali andava metido o Diabo!

Como todos os matutos, porém, Adão e siá Teresa eram muito resignados. Assim, apesar do que lhes acontecera, adormeceram logo que pousaram a cabeça no travesseiro.

Se era Deus quem determinava aquela coisa, o que se faria?

***

Na manhã, bem cedo, retornaram ao roçado. Iam calados e pensativos, cheios de receio, mas sem comunicar um ao outro a triste apreensão. É coisa sabida que o que não se diz o Diabo não se lembra. Por isso iam silenciosos. Coitados! Os esperaria um novo desgosto?

Adão ia na frente com a ferramenta ao ombro, siá Teresa atrás, com uma das mãos gordinhas colhia a saia de chita, pra não se encharcar na orvalhada, mostrando assim as canelas bem torneadas, e com a outra carregando o caldeirão da feijoada.

Foram andando, e logo que dobraram o caminho ficaram diante do sítio do roçado. Mas ó!, tentação! As árvores, já cortadas duas vezes, lá estavam outra vez em pé, altaneiras. Em sua folhagem verde-escura rumorejava a brisa fresca da manhã.

Que diabo seria aquilo? Adão não disse palavra. Pegou do machado e começou a o vibrar nas frondes, encasmurrado, de sobrancelhas fechadas. Parecia tão entediado. Se diria que estava fazendo aquilo como quem cumpre um fadário penoso.

Siá Teresa estava igualmente abatida. Atiçava o fogo sob o caldeirão, ensaboava no regato umas roupinhas que trouxera, mas não cantava, nem coragem tinha pra levantar os olhos ao marido.

Na tarde estava de novo a lombada do morro despojada de sua coma vegetal. Adão e siá Teresa voltaram a casa muito tristes. Adão chupava um cigarro de palha e tinha a fronte ensombrada pelo desgosto, e siá Teresa vinha de cabeça baixa, lábios franzidos pela mágoa.

***

No entanto o decidido casal de caipiras ainda não esmorecera. Na quarta-feira muito cedo lá estava ele outra vez em caminho do roçado: Adão, adiante, de calça arregaçada até os joelhos, japona no ombro e sobre ela a ferramenta de derruba. Siá Teresa atrás, molhando as pernas roliças na ervagem orvalhada do caminho, e sempre carregando o mesmo caldeirão da feijoada.

Quando se aproximavam do sítio do roçado, começaram a caminhar mais lentamente, como se tivessem medo de encontrar as árvores outra vez em pé, querendo prolongar mais tempo a incerteza.

Mas tudo tem fim, e o caminho do roçado estava nessa condição, por mais devagar que caminhassem. Afinal chegaram ao ponto da derruba, e, o que é mais triste, o que tanto receavam, se repetira. As árvores, três vezes lançadas a terra pelo vigoroso machado de Adão, ficaram outra vez em pé, firmes, inabaláveis, como insultando a paciência do resignado roceiro. Siá Teresa exclamou, consternada:

— Outra vez!?

Adão não pôde conter a raiva que subiu à cabeça naquele momento e, desesperado, quase louco, deu com o machado junto dele. Queria quebrar a ferramenta, e nunca mais,  pegar nela, nem mesmo pra fazer uma acha de lenha.

Apenas o machado feriu a pedra, esta se partiu em duas metades, e da brecha saltou um moleque, muito preto e esquisito de feições, capenga duma perna e com uma carapuça vermelha na cabeça. Exclamou siá Teresa, recuando, assombrada:

— Virgem mãe de Deus! É o Saci! Fujas!, meu marido.

Adão, no entanto, tomado do maior espanto, não teve força pra se mover do lugar, e o fantástico moleque fazendo careta e saltando num pé, num abrir e fechar de olhos sumiu se atirando de pau a pau, com a agilidade dum macaco.

Agora se explicava ao espírito de Adão e de siá Teresa o anormal fato da anulação do trabalho da derruba. Era o Saci o autor de toda aquela malandragem.

Nesse dia o inditoso Adão não trabalhou. De que lhe servia se matar cortando árvore? Não estava ali o Saci pràs aprumar durante a noite? Melhor seria se aconselhar com pessoa entendida.

***

Dito e feito. Adão pôs no ombro a foice e o machado, siá Teresa tornou a suspender o caldeirão, e lá se foram a casa, onde deixaram a ferramenta e a panela, em seguida o desconsolado casal indo ao rancho de tia Genoveva. Era ela a pessoa com quem resolveram se aconselhar.

Se ela não desse algum remédio, quem mais poderia dar? Assim pensavam, talvez com razão.

Tia Genoveva era uma crioula que habitava sozinha um ranchinho situado na beira dum velho cafezal.

Ela mesmo plantava sua rocinha de milho, abóbora, e inhame, e, com seu produto e algumas galinhas, ia vivendo.

No entanto tia Genoveva não gozava de boa reputação. A tinham como feiticeira e a temiam, por ser deitadeira de mau-olhado. Se era certo não sabemos. O que é verdade, porém, é que foi com ela que Adão e siá Teresa entenderam dever se aconselhar.

