Não
sabemos o motivo, mas o certo é que André não tomava a sério as coisas da
religião cristã, e sempre que se oferecia ensejo pra ostentar sua sistemática
incredulidade, às vezes o fazia com brutal irreverência e agravo às crenças
alheias.
Assim,
André não ia à missa, se insurgia contra a confissão e outros sacramentos da
Igreja, ridicularizava as práticas do culto, chasqueava dos padres e censurava
os que usavam bentinho e oração.
E isso
era tanto mais pra admirar, quando André era pescador de profissão, e
geralmente o homem que se vê quotidianamente a braços com a fúria do pego, se
escuda em crenças firmes, e de ordinário é na religião que busca o alento
preciso pra afrontar os numerosos perigos que o velho e pérfido oceano
apresenta aos que se lhe confiam.
André,
no entanto, não era desses. Sem invocação, santo, promessas, rezas nem
bentinho, atirava sua leve canoa às vagas, bonançosas ou crespas, prenunciando
a borrasca e como qualquer outro pescava, voltando tranquilamente à angra donde
partira, cantando umas coplas brejeiras, uns versos de fadinho que cheiravam a
heresia.
No
mais não era mau rapaz. Bom filho e bom irmão, serviçal aos camaradas, todos o
estimavam, e até achavam graça nas pilhérias salgadas que fazia sobre a
religião.
Apenas
um ou outro lhe dizia, às vezes:
— Pro
modo esse teu sestro, um dia ainda levarás na cabeça!
— Pois
sim! — Respondia o incréu, rindo — Conto eu bem com isso!
E não
rogo de amigos nem súplica de mãe e irmão o faziam mudar de rumo. Lhe dera ali.
O que se faria?
***
Chegou
a época da grande pesca à tainha, o mais abundante peixe que vive em nossos
mares, aliás piscosos com exuberância.
Essa
pesca toma o caráter de verdadeira festa em certos lugares, e o arraial onde
vivia nosso André nunca deixava de fazer grossa pagodeira em tal data. Nesse
ano, porém, a coisa se tornava mais solene, pois da paróquia vizinha viria um
padre, que se prestaria a lançar a bênção às canoas que tomariam parte na
importante pescaria.
Por
isso naquele grande dia tudo quanto era habitante da povoação se transportara à
restinga donde partiriam as canoas, e até das brenhas mais próximas acudira
gente pra assistir a cerimônia. Armaram barracas na praia e improvisaram fogões
em toda parte, pois uma das peculiaridades da festa era comer ali mesmo uma
caldeirada do peixe que se pescaria. E tudo isto se fez e se estava fazendo
ainda, no meio da mais franca e ruidosa alegria.
Bandos
de moças bonitonas, com vestido de cassa branca, comprimidos na cintura por
largas fitas azuis, andavam dum lado a outro dizendo brejeirice aos rapazes,
muito limpos nas roupas grosseiras: Calça de zuarte, camisa e meias listradas,
fachas de lã vermelha, gorros ou chapéus de palha. A criançada folgava,
patinhando na areia úmida da praia, volteando duma canoa a outra ou se
lambuzando de cocada e pé-de-moleque, junto aos tabuleiros das quitandeiras. As
matronas e as mães de família formavam ranchos a parte, e confidenciavam sobre
episódios da vida caseira. Os velhos, quase todos pescadores aposentados pelo
peso dos janeiros, examinavam o céu e o mar, verificavam o estado das canoas e
faziam prognósticos sobre a pesca daquele dia.
Mas
todos tinham os olhos voltados ao caminho, esperando o padre, que lançaria a
bênção às canoas, as quais dispostas em linha, e enfeitadas de ramagem e flor,
eram em número de trinta, ocupando a de André uma das extremidades.
***
Às 9h
em ponto surgiram na volta do caminho o padre e o sacristão, já paramentados, e
algumas pessoas que foram encontrar dessas personagens.
Logo
subiram ao ar algumas girândolas de foguetes, cujas flechas os rapazes,
correndo em todas as direções, apanhavam. Logo que o padre se aproximou, de
breviário sobraçado, barrete na cabeça e muito severo na sobrepeliz de renda
alvíssima, toda a multidão caiu ajoelhada na areia da praia. Nenhum ficou em
pé. Homens, mulheres e crianças, todos, sem exceção, tomados de profundo
respeito pela chegada solene do ministro de Cristo, se dobraram, comovidos, ao
chão. Nem uma cabeça se erguia mais altaneira.
