domingo, 12 de dezembro de 2021

A praga materna (Contos de Maldição), Viriato Padilha

 

A PRAGA MATERNA

O casamento de Luísa com Pedreira era a tábua de salvação na qual dona Maria tinha os olhos pra preservar os filhos menores da miséria e da fome, pois o marido, ao morrer, a deixara sem teto, sem vintém, e ainda por cima carregada de dívida.

Apareceu, no entanto, Pedreira, solicitando a mão de Luísa, a filha mais velha, e dona Maria vira nele um anjo descido do céu, pra lhe fazer aquele pedido.

Pedreira estava bem. Moço ainda, muito sisudo, abraçara a carreira comercial e seu nome já gozava de crédito na praça.

Que melhor partido podia desejar à filha, que, afinal de conta, não passava duma pobre desvalida sem futuro?

A velha agradecida, abraçou o ente providencial que surgia em momento tão aziago, e, pressurosa, foi comunicar a boa-nova à filha, que a recebeu indiferente mas sem recusar assentimento ao enlace.

Dona Maria atribuiu a acanhamento aquela maneira de proceder e, sem mais se preocupar, tratou de aprontar o enxoval de noiva. A pobre senhora se sentia tão feliz ao costurar aquelas roupas brancas!

***

Contudo os cálculos de bem-estar futuro tinham de ser contrariados.

A moça não sentia inclinação a Pedreira, apesar da carinhosa atenção de que ele a cercava, porque estava perdidamente enamorada dum malandrim da pior espécie, que todas as noites fazia serenata embaixo de sua janela.

Esse tipo era um tal Quincas Mimoso, sujeito de costume depravado, jogador, desordeiro e libertino.

Mas o que querem? A moça se deixou levar por sua presença agradável, requebro, cantoria e, numa bela noite, quando faltavam apenas quinze dias pra se casar com Pedreira, teve a fraqueza de deixar Quincas penetrar em seu quarto. E ele ali se conservou até madrugada, roubando o único bem que a infeliz possuía, a virgindade.

No dia seguinte, passado o primeiro momento de verdadeira alucinação, ao deixar os braços do amante, longe dos beijos capitosos, da deliciosa e embebedante carícia, a moça compreendeu toda a gravidade de sua falta, todo o horror da desgraça que a ferira. Ficou desonrada, no fundo abismo da perdição, onde cegamente se lançara, não o tendo visto, enganada pela verdolente relva e pelas florzinhas primaveris que lhe ocultavam as goelas escancaradas. Julgando haver penetrado no Paraíso se despenhara no Inferno.

Não podia aceitar o vantajoso casamento com o honesto Pedreira, esse casamento que era o grande sonho de sua velha mãe, e que seria a salvação da toda a família. Não queria enganar o digno moço, e mesmo receava o fazer. Pedreira, justamente por ser escrupulosamente sério, o protótipo da honra e do dever, escudado em sua dignidade, zelando a pureza de seu nome respeitado, se descobrisse sua falta, seu crime, sua infâmia, como fatalmente sucederia, ó!, seria justiceiramente inexorável e não perdoaria! O castigo que receberia seria a morte.

E Luísa não queria morrer. Moça ainda, cheia de sonho, ilusão e esperança, sem ainda conhecer o mundo, amava a existência, e queria viver. Por isso não trepidou. Tendo combinado com Quincas, tendo entrouxado toda a roupa e algumas jóias de fantasia que possuía, abandonou a casa materna, deixando uma carta relatando a sua mãe os motivos que a induziam a proceder daquela forma.

A mãe, desesperada, se irritou contra ela, e em seu desvario, sem bem saber o que fazia, cega de dor, louca de desespero, acabando de ler a carta, exclamou:

— Vás, desgraçada, vás, sumas da minha presença! Me condenas, e a teus irmãozinhos à miséria, porém Deus é justo e os anjos me ouvem! Assim como arrancas hoje o pão da boca destas inocentes crianças, teus filhos, se os tiveres, comerão, um dia, o pão amargo da esmola. É a praga que te rogo! Vás. Procures teu sedutor e nunca mais apareças!

Luísa foi viver com Quincas. Durante os primeiros seis meses, que deviam ser os da lua-de-mel, sofreu horrores.

O biltre, logo que se enfastiou da pobre moça, começou à maltratar. A obrigava a lavar e engomar a fora, o dia inteiro, e os minguados cobres que a infeliz apurava os consumia na mesa do jogo e em orgias com meretrizes das mais descaradas.

Sua vida era um tormento Nem pancada o miserável lhe poupava!

No fim de um ano pariu uma menina, e então cresceram as agonias da infeliz, pois já não era a única a sofrer, mas também o fruto querido de sua entranha.

Esse martírio durou três anos, até que um dia Quincas, estando numa orgia com mulheres e indivíduos da pior espécie, entrou em questão com um deles e recebeu certeira facada no coração, da qual resultou morte imediata.

Luísa, apesar dos maus tratos que Quincas lhe dava, fez um enterro decente, e se vestiu de luto, pois, por desgraça sua, amava deveras o infame.

