O MISTÉRIO DA ÁRVORE
Esgalhada e seca, enorme, os seus frutos eram
cadáveres ou corvos. Ninguém se lembrava que ela tivesse dado folhas nem flor,
a árvore enorme que havia séculos servia de forca: ninguém se deitava à sua
sombra e parece que nem o sol lhe dava, estarrecida e hirta, a árvore enorme
que havia séculos servia de forca.
Em frente ficava o palácio real, construído
dum bloco de pedra negra, que o mar bravo batia, e só o rei se pusera a amá-la,
pois que ela era igual à sua alma, nua e trágica, a árvore triste que havia
séculos servia de forca...
Que doença estranha, vagarosa mas tenaz,
matava o rei?... Só amava os crepúsculos, agonias de luz, o passado, e a
multidão silenciosa vinha vê-lo, ao findar da tarde, de cabeça a escaldar
encostada aos vidros das janelas, sem desejos, o olhar perdido em quimeras,
imaginários países, onde tudo são agonias, águas quietas, espectros de árvores
esgalhadas. Tudo o que era moço e vivo fugira do palácio, porque o rei
aborrecia e mandava punir a mocidade e o amor. Só o mar ainda o prendia ou a
árvore negra, desde séculos seca e estarrecida, a árvore maldita que no seu
reino servia de forca...
Pusera-se a odiar os felizes e os amorosos,
na raiva de não ser moço e forte. Às noites, no silêncio tumular do seu
palácio, nos corredores, onde os seus passos ecoavam, tinha desesperos,
torturas de não poder amar as lindas mulheres de carnes de camélia, frias e
lácteas. Erguia os braços numa súplica, sozinho, porque não queria ver ninguém,
babujava, caía no ódio à mocidade e ao amor. Fizera-se assim invejoso e mau e
por vezes já mandara matar criaturas, que se amavam...
Sucedeu que veio a primavera e todas as
árvores, ao seu hálito, estremeceram e se cobriram de floração. Havia pequenas
borboletas que nasciam do sol, pedaços de luz materializada, e dois amorosos,
vindos de países lendários, perderam-se também, naquela terra praguenta, erma e
bravia... Ela era grácil, envolta na poalha dos seus cabelos, com risos
infantis. O mendigo, apenas vestido, era feliz e esbelto, preso no seu olhar. E
assim vieram enlaçados, com a primavera, cobrindo todo o país árido, que
calcavam, de vida e de amor. As macieiras dos quintais deitavam galhos fora dos
muros e pequenas flores esvoaçavam pela sua nudez: os poentes no mar tinham
cor, púrpuras e ouro em brasa...
Só o rei no palácio trágico vivia braço a
braço com a dor. A vida, a luz, as árvores lembravam-lhe a sua miséria e
enojavam-no. Queria que todo o país fosse negro e viúvo; e o amor que ele
sentia correr na terra, a morte até, que tudo transformava e enchia de vida,
lhe parecia uma abominação. Deitava-se no chão e a terra era uma noiva, os
montes, seios duros, as árvores, cabelos ao vento. Sentia-a palpitar amorosa e,
num desespero, fugia, para não pensar, sozinho no seu palácio construído de
pedra negra e cuspido pelo mar raivoso...
Ficava então horas de olhos fitos na árvore.
Como o rei ela era seca e hirta, negra, e os seus frutos cadáveres ou corvos, a
árvore trágica que havia séculos servia de forca. Tudo à volta se transformava,
amava, se cobria de floração: só ela ficava estarrecida diante da vida e do
amor.
Um dia o rei soube que dois mendigos felizes
tinham entrado no seu país e mandou-os logo prender. Havia já noites que ele os
sentira em tudo: nos espinheiros em flor, nos sapos dos caminhos, que pareciam
extáticos, nas coisas que queriam falar e estremeciam, na noite que trazia até
ao palácio murmúrios, no vento que atirava para o castelo construído num só
bloco de pedra negra, galhos de árvores luminosos, cheinhos, dir-se-ia, de
geada. Punha-se de ouvido à terra, e a terra, a noite, o mar tinham vozes
confusas, que ele entendia e o enfureciam.
Quando vieram ao palácio, trazidos por
soldados, com eles entrou um bafo procriador, luz, sol: cheiravam a árvores, à
erva e à lama dos caminhos, húmus, que traziam pegada nos seus pés feridos. A
vida rompera por aquele túmulo dentro e, pois que iam morrer, dir-se-ia que a
morte, em lugar da foice simbólica, trazia nas mãos um galho de árvore onde
batia o sol.
Raivoso, o rei não lhes perguntou nada.
Olhou-os odiento durante minutos e depois fez um gesto aos carrascos, que logo
se apoderaram deles e os arrastaram. Os mendigos sorriam, alheados, lindos,
cobertos de erva, de terra: cheiravam a árvores, a sol e à primavera.
Enlaçados, olhavam-se e parecia que eles eram, um a vida, outro o amor.
Noite negra e o rei subiu sozinho ao terraço.
Restos de nuvens, restos de mantos enlameados, arrastavam-se pelo céu. A árvore
estarrecida e hirta, onde os dois mendigos haviam sido enforcados, mal se via
na escuridão; mas de lá vinha um frêmito, a sua agonia talvez, e uma claridade,
os seus vestidos decerto... Toda a terra lhe parecia uma podridão a fermentar:
ouvia murmúrios, gritos de amor. Se as árvores falassem, se as árvores e as
coisas dissessem tudo o que sabem!...
Encostado à muralha passou a noite absorto.
As nuvens galopavam, o grasnido dos corvos na árvore afligia-o: só ele diante
da vida ficava seco e inerte... Por que não iria ser macieira, mendigo, húmus?
transformar a sua dor em felicidade? ser humilde e beber o sol, ir alegre na
aluvião da vida? Oh como ele odiava a mocidade, o amor, lábios que se beijam, a
emoção!... Só a árvore esgalhada e seca o prendia ainda, a árvore sinistra que
no seu reino servia de forca.
Ficou até de manhã, d’olhos postos nela, sua
igual, triste e estarrecida, sem amor e sem vida, negra como as ideias que ele
tecia, da secura da sua alma, a árvore enorme que no seu reino servia de
forca... Começaram os cerros a ter tintas violetas, as árvores a azular-se, e a
forca, em que ele agora se absorvia, a erguer-se dentre a névoa, a árvore que
havia séculos, não tinha seiva, esgalhada e negra...
Súbito ficou petrificado, de olhar fito na
árvore, que aquecida com o imortal amor dos mendigos, tinha um galho, aquele em
que os dois pendiam enforcados, cheinho de flor. Toda de negro, hirta e má como
uma praga, deitara um galho que enternecia, tão coberto de flor, ideal noivado,
a árvore enorme que havia séculos servia de forca. Nos seus galhos tinham sido
enforcados tantos desgraçados, as suas raízes para sempre secas pelas lágrimas
dos que choravam: tolhida pela dor dos justiçados, não bebia água, nem sugava
húmus. Vira passar reinados, homens, primaveras, sem se comover, negra e
arrepelada como uma mão a amaldiçoar a terra e o castelo. Assistira a
transformações do solo, a cataclismos, a tempestades e a guerras, a ambições e
a sofrimentos, e sempre morta, petrificada, negra como uma cova — e naquela
noite, aquecida com o amor de dois mendigos, a árvore deitara um galho, um
único, mas cheio de flor, adorável, como se nele se concentrasse toda a paixão,
a primavera e o noivado da terra — a árvore maldita que desde séculos servia de
forca...
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Ano de publicação: 1900.
Origem: Portugal
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)
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