sábado, 4 de dezembro de 2021

Manuel da Bengala (Fábula), de Monteiro Lobato

 

MANUEL DA BENGALA
 

Era uma vez um rei que teve um filho que nasceu grandão e forte demais. Com oito dias de idade já devorava um boi inteiro. O rei, muito assustado, chamou seus conselheiros para lhe darem opinião, porque naquela toada o menino acabaria com todos os bois do reino. Os conselheiros acharam que o melhor era soltá-lo pelo mundo. O rei concordou. Deu ao filho uma bengala de ferro, um machado, uma foice de bom tamanho e soltou-o no mundo.

O príncipe saiu. Chegando a uma fazenda, pediu serviço. O fazendeiro ajustou-o e mandou-o roçar um pedaço de mato. O moço meteu a foice no mato com tanta fúria que assustou o fazendeiro. Na hora de jantar deu risada da comida que lhe trouxeram. Queria um boi inteiro, com um alqueire de farinha. O fazendeiro achou graça e fez a experiência, certo de que ele só comeria um pedacinho do boi e no máximo um litro de farinha; mas quando viu todo o boi desaparecer no seu bucho, e mais o alqueire de farinha, não quis saber de histórias — despediu-o.

O príncipe voltou para o palácio do rei, onde passou uns tempos. Por fim o rei cocou a cabeça e reuniu novamente os conselheiros. "Que fazer deste rapaz que me devora um boi por dia?" Os conselheiros aconselharam o rei a mandá-lo pegar seis leões na floresta, certos de que os leões num instantinho dariam cabo dele.

O príncipe pediu um carro com três juntas de bois — e foi para a floresta, onde passou seis dias. Cada dia comia um boi e pegava um leão, que amansava e punha no carro, em lugar do boi comido. Quando completou a conta, entupiu o carro de árvore e tocou para a cidade.

O rei e todo o povo se encheram de espanto com a façanha de Manuel da Bengala, que era como lhe chamavam. Coisa como aquela ninguém ainda tinha visto. O rei cocou a cabeça. Por fim mandou que o príncipe saísse pelo mundo e nunca mais lhe aparecesse. O príncipe saiu.

Foi andando, andando. Em certo ponto encontrou um homem que atravessava um rio sem se molhar. Era o Passa-vau.

— Bom dia, Manuel da Bengala! — gritou o homem.

— Passa-vau — disse o príncipe — quer passar-me para a margem de lá?

Passa-vau passou-o e seguiram juntos. Adiante encontraram um homem cortando cipó. Chamava-se Arranca-serra.

— Bom dia, Manuel da Bengala! — gritou o homem.

— Arranca-serra — disse o príncipe — quer viajar comigo? O homem aceitou e lá seguiram os três.

Cada dia um deles tinha de arranjar comida para o bando. Certa vez em que Passa-vau saíra a cuidar disso, encontrou um molequinho de carapuça vermelha, que lhe pediu fogo para o cachimbo. Passa-vau não quis dar e o moleque pregou--lhe tal cachimbada na cabeça que o fez vir ao chão, como morto. Só uma hora depois voltou a si, e foi contar aos companheiros o acontecido.

— Você não vale nada — disse Arranca-serra. — Quem vai buscar comida amanhã sou eu. — E foi.

O molequinho da carapuça apareceu de novo, pedindo fogo para o cachimbo. Arranca-serra não quis dar e levou outra cachimbada na cabeça que também o deitou por terra, sem sentidos. Quando voltou a si e foi em procura dos companheiros, Manuel da Bengala riu-se muito.

— Vocês não valem nada. Quem vai buscar comida amanhã sou eu.

— E foi.

O moleque da carapuça apareceu pela terceira vez, sempre pedindo fogo. Manuel da Bengala respondeu ao pedido com um golpe da sua tremenda bengala de ferro. O moleque resistiu e deu-lhe com o cachimbo na cabeça. Travou-se luta medonha, até que uma bengalada arrancou a carapuça da cabeça do moleque. Manuel guardou-a no bolso.

— Manuel da Bengala, me dê minha carapuça — pediu o moleque com voz de choro.

— Não dou, não dou — foi a resposta, e seguiram andando os dois, um a insistir pela carapuça e outro a negar. Por fim Manuel da Bengala disse: "Só te darei a carapuça se me entregares as três princesas que tens encarceradas."

O moleque, que era o "cão", respondeu: "Isso não, porque minhas não são."

Foram andando, andando. Em certo ponto o moleque entrou por uma gruta — e Manuel da Bengala atrás. Foram dar num reino lá no fundo da terra, onde trabalhavam muitos escravos. Era o inferno. O moleque não parava de pedir a carapuça, e Manuel não parava de pedir as princesas. Por fim, vendo o "cão" que não podia com a vida daquele homem, deu-lhe as princesas. "Agora passe para cá minha carapuça!" Manuel respondeu: "Espere! Primeiro tem que me botar lá fora, no caminho."

O moleque resistiu; Manuel pregou--lhe a bengala até que ele cedesse e o levasse para fora, com as três princesas na frente. Assim que as três princesas surgiram na abertura da caverna, os companheiros de Manuel da Bengala, que estavam por ali, agarraram-nas e dispararam com elas.

Quando Manuel se viu na estrada, restituiu a carapuça ao moleque, mas ficou muito espantado de não ver as moças. Os seus companheiros já estavam longe. Haviam ido entregá-las ao rei, dizendo que as tinham salvo e pois deviam recebê-las como esposas.

O rei ficou contentíssimo de rever as filhas mas as moças puseram-se a chorar, dizendo que o salvador das três não era nenhum daqueles homens.

Lá longe, Manuel da Bengala, sentado à beira do caminho, pensava na vida. Tinha ficado com os lenços das moças. Pegou num deles e disse: "Voa, voa, e vai cair no colo delas." O lenço virou num papagaio que foi sentar-se no colo duma das princesas.

— Eu só me casarei com o dono deste papagaio — disse a moça. Manuel da Bengala pegou nos outros lenços e disse: "Voai e levai-me ao palácio das princesas", e os lenços voaram e levaram-no ao palácio das princesas.

Lá chegando, as três reconheceram-no como o seu salvador, e Manuel casou-se com a do papagaio. Os dois embusteiros depois de uma grande sova, foram expulsos do reino. As outras casaram-se com dois lindos príncipes. E acabou-se a história. 

 

---
Ano de publicação: 1922.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

Nenhum comentário:

Postar um comentário