sábado, 11 de dezembro de 2021

O anjo e a flor do campo (Contos de Fadas), de Hans Christian Andersen

 

O ANJO E A FLOR DO CAMPO
 

– Sempre que sucede morrer uma criança boa, desce um anjo do céu a buscá-la, e, depois de a recolher em seu regaço, desdobra as asas brancas, dadas pelo Criador, a fim de ir percorrendo em seguida todos os sítios com que na terra a criança mais simpatizou. As flores que nesta digressão apanham, levam-nas ambos ao Pai Celeste, para ele as fazer lá reflorir no empíreo mais formosas e odoríferas, imarcescíveis mesmo. Deus então aconchega ao peito essas flores, – e na que mais lhe apraz deposita um beijo. Esse beijo tem o condão miraculoso de inocular na flor animação e voz.

Destarte a flor transfigurada passa a tomar parte também nos harmoniosos coros dos bem-aventurados. Assim falava um anjo de Deus na ocasião de transportar para a mansão celestial uma criança morta. E a criança escutava o anjo, absorta, embevecida, como se a envolvessem cintilantes brumas de um sonho fagueiro. E o anjo, conchegando ao regaço a criancinha, voava naquele momento por sobre os sítios, de que ela mais tinha gostado em vida, – jardins esmaltados de flores lindíssimas.

– Quais destas queres, perguntava o anjo, que daqui levemos para lá plantarmos no céu?

Aconteceu passarem por junto de uma roseira magnífica. Mãos daninhas, porém, de qualquer mal-intencionado, haviam barbaramente praticado o ato brutal de quebrar-lhe o tronco, por forma que os desditosos ramos, carregadinhos de rubros botões prestes quase a desabrocharem, pendiam tristemente emurchecidos, enquanto de todo não secassem.

– Que dó que me faz o pobrezinho do arbusto! exclamou a criança. Ah! que se pudéssemos levá-lo conosco para ir lá no céu reverdecer e reflorir!...

Fez-lhe o anjo a vontade e apanhou a roseira. Depois continuaram a colher flores de variadas castas, até reunirem um volumoso braçado.

– Parece-me que bastam agora já essas que levamos, observou a criança.

O anjo fez um aceno de condescendência, mas sem remontar ainda o voo para o firmamento. Começava a pronunciar-se cada vez mais a escuridão da noite incipiente. Reinava em torno um silêncio profundíssimo. Nisto aconteceu passarem quase rentes com uma ruazita estreita e sombria, em cujo pavimento jaziam dispersos, abandonados, desprezados por entre o lixo do solo, fragmentos de louça quebrada, vidros partidos, chinelos velhos, farrapos e trapalhadas, que denunciavam esse conjunto de peripécias sempre mais ou menos inerentes a qualquer mudança de domicílio. Algum morador, que dali se ausentara, – ao transportar para a nova residência seus pobres tarecos, havia certamente arremessado à rua a inútil frandulagem de que já não precisava.

Por entre estes destroços mostrou o anjo à criança os cacos de um vasito de flores. Junto aos cacos viam-se os torrões esboroados da terra que em tempo enchera o vaso. A um desses torrões prendiam-se ainda as raízes de uma singela planta campestre, com a sua florinha de mimosas cores emurchecida já e quase esfolhada, suja de pó, amachucada e pisada pelos pés dos transeuntes. E, ao mostrar-lha, disse o anjo à criança:

– Levaremos também esta, coitada, no caminho te irei contando os motivos.

Depois começou a erguer, a erguer o voo para o céu. Foi então que o anjo deu princípio à narrativa seguinte:

