domingo, 12 de dezembro de 2021

A pantera negra (Contos da Meia-Noite), Viriato Padilha



A PANTERA NEGRA

Eram quatro numa câmara vizinha, velando o cadáver de David Morel, o tísico.

Cada um, estava combinado, contaria uma história tremenda, pra encher a noite.

Alfredo Vilar se levantou. Deviam de ser 11h. Foi à porta da sala imediata, e fitou o cadáver branco. O círio ardia. Naquela parte era profundo o silêncio. Imobilidade, tumular quietude gélida!

Começaria a narrativa.

Passou nervosamente a mão, com os dedos abertos, no cabelo grisalho e rebelde, o derramando doidamente sobre a testa, e disse:

Evocarei uma história tremenda, que nunca se apagou de minha lembrança! Nunca mais! E, cada vez que a desperto, esse mesmo pânico, que quase me tornou louco, essa mesma assiduidade eterna do terror, lançam à alma uma excitação medonha que me faz arrepiar o cabelo. Nunca mais me abandonou aquela visão fatal! Nunca mais!

***

Preza desse enfado profundo da vida, arrebatado pelo encanto do sonho, da visão e do silêncio assombroso dos retiros, fizera aquisição dum velho casarão antigo, abandonado, num sítio ermo e sobre um rochedo na borda do mar. As tradições mais aterradoras circulavam entre o povo acerca daquele retiro. Aparição noturna de fantasma e alma errante, espírito vagabundo, clamor doloroso no meio da noite, tétrico arrastar de corrente, soluço convulso e fogo adejante, através das janelas, abertas na meia-noite por mão invisível, formavam o cortejo fantástico que dera a esse velho casarão a reputação assustadora.

Abandonado e ermo durante alguns anos, atraíam meu espírito exaltado a essa morada, a legenda tétrica e o retiro lúgubre do silêncio.

Os antigos proprietários quase designaram o direito de posse. E foi sem custo que obtive, com alguns arregalares de olhos admirados, o consentimento pra o habitar, como próprio domínio.

Era só o que pretendia ao habitar esses lugares. Queria me sentar tristemente sobre aquela ruína, como Volney ou Chateaubriand sobre o destroço de Palmira morta. Tinha a sede do fantasma e a vertigem da sombra. Apenas levava meu negro Relâmpago, brioso cavalo dum bravo sargento morto no campo de batalha. Seria a única vida que acompanharia a minha. Era sobre seu costado de veludo, negro como o corvo, que eu vagava errante nas longas noites de estio, à luz frouxa das estrelas, nas estradas solitárias. Ultimamente me tornara como um espectro vagamundo. E os camponeses falavam, apavorados, do viajante do cavalo negro, que passava nas estradas desertas na meia-noite, resfolegando às portas das choupanas e que ao despontar o dia ninguém via mais.

Esse nome de Relâmpago dera o bravo soldado que o possuíra. E, a não ser pela agilidade fenomenal, não compreendo a razão. Relâmpago! Negro como o cervo fatal! Negro como a tinta do crime! Negro como a hora da meia-noite!

***

Em minha primeira estada noturna nada de extraordinário pude receber.

No largo aposento que escolhera se abria uma janela, ou antes uma porta sobre o mar, onde se levantava até o meio uma grade de ferro arruinada. O resto do casarão era deserto, e mudo. Através da vidraça entrava um fosco luar de inverno, embaçado e lúgubre. Li até alta noite, naquele silêncio que embriagava, como uma volúpia suprema. Nada se ouvia!

No aposento, além do leito onde devia descansar as poucas horas de repouso a que me entregava, havia apenas uma espécie de armário envelhecido e escuro. E no outro lado, alta, coberta de teia-de-aranha, cheia de pó mas com essa nobre austeridade dos antigos móveis, uma dessas cadeiras à Luís XIII, que me recordava de ter visto nas gravuras de Abraão Bosse.

Em baixo, no pátio, o resfolegar de Relâmpago, reconhecendo pelo olfato os objetos da nova morada que tinha: Resfolegando e escarvando, aqui e ali, o chão do terreiro, aclarado pelo frouxo luar tristonho.

Apenas notei que, muito alta noite já, quando fecharia o livro e apagaria a lâmpada, pra descansar, um grande gato negro, descendo silenciosamente do madeirame do teto nu, com as telhas escuras, esverdinhadas do hálito do mar, veio pousar sobre o armário antigo, que eu já encontrara no lôbrego aposento. O olhar espantado do animal brilhava na penumbra, como duas pequenas chamas amarelas. Pousou, e ficou, sobre as patas traseiras, olhando a sombra da câmara onde eu já apagara a lanterna.

E comecei, então, a pensar, meio deitado sobre o leito. O que queria dizer aquilo? Como vivia ali, aquele animal, naquele ermo, só, como o negro senhor daquela morada assombrada? Acaso não seria um desses fantasmas falados?! Que estranho animal! Os olhos vivos, vivos! O pelo negro, negro! Imóvel! Só!