No
entanto, André, que não queria acompanhar os demais naquele movimento geral de
veneração, e que ao mesmo tempo procurava não incorrer na censura do padre,
resolveu se deitar a fio comprido no fundo de sua pequena canoa, e assim evitar
a genuflexão.
Ninguém
percebera isso.
***
Devia
se rezar primeiramente uma ladainha em louvor a nossa senhora dos Navegantes e
assim se fez.
O
padre desfiava o longo quírie, e a multidão inteira acompanhava o beatamente.
Terminada
a ladainha, subiram ao ar novos foguetes, e então que começaria a bênção às
canoas.
O
padre tomou a dianteira, seguido pelo sacristão, munido do vaso da água benta.
A
canoa de André, que estava numa das extremidades, seria a primeira. Mas, ao
chegar a ela, observaram todos com tédio e indignação que André dormia a sono
solto no fundo da canoa.
— O
que é isso? — Perguntou o padre, escandalizado. — Este dormia quando se rezava
uma ladainha em louvor à mãe de Deus. Forte bruto!
Alguns
pescadores, envergonhados, se aproximaram da canoa pra despertar André, porém o
padre os deteve, dizendo:
— Não
o despertai. Deixai que durma este maldito. Que durma até despertar no Inferno!
E
passou adiante, com a fisionomia carregada, nervoso pela irreverência do
pescador incrédulo, em cuja canoa não deitou os salpicos de água benta, nem
proferiu a bênção sacramental.
***
Terminada
a cerimônia subiram ao ar novos foguetes, estouraram bombas fortíssimas, e
todos os pescadores se prepararam pra embarcar. Finalmente começaria a pesca.
Nesse
momento, porém, notaram com espanto que a canoa do André não estava mais entre
as outras.
— O
quê? A canoa do André se fez ao largo?
Todos
dirigiram a vista à imensidão do oceano.
—
Assim é.
— E
olhem onde está ela? Vai montando a Ponta do Tubarão. O André com certeza dorme
ainda dentro dela, e daqui a pouco se esbandalhará nas pedras da Morte Certa.
Um
grito partiu, de todos os peitos, e num momento, todos aqueles homens do mar,
muito unidos em se tratando de prestar socorro marítimo aos companheiros, sem
se lembrarem mais da maldição do padre proferida sobre o infeliz camarada,
saltaram às canoas, empunharam os remos, e deixaram a praia, correndo em
auxílio à canoa amaldiçoada, que vagava à mercê das ondas e tocada na maré era
chamada aos sinistros arrecifes da Morte Certa.
Na
praia, os velhos, as mulheres e as crianças acompanhavam com a vista e cheios
de ansiedade a marcha das canoas, e o padre, sempre severo e irritado, dava as
costas à multidão e, caminhando a passos graves, desaparecia na volta do
caminho.
***
As
canoas, impulsionadas vigorosamente pelos remos dos pescadores, quase voavam na
superfície da água, e dentro de alguns minutos já tanto se afastaram da praia
que não se podiam mais distinguir as feições dos tripulantes.
Quanto
à embarcação do André, continuava sempre vagando sem destino. Ora avançava, ora
recuava, trazida pela onda de retorno, ora se torcia e apresentava a proa aos
que iam em seu socorro, ora abicava às pedras da Morte Certa e a elas parecia
voar.
Nesses
momentos, o sangue esfriava nas veias dos pescadores, e com mais força remavam
a ela e gritavam ao infeliz, tentando o despertar.
Nada
no entanto arrancava o mísero daquele sono fatal, e os pescadores quase que já
desesperavam de o salvar.
A
canoa de André cada vez mais se aproximava da Morte Certa, já dela distava
apenas algumas braças e assim estava, correndo já os últimos flocos de espuma
da arrebentação, quando uma grande vaga, que de muito longe crescia e minguava,
pegou a frágil embarcação nos costados e a sacudiu sobre as pedras do fatídico
arrecife.
Os
pescadores deixaram escapar um grito de horror. André estava perdido! Mas qual
não foi o espanto de todos ao verem que a canoa transpusera as pedras, sem
perigo, e, repelida pela mesma vaga que retornava, num arranco se afastara
extraordinariamente do perigo, e agora era levada a alto mar e se dirigiram a
ela. Agora, pensavam, se tornava mais fácil salvar o infeliz e sacrílego
dormente.
