domingo, 12 de dezembro de 2021

O pacto com o Demônio (Contos de Terror), Viriato Padilha

 

O PACTO COM O DEMÔNIO 

Não sabemos o motivo, mas o certo é que André não tomava a sério as coisas da religião cristã, e sempre que se oferecia ensejo pra ostentar sua sistemática incredulidade, às vezes o fazia com brutal irreverência e agravo às crenças alheias.

Tão ignorante como os outros pescadores, seus companheiros, e tendo como única instrução noções de leitura muito elementar adquiridas em qualquer escola pública, André, em sua tola e descabida vaidade, se julgava superior ao meio atrasado em que vivia, e era ostentando perfeita negação do sentimento religioso, que entendia evidenciar sua preeminência.

Assim, André não ia à missa, se insurgia contra a confissão e outros sacramentos da Igreja, ridicularizava as práticas do culto, chasqueava dos padres e censurava os que usavam bentinho e oração.

E isso era tanto mais pra admirar, quando André era pescador de profissão, e geralmente o homem que se vê quotidianamente a braços com a fúria do pego, se escuda em crenças firmes, e de ordinário é na religião que busca o alento preciso pra afrontar os numerosos perigos que o velho e pérfido oceano apresenta aos que se lhe confiam.

André, no entanto, não era desses. Sem invocação, santo, promessas, rezas nem bentinho, atirava sua leve canoa às vagas, bonançosas ou crespas, prenunciando a borrasca e como qualquer outro pescava, voltando tranquilamente à angra donde partira, cantando umas coplas brejeiras, uns versos de fadinho que cheiravam a heresia.

No mais não era mau rapaz. Bom filho e bom irmão, serviçal aos camaradas, todos o estimavam, e até achavam graça nas pilhérias salgadas que fazia sobre a religião.

Apenas um ou outro lhe dizia, às vezes:

— Pro modo esse teu sestro, um dia ainda levarás na cabeça!

— Pois sim! — Respondia o incréu, rindo — Conto eu bem com isso!

E não rogo de amigos nem súplica de mãe e irmão o faziam mudar de rumo. Lhe dera ali. O que se faria?

***

Chegou a época da grande pesca à tainha, o mais abundante peixe que vive em nossos mares, aliás piscosos com exuberância.

Essa pesca toma o caráter de verdadeira festa em certos lugares, e o arraial onde vivia nosso André nunca deixava de fazer grossa pagodeira em tal data. Nesse ano, porém, a coisa se tornava mais solene, pois da paróquia vizinha viria um padre, que se prestaria a lançar a bênção às canoas que tomariam parte na importante pescaria.

Por isso naquele grande dia tudo quanto era habitante da povoação se transportara à restinga donde partiriam as canoas, e até das brenhas mais próximas acudira gente pra assistir a cerimônia. Armaram barracas na praia e improvisaram fogões em toda parte, pois uma das peculiaridades da festa era comer ali mesmo uma caldeirada do peixe que se pescaria. E tudo isto se fez e se estava fazendo ainda, no meio da mais franca e ruidosa alegria.

Bandos de moças bonitonas, com vestido de cassa branca, comprimidos na cintura por largas fitas azuis, andavam dum lado a outro dizendo brejeirice aos rapazes, muito limpos nas roupas grosseiras: Calça de zuarte, camisa e meias listradas, fachas de lã vermelha, gorros ou chapéus de palha. A criançada folgava, patinhando na areia úmida da praia, volteando duma canoa a outra ou se lambuzando de cocada e pé-de-moleque, junto aos tabuleiros das quitandeiras. As matronas e as mães de família formavam ranchos a parte, e confidenciavam sobre episódios da vida caseira. Os velhos, quase todos pescadores aposentados pelo peso dos janeiros, examinavam o céu e o mar, verificavam o estado das canoas e faziam prognósticos sobre a pesca daquele dia.

Mas todos tinham os olhos voltados ao caminho, esperando o padre, que lançaria a bênção às canoas, as quais dispostas em linha, e enfeitadas de ramagem e flor, eram em número de trinta, ocupando a de André uma das extremidades.

***

Às 9h em ponto surgiram na volta do caminho o padre e o sacristão, já paramentados, e algumas pessoas que foram encontrar dessas personagens.