– Ali, naquela rua sombria que tu viste, morava numa espécie de toca uma criancinha enfermiça. Era um pequenito que nascera enfezado e raquítico. Sua moléstia congênita impunha-lhe a necessidade tristíssima de permanecer quase sempre na cama. Se alguma vez acontecia sentir melhoras, o mais que lograva era percorrer o quarto em roda, amparado nas muletas. Quando chegava o estio, entravam-lhe pela janela uns raios de sol a iluminarem-lhe o acanhado âmbito do seu miserável domicílio. A criança aproveitava então a visita fugitiva daquelas ondulações luminosas e nelas se aquecia, e nelas buscava revivificar-se, como se fora aquilo a benéfica influência de um higiênico passeio pelo campo. Este pequenito nunca em sua vida tinha pois podido apreciar a magnífica verdura das florestas, e delas só podia formar uma longínqua ideia por algum ramo de faia que o filho do vizinho lhe trazia de tempos a tempos, como lembrança. Pegava então no ramo, e dependurava-o por sobre a cabeceira, fazendo assim de conta que estava repousando à sombra de virente arvoredo, com as ondulações doiradas de um sol em perspectiva e um delicioso chilreio de mil passaritos a encher-lhe de música os ouvidos. Numa bela manhã de primavera trouxeram-lhe umas flores do campo; casualmente uma destas vinha ainda com a raiz intacta. Tira-se de cuidados o pequeno, e trata de plantar cautelosamente o vegetalzito num vasinho de barro, que daí por diante ficou constituindo o seu constante enlevo, pousado no parapeito da janela, à ilharga do leito em que jazia. Plantado por mãos carinhosas, regado, tratado, acariciado, o vegetal campestre soube na sua humildade agradecer os afagos de tanta solicitude; em breve lhe pulularam viçosos rebentos; e todos os anos se desatava em novas flores, como a festejar o seu desvelado cultor. Para o pobre doentinho era aquilo o seu estimado jardim, o seu único tesouro neste mundo; queria-lhe com todo o afeto da sua alma; prodigalizava-lhe os seus mais encarecidos mimos; da água, que bebia, dava-lhe sempre as primícias; colocava-o de modo que nunca perdesse um raio sequer do sol que escassamente lhe entrava pela janela. E a humilde planta vegetava e desenvolvia-se; revestia-se cada vez mais de folhedo; toucava-se de botões que desabrochavam em flores; irradiava-lhe perfumes; parecia até sorrir-lhe com requintes de galanteio. Por sua parte o pequenito, – quando afinal Deus o chamou à sua eterna presença, – o pequenito, antes de soltar o derradeiro suspiro, inclinou-se comovido para a sua verde companheira e segredou-lhe de mansinho, muito de mansinho, as suas ternas, últimas despedidas. Faz agora um ano, que o pobre enfermo faleceu; e durante este ano todo lá ficou desprezada, esquecida a um canto, no mesmo parapeito da esguia fresta, a planta campesina em que outrora havia docemente concentrado seus cuidados e alegrias o infantil doentinho. Faltando-lhe os mimos, a que se acostumara, pouco a pouco murchou e se foi o triste vegetal mirrando, até que o próprio vaso agora lhe deitaram à rua, como inútil pejamento, por ocasião de sair dali quem habitava naquela miserável toca. Foi esta a flor, que ora acabamos de cuidadosamente recolher de entre o lixo da rua; e, se em nosso ramalhete a arrecadei com tanto carinho, é porque, – onde a vês, amachucada, espezinhada, — causou já mais alegrias e mais enlevos, do que se fora uma flor raríssima no jardim de uma rainha!

– E como é que tu sabes os pormenores todos dessa história? perguntou a criança ao anjo.

– Como é que os sei? é porque se passaram comigo estas particularidades; o pequenito das muletas sou eu; não querias que reconhecesse a minha estimadíssima flor?

A criança olhou então deslumbrada para o rosto esplendoroso do anjo. Chegavam naquele momento às luminosas portas da privilegiada mansão, em que ninguém respira senão júbilo inefável e felicidade eterna.

Quando o Pai do Céu estreitou em seus braços o corpinho da criancita morta, sentiu esta, como por encanto, despontarem-lhe milagrosamente nas costas duas asas brancas, muito brancas, de plumagem fina, acetinada, exatamente iguais às do anjo que o transportara.

E ambos de mãos dados, agora perfeitamente idênticos na sua essência imutável, ambos graciosamente unidos em fraternal amplexo, foram então voando risonhos pela estrelada amplidão do empíreo.

Em seguida recolheu Deus no regaço as flores que os recém-chegados lhe haviam trazido; todas amimou e agasalhou por igual; – mas na pobre planta que o anjo apanhara de entre o lixo, nessa, como se quisesse distingui-la com o privativo selo da sua espe­cial predileção, depositaram seus divinos lábios um beijo.

É logo a florinha dos campos, que abandonada e desprezada jazera na lama da rua, de pronto renasceu transfigurada; brotou-lhe instantaneamente voz; incorporada no grupo infinito das criaturas angélicas que flutuam em torno do Onipotente, ficou simultaneamente com estas entoando os solenes cânticos da felicidade celeste.


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Fonte:
Traduzido por: Xavier da Cunha (1840-1920) 
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

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