***
No
entanto, por mais que se esforçassem os pescadores em a alcançar, a canoa de
André sempre fugia, os arrastando a alto mar. Gastaram todo o dia nessa louca
perseguição. Ao tombar da tarde, exaustos de força, e aturdidos pela estranheza
daquele fato único pra eles, o duma embarcação que, sem vela nem remo, tendo a
bordo um homem adormecido, contudo não podia ser abordada por outras, dirigidas
pela força e vontade humanas.
Que
profundo mistério era aquele? E todos nessa hora começaram a se lembrar da
maldição do padre. Levaria aquela canoa ao Inferno o inditoso companheiro?
Resolveram
regressar. Não tinham mais força pra remar e a muito custo conseguiram voltar à
terra. Estavam mortos de fome. Começava a se apoderar deles o medo. Conseguir a
canoa de André era impossível. Deus que se condoesse do mísero! Remaram a
terra.
***
Todavia
um rapaz de vinte e poucos anos, Guilherme, de todos o mais amigo de André, não
acompanhou os companheiros na deliberação.
— Pois
quê?! Deixariam assim um bom camarada correr à morte, à perdição, sem que se
empregassem o último esforço pra o salvar? Não. Ainda que lhe custasse a vida a
companhia, a canoa, continuou acompanhando a canoa do amigo, mas nunca
alcançando.
***
Guilherme
já perdera de vista todos os companheiros que voltavam a terra, e o crepúsculo
vespertino começava a espalhar a sombra sobre o oceano, quando percebeu que
sobre a canoa do infeliz André, e somente naquele ponto começava a se formar
uma cerração, que num momento se tornou tão densa que não pôde mais distinguir
a canoa.
Aquilo
o assustou um pouco, porém Guilherme era muito destemido pra recuar, tendo
chegado até ali. Remou, pois, com mais força ainda, em direção à névoa que se
acumulou naquele ponto do mar, e dentro em poucos minutos estava bem perto.
Então
a neblina começou a se dissipar, e um quadro estranho, funéreo, se desenvolveu
aos olhos do canoeiro assombrado.
A
canoa do André balançava sempre sobre as vagas, mansamente. No fundo da pequena
embarcação, com a cabeça pousada sobre a proa, se via André, dormindo sempre,
muito pálido, antes morto. E, à popa da mesma embarcação um vulto extravagante,
talvez um homem, talvez um demônio, envolto num manto negro, de amplas dobras,
e acocorado soturnamente ali.
O que
era aquilo? Onde tomara passagem aquele fantástico canoeiro, cujas feições
Guilherme não podia distinguir, por mais que firmasse a vista?
O
pobre rapaz perdeu o ânimo de continuar remando. Um horror invencível por
aquele mistério lhe envolvera subitamente a alma, e o corpo todo tremia.
O
vulto continuava sempre acocorado à proa de embarcação, e Guilherme com os
olhos pregados nele, sem saber o que fazer.
No fim
de alguns minutos a coisa singular que estava na popa da canoa começou a se
erguer, e tanto subiu, tanto, tanto, que atingiu a altura dum mastro de navio.
E assim levantada, essa coisa pavorosa abriu uns braços muito longos,
espalhando um manto negro que tomou o aspecto duma gigantesca asa de morcego. E
depois, quase de chofre, ao mesmo tempo que se fazia ouvir um gemido muito alto
e prolongado, caiu sobre o corpo de André, o envolvendo todo nas dobras do
manto, e a canoa, vagando com rapidez de flecha solta do arco com a maior
violência, voou à imensidão oceânica do sudoeste, e nada mais se viu sobre a
água.
Guilherme,
quase louco pelo pavor, manobrou instintivamente a canoa demandando terra, e os
que o esperavam na restinga, ansiosos, por saberem o desenlace daquele drama
angustioso, quase não o conheceram quando o viram ali. O pobre rapaz trazia o
cabelo branco como neve, a voz, sem firmeza, se arrastava como a dum ébrio, as
pernas tremiam, quase não podendo sustentar o tronco, que, como o dum ancião,
se curvava à terra.
***
Nunca
mais houve notícia da canoa nem do irreverente pescador, que, com grave ofensa
à santidade da religião, se deixara adormecer quando o sacerdote erguia preces
em louvor à virgem mãe de Deus.
Onde
despertaria do sono sacrílego? Crê o povo que no Inferno.
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