Logo subiram ao ar algumas girândolas de foguetes, cujas flechas os rapazes, correndo em todas as direções, apanhavam. Logo que o padre se aproximou, de breviário sobraçado, barrete na cabeça e muito severo na sobrepeliz de renda alvíssima, toda a multidão caiu ajoelhada na areia da praia. Nenhum ficou em pé. Homens, mulheres e crianças, todos, sem exceção, tomados de profundo respeito pela chegada solene do ministro de Cristo, se dobraram, comovidos, ao chão. Nem uma cabeça se erguia mais altaneira.

No entanto, André, que não queria acompanhar os demais naquele movimento geral de veneração, e que ao mesmo tempo procurava não incorrer na censura do padre, resolveu se deitar a fio comprido no fundo de sua pequena canoa, e assim evitar a genuflexão.

Ninguém percebera isso.

***

Devia se rezar primeiramente uma ladainha em louvor a nossa senhora dos Navegantes e assim se fez.

O padre desfiava o longo quírie, e a multidão inteira acompanhava o beatamente.

Terminada a ladainha, subiram ao ar novos foguetes, e então que começaria a bênção às canoas.

O padre tomou a dianteira, seguido pelo sacristão, munido do vaso da água benta.

A canoa de André, que estava numa das extremidades, seria a primeira. Mas, ao chegar a ela, observaram todos com tédio e indignação que André dormia a sono solto no fundo da canoa.

— O que é isso? — Perguntou o padre, escandalizado. — Este dormia quando se rezava uma ladainha em louvor à mãe de Deus. Forte bruto!

Alguns pescadores, envergonhados, se aproximaram da canoa pra despertar André, porém o padre os deteve, dizendo:

— Não o despertai. Deixai que durma este maldito. Que durma até despertar no Inferno!

E passou adiante, com a fisionomia carregada, nervoso pela irreverência do pescador incrédulo, em cuja canoa não deitou os salpicos de água benta, nem proferiu a bênção sacramental.

***

Terminada a cerimônia subiram ao ar novos foguetes, estouraram bombas fortíssimas, e todos os pescadores se prepararam pra embarcar. Finalmente começaria a pesca.

Nesse momento, porém, notaram com espanto que a canoa do André não estava mais entre as outras.

— O quê? A canoa do André se fez ao largo?

Todos dirigiram a vista à imensidão do oceano.

— Assim é.

— E olhem onde está ela? Vai montando a Ponta do Tubarão. O André com certeza dorme ainda dentro dela, e daqui a pouco se esbandalhará nas pedras da Morte Certa.

Um grito partiu, de todos os peitos, e num momento, todos aqueles homens do mar, muito unidos em se tratando de prestar socorro marítimo aos companheiros, sem se lembrarem mais da maldição do padre proferida sobre o infeliz camarada, saltaram às canoas, empunharam os remos, e deixaram a praia, correndo em auxílio à canoa amaldiçoada, que vagava à mercê das ondas e tocada na maré era chamada aos sinistros arrecifes da Morte Certa.

Na praia, os velhos, as mulheres e as crianças acompanhavam com a vista e cheios de ansiedade a marcha das canoas, e o padre, sempre severo e irritado, dava as costas à multidão e, caminhando a passos graves, desaparecia na volta do caminho.

***

As canoas, impulsionadas vigorosamente pelos remos dos pescadores, quase voavam na superfície da água, e dentro de alguns minutos já tanto se afastaram da praia que não se podiam mais distinguir as feições dos tripulantes.

Quanto à embarcação do André, continuava sempre vagando sem destino. Ora avançava, ora recuava, trazida pela onda de retorno, ora se torcia e apresentava a proa aos que iam em seu socorro, ora abicava às pedras da Morte Certa e a elas parecia voar.

Nesses momentos, o sangue esfriava nas veias dos pescadores, e com mais força remavam a ela e gritavam ao infeliz, tentando o despertar.

Nada no entanto arrancava o mísero daquele sono fatal, e os pescadores quase que já desesperavam de o salvar.

A canoa de André cada vez mais se aproximava da Morte Certa, já dela distava apenas algumas braças e assim estava, correndo já os últimos flocos de espuma da arrebentação, quando uma grande vaga, que de muito longe crescia e minguava, pegou a frágil embarcação nos costados e a sacudiu sobre as pedras do fatídico arrecife.

Os pescadores deixaram escapar um grito de horror. André estava perdido! Mas qual não foi o espanto de todos ao verem que a canoa transpusera as pedras, sem perigo, e, repelida pela mesma vaga que retornava, num arranco se afastara extraordinariamente do perigo, e agora era levada a alto mar e se dirigiram a ela. Agora, pensavam, se tornava mais fácil salvar o infeliz e sacrílego dormente. 