Tia Genoveva ouviu atentamente a história fantástica do nosso Adão, e bem assim as observações de siá Teresa, e depois de alguns momentos de contrição falou:

— Nhô Adão, tudo isso lhe aconteceu porque vosmecê agravou o saci, que morava naquele mato e vosmecê, sem saber, foi derrubar. O que quer? O bicho se ofendeu por terem vosmecês tirado a sombra, então se vingou levantando as árvores. Quando a gente sabe o levar, o saci não faz mal, e até ajuda uma pessoa em seus arranjos. Mas não o molestem, porque, então, ele não deixa mais um cristão sossegado. Por que vosmecê não faz roçado noutro lugar? Há tanta terra devoluta.

— Bem sei que há muita terra devoluta, tia Genoveva, — observou Adão, — mas aquela me convinha por muitas vantajas.

— E pro modo a aguada vosmecê sabe que a água ali é um tanto escassa. No entanto ali é o que há de bom. Vosmecê conhece bem o lugar.

— Olhe, tia Genoveva, não sou home de muitos prometimentos, mas se vosmecê for capaz de me arrancar aquele excomungado dali, eu bem lhe prometo uma leitoa gorda para vosmecê comer no Natal.

— Nhô Adão, eu não faço essas coisas por interesse. Guardarei a leitoa que vosmecê quiser me dar, mas só como lembrança. Como, porém, vosmecê e tua muié sempre foram bons pra esta tua preta-véia, eu vou dizer o que vosmecês devem fazer.

— E ficamos muito agradecidos. — Disse siá Teresa, comovida.

— Olhem. Vosmecês amanhã estejam no roçado antes do sol nascer, e na árvore mais alta e mais grossa que lá houver procurem bem que hão de encontrar pendurada uma cabacinha. Essa cabacinha tem dentro a milonga do Saci. Nhô Adão que trepe na árvore e tire a milonga, e fujam logo a bom fugir, porque o saci vos perseguirá. Mas não façam caso. Se ele estiver quase pra alcançar, teçam umas rodilhas de cipó-una, e vão as jogando a trás, pois o saci assim que vê rodilha se arrelia logo, começa a destrançar. Enquanto isso dura, vosmecês estão andando. Levem, então, a milonga a bem longe, a enterrem, e vosmecê, nhá Teresa, te agache por cima da cova e mije três vezes nela, dizendo de cada vez estas palavras: — Eu te enterro e eu te mijo, milonga endemoniada, por Barecos e por Barrocos, ninguém te encontrará. — Estas palavras e a catinga do mijo farão desnortear o saci, e ele nunca mais dará com a cabacinha da milonga. — Então vosmecês poderão fazer o roçado, que nada mais vos acontecerá.

O saci, sempre procurando sua milonga, é obrigado a mudar de terra.

O casal de caipiras, muito animado com essas instruções e com as esperanças que tia Genoveva lhe incutia, se despediu da preta-velha, a enchendo de agradecimento, e se retirou.

— Á! ladrão! Então nada mais havia além de desmanchar o trabalho dos outros?

***

No dia seguinte, antes do sol nascer, já Adão e siá Teresa estavam no sítio escolhido pro roçado.

Iam em demanda à milonga do Saci e tal qual lhes dissera tia Genoveva, estava ela pendurada da galhada dum frondoso ipê-tabaco que lá havia, a mais alta e grossa árvore daquele pedaço de mato.

— Siá Teresa, vá você preparando as rodilhas de cipó-una, enquanto eu trepo no pau e tiro a cabacinha.

Cipó-una não faltava ali, e siá Teresa ficou logo trançando umas rodilhas bem enredadas pra dar bastante quê fazer ao bicho. Durante esse tempo, Adão trepou no ipê-tabaco acima e arrancou a cabacinha.

— Fujamos agora! — Disse ele ao saltar no chão — Estamos aqui com o Coisa-ruim atrás de nós.

E os dois correram. Adão na frente, com a milonga do saci, e siá Teresa atrás, sobraçando as rodilhas de cipó-una.

Mal percorreram uns 50 passos ouviram um guincho muito Adão e siá Teresa davam com as mãos e com as pernas. Se espojavam no chão e gritavam de modo que causava horror! E os bichos sempre agarrados aos infelizes, a zumbirem e a lhes enterrarem em todo o corpo seu envenenado ferrão! Esse flagelo durou seguramente cinco minutos, até que os maribondos todos duma vez largaram os dois e suspenderam o voo.

O casal ficara estendido em terra e em lastimoso estado. De toda parte do corpo porejava sangue: Mãos, pés, rosto, ventre, peito. Tudo ficou extraordinariamente intumescido. A pele se lhes rendara como um crivo, tão próximos eram os sinais das terríveis ferroadas. Ficaram em lastimoso estado mas o mais grave foi que as mangangás lhe vazaram os olhos.

Adão e siá Teresa estavam cegos, coitados! Assim se vingara o perverso saci do furto de sua milonga.

***

Doravante passaram os tristinhos a viver da caridade pública. E a desolada existência lhes decorria nos arraiais e estradas, escaveirados pela miséria, rotos, esfrangalhados, sujos, mendigando o pão humilhante da esmola.

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Ano de publicação: 1925.
Origem: Brasil (Nordeste)

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