sábado, 4 de dezembro de 2021

A madrasta (Fábula), de Monteiro Lobato

 

A MADRASTA 

Havia um viúvo com três filhas. Um dia resolveu casar-se de novo — e casou com uma mulher muito má, que tinha ódio às meninas. Fazia-as trabalhar como verdadeiras escravas.

No quintal havia uma grande figueira. Quando chegou o tempo dos figos, a madrasta botou as meninas lá tomando conta para que os passarinhos não bicassem os figos.

As três coitadinhas passavam debaixo da figueira o dia todo, dizendo aos sanhaços que se aproximavam: 

Xô, xô, passarinho,
aí não toques o biquinho.
Vai-te embora pro teu ninho...
 

Mas mesmo assim aparecia um ou outro figo bicado e a madrasta batia nas três.

Um dia em que o homem fez uma longa viagem a madrasta aproveitou-se para mandar enterrar vivas as coitadinhas. Quando o homem voltou e indagou das filhas, a peste respondeu que haviam caído doentes e morrido, apesar de todos os remédios. O pobre pai ficou muito triste.

Mas aconteceu que no lugar onde as meninas tinham sido enterradas brotou logo um lindo capinzal — dos cabelos delas, e quando batia o vento o capinzal murmurava: 

Xô, xô, passarinho,
aí não toques o biquinho.
Vai-te embora pro teu ninho...
 

Um negro, tratador dos animais da casa, andando a cortar capim, ouviu aqueles murmúrios e teve medo de mexer nas pontinhas. Foi contar o caso ao patrão.

O patrão não quis acreditar, e disse-lhe que cortasse o capim com murmúrio e tudo. O negro obedeceu. Mas quando levantou a foice, ouviu novamente a misteriosa voz, que dizia: 

Capineiro de meu pai,
não me cortes os cabelos;
minha mãe me penteava,
minha madrasta me enterrou
pelo figo da figueira
que o passarinho bicou.
 

O negro foi correndo contar o caso ao patrão, com um grande susto na cara. E tanto fez que o obrigou a chegar até lá. E então o pai das meninas ouviu o lamento das filhas enterradas.

Mandou buscar uma enxada e cavar, e retirou-as da terra, vivas por milagre de Nossa Senhora, que era madrinha das três.

Quando voltaram para casa, na maior alegria deram com a madrasta estrebuchando. Um castigo do céu tinha caído sobre a peste.

 

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Ano de publicação: 1922.
esquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

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