***

No entanto, por mais que se esforçassem os pescadores em a alcançar, a canoa de André sempre fugia, os arrastando a alto mar. Gastaram todo o dia nessa louca perseguição. Ao tombar da tarde, exaustos de força, e aturdidos pela estranheza daquele fato único pra eles, o duma embarcação que, sem vela nem remo, tendo a bordo um homem adormecido, contudo não podia ser abordada por outras, dirigidas pela força e vontade humanas.

Que profundo mistério era aquele? E todos nessa hora começaram a se lembrar da maldição do padre. Levaria aquela canoa ao Inferno o inditoso companheiro?

Resolveram regressar. Não tinham mais força pra remar e a muito custo conseguiram voltar à terra. Estavam mortos de fome. Começava a se apoderar deles o medo. Conseguir a canoa de André era impossível. Deus que se condoesse do mísero! Remaram a terra.

*** 

Todavia um rapaz de vinte e poucos anos, Guilherme, de todos o mais amigo de André, não acompanhou os companheiros na deliberação.

— Pois quê?! Deixariam assim um bom camarada correr à morte, à perdição, sem que se empregassem o último esforço pra o salvar? Não. Ainda que lhe custasse a vida a companhia, a canoa, continuou acompanhando a canoa do amigo, mas nunca alcançando.

***

Guilherme já perdera de vista todos os companheiros que voltavam a terra, e o crepúsculo vespertino começava a espalhar a sombra sobre o oceano, quando percebeu que sobre a canoa do infeliz André, e somente naquele ponto começava a se formar uma cerração, que num momento se tornou tão densa que não pôde mais distinguir a canoa.

Aquilo o assustou um pouco, porém Guilherme era muito destemido pra recuar, tendo chegado até ali. Remou, pois, com mais força ainda, em direção à névoa que se acumulou naquele ponto do mar, e dentro em poucos minutos estava bem perto.

Então a neblina começou a se dissipar, e um quadro estranho, funéreo, se desenvolveu aos olhos do canoeiro assombrado.

A canoa do André balançava sempre sobre as vagas, mansamente. No fundo da pequena embarcação, com a cabeça pousada sobre a proa, se via André, dormindo sempre, muito pálido, antes morto. E, à popa da mesma embarcação um vulto extravagante, talvez um homem, talvez um demônio, envolto num manto negro, de amplas dobras, e acocorado soturnamente ali.

O que era aquilo? Onde tomara passagem aquele fantástico canoeiro, cujas feições Guilherme não podia distinguir, por mais que firmasse a vista?

O pobre rapaz perdeu o ânimo de continuar remando. Um horror invencível por aquele mistério lhe envolvera subitamente a alma, e o corpo todo tremia.

O vulto continuava sempre acocorado à proa de embarcação, e Guilherme com os olhos pregados nele, sem saber o que fazer.

No fim de alguns minutos a coisa singular que estava na popa da canoa começou a se erguer, e tanto subiu, tanto, tanto, que atingiu a altura dum mastro de navio. E assim levantada, essa coisa pavorosa abriu uns braços muito longos, espalhando um manto negro que tomou o aspecto duma gigantesca asa de morcego. E depois, quase de chofre, ao mesmo tempo que se fazia ouvir um gemido muito alto e prolongado, caiu sobre o corpo de André, o envolvendo todo nas dobras do manto, e a canoa, vagando com rapidez de flecha solta do arco com a maior violência, voou à imensidão oceânica do sudoeste, e nada mais se viu sobre a água.

Guilherme, quase louco pelo pavor, manobrou instintivamente a canoa demandando terra, e os que o esperavam na restinga, ansiosos, por saberem o desenlace daquele drama angustioso, quase não o conheceram quando o viram ali. O pobre rapaz trazia o cabelo branco como neve, a voz, sem firmeza, se arrastava como a dum ébrio, as pernas tremiam, quase não podendo sustentar o tronco, que, como o dum ancião, se curvava à terra.

***

Nunca mais houve notícia da canoa nem do irreverente pescador, que, com grave ofensa à santidade da religião, se deixara adormecer quando o sacerdote erguia preces em louvor à virgem mãe de Deus.

Onde despertaria do sono sacrílego? Crê o povo que no Inferno.

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Ano de publicação: 1925.
Origem: Brasil (Nordeste)

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