Tal sucesso, porém, e o trabalho contínuo e pesado a que se entregava, lhe tiraram as forças, debilitaram o organismo e adoeceu.

Foi, então, que a miséria se tornou atroz. Não podendo trabalhar, nenhum dinheiro recebia, e muitos dias se lhe confrangia a alma, ao ver sua inocente filhinha chorar de fome.

Um dia a infortunada criança, vestida com uma camisa preta toda esfrangalhada, estava sentada à porta, muito triste, e roendo uma casca de banana que encontrara na rua. A criaturinha tinha fome! Apenas comera na véspera um pão duro.

Pouco depois passou ali um homem bem trajado, cheio de jóias custosas e brilhantes, entre as quais avultava uma bela corrente de relógio. Ao se lhe deparar aquela triste cena, compreendeu tudo de relance. Condoído, meteu a mão no bolso do colete e tirando uma moeda de prata de 1000 réis, a colocou na mãozinha da criança, dizendo:

— Vás, minha filha. Entregues este dinheiro a tua mãe, pra comprar pão.

E foi. No outro dia o homem tornou a passar por ali, viu de novo a criança sentada à porta e lhe deu nova moeda.

No terceiro dia se repetiu a mesma cena.

Se cumprira a praga materna, em tão má hora lançada. A filha de Luísa comia o pão amargo da esmola!

***

Nesse terceiro dia, porém, Luísa recebeu a visita de sua madrinha, que havia muitos anos não via.

Era uma velhinha, que, ao ver o estado miserável da afilhada, sentiu os olhos cheios de lágrima. A abraçando, pediu contar como chegara àquela penúria.

A desgraçada começou a chorar e desafogou toda a dor no seio da madrinha.

Referiu a morte do pai, o projetado casamento com Pedreira, como se deixara seduzir por Quincas, a terrível praga da mãe, o desmanche do casamento, e afinal os maus tratos que sofrera de Quincas, a morte dele, sua enfermidade e até a esmola que a filha havia três dias recebia dum transeunte.

Assim que terminou a narração da desventura, a madrinha se ergueu e disse:

— Minha filha, tudo isso te acontece por causa da praga que te rogou tua mãe. Que coração, o de minha comadre Maria! Nunca pensei! Dizem, porém, que a madrinha tem poder pra tirar da afilhada a praga que a mãe lhe lança. Assim, se Deus e nossa senhora acharem em mim merecimento bastante, pela virtude que recebi, ao te levar à pia do batismo, te tiro a praga que tua mãe te rogou!

Em seguida a madrinha se retirou.

***

Luísa teve curiosidade de conhecer a pessoa que todos os dias dava uma moeda a sua filha. Por isso, no dia seguinte, se postou à janela, quando se aproximava a hora do transeunte passar.

Não tardou. Qual não foi o espanto, a confusão, ao ver que o generoso benfeitor de sua filha era Pedreira!

Ele, por seu lado, que não esperava a ver em tal lugar, ficou também perturbado. Mas, formando imediatamente uma resolução, tomou nos braços a criança que estava à porta, e entrou.

A infeliz moça, ao ver o antigo noivo, que tanto a amara, com quem, se casaria e necessariamente seria feliz, se sentiu morrer de dor, remorso, angústia e desespero. Queria falar mas as palavras como a sufocavam, se misturando com a lágrima e o soluço. Padecia horrivelmente naquele instante!

Pedreira, porém, meigo, carinhoso, encetou uma conversa hábil e delicada. Sem proferir palavra de condenação ou de censura, sem exprobrar o procedimento, conseguiu que ela se acalmasse pouco a pouco, contando, enfim, toda sua horrível e desoladora história.

Nesse dia o digno negociante pouco demorou, mas tornou a voltar na manhã seguinte, e assim todos os dias.

A antiga camaradagem que havia entre ambos renasceu como outrora. Luísa se sentia agradecida ao bom e generoso moço que a socorria sem que o parecesse, com jeito e delicadeza encantadores.

Ao cabo de um mês a moça, boa, forte, robusta, restabelecida das comoções e necessidades que sofrera não era mais a criatura macilenta e faminta, que agonizava num catre. Surgiu outra Luísa, bela, formosa, elegante, cheia de carinho e gratidão.

Meses e meses se passaram. Tendo se mudado a outro arrabalde, sempre por iniciativa de Pedreira, fez a paz com a mãe, e viviam todos em harmonia.

Um dia, quando já decorrera mais de um ano, depois que tornara a encontrar o antigo noivo, já estando esquecido de todo o negro passado, Pedreira propôs casamento, que ela aceitou, como se estivesse sonhando, sem bem poder acreditar em tamanha felicidade.

Luísa e Pedreira foram felizes, absolutamente felizes, cuidando do futuro, sem recordarem os dias angustiosos que até sempre desapareceram na noite eterna do eterno olvido!



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Ano de publicação: 1925.
Origem: Brasil (Nordeste)

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