E ali ficou sobre o móvel antigo o anacoreta da sombra, como olhar chamejante, claro, transparente, como duas ágatas luminosas. Seria aquele móvel um sepulcro ou uma urna de despojo humano? E não seria o vigia fúnebre, preso por um afeto, uma saudade antiga, à lembrança do morto?

E ali ficou! E nada mais se escutou! Relâmpago resfolegando embaixo, a espaço. Tristemente foi se apagando o baço luar, como um palor de morte.

E na enorme habitação deserta, vasta, vazia, solitária, erma, escura, nada se escutava!

Sobre o chão, mal se divisava o reflexo da claridade noturna, que entra na janela de gradil aberta. Tentei adormecer. Já devia de ser alta madrugada quando o sono veio.

E o gato negro ali ficou, imóvel, com os olhos de ágata cintilando sobre o túmulo ou a urna.

E seria na verdade um túmulo?

Que ideia fúnebre, meu-deus!

***

Se passaram meses.

Eu continuava embebido e devorado pela melancolia e pelo sonho. Passava os dias lendo sempre, à janela que dava sobre o mar, muito calmo ali, meus livros queridos. As noites iam, ao menos até o meio, nos trajetos solitários sobre o lombo de Relâmpago.

Ó noites de luar turvo quando vi em cada sombra, em cada tufo negro de folhagem um fantasma e um espectro! Relâmpago trotava vagarosamente. E nas passagens sombreadas, na beira das correntes, sob as árvores copadas, onde se acreditava ver o olhar dum assassino emboscado ou o vulto negro dum tigre, ali eu ouvia psius! prolongados que vinham de longe.

Via adiante brancos espectros, na beira dos caminhos. E, àqueles psius! lentos a repetidos, sentia se me arrepiar a carne. Meu chapéu largo, se levantava sobre o cabelo eriçado. Quem me chamava naquele retiro, naquela hora? Quem? O que me queria o espectro vagamundo dos sudários brancos? E ia, tiritando de medo, tiritando de frio, ébrio de pavor!

Relâmpago seguia, bufando a espaços. Mais adiante, eram gemidos lacerados, que, saíam do fundo dos valados, dos matagais escuros, lamentos que cortavam o coração! A voz se me abafava às vezes na garganta. Eu me agarrava ao arção da sela, pra não cair. Tinha a vertigem do pânico. Gemido? Mas quem sofria ali? Quem sofria quando tudo repousa? Dores?!

Deus? E, paralisado de espanto, tremia como criança, ouvindo esses gemidos lamentosos, que pareciam vir da profundeza do abismo, da imensidão do túmulo?

***

A meia-noite entrava no domínio mudo. E sempre, antes de adormecer, na sombra do aposento, meu olhar se cravava sobre o vulto do gato negro de olhos de ágata luminosa, sobre a urna funerária. Sempre!

Aquelas visões lúgubres dos caminhos se tornaram uma necessidade pra mim. A vertigem do terror, a sensação do medo se plantaram em meu ser.

Numa das últimas noites, antes dos acontecimentos que relatarei, já adormecido, acordei aterrado por um barulho atroador na outra extremidade do casarão: Ruído enorme, rolar de pedras, estalos, fracasso longo, como uma tempestade, se espalhava e ressoava medonhamente em meus ouvidos. Fiquei gelado. Não pude compreender o que se passava então. Seriam os fantasmas, os espectros que reapareciam com fúria tamanha?! Fiquei imóvel. Olhei em torno. E vi, sobre a urna funerária, as duas ágatas vivas. Sempre? Nem uma palavra! Sentia que não tinha voz, mudo e gelado de espanto.

O retumbar ruidoso rolava como uma tempestade. Pouco e pouco foi se amortecendo. Amortecendo se foram as ágatas vivas do animal imóvel. Se amorteciam o rumor e as pupilas. Mais!

Que coincidência! Que laço íntimo havia ali? De repente o rumor redobrou duma maneira medonha. E as pupilas do negro animal se acenderam de novo, com uma luz que iluminava a câmara. Rolava a tormenta. Foram amortecendo de novo a tempestade e a luz das ágatas de fogo. Mais! Amortecendo sempre.

Me enchi de coragem, então.

O silêncio voltara. Acendi a lanterna e, trôpego, saí da alcova em direção ao lugar do ruído extinto. Um vento frio como o gume de espada me batia nas faces. Frio e terror! A luz da lanterna fechada vacilava dentro, oscilando, tremendo. Mais adiante. Nada? Caminhemos. O vento soprava. Enfim parei, apavorado.

***

Ao avançar, senti que me faltou o assoalho debaixo do pé que ia adiante.

Recuei. O que é isso? A noite estrelada apareceu em cima da cabeça. Estrelada e muda! Apliquei, então, a luz da lanterna, e vi que grande parte do edifício ruíra.

Os muros do segundo andar caíram sobre o assoalho, o arrebentando, e rolando tudo, num turbilhão de ruína, sobre o rés-do-chão. Uma parte inteira arriara sobre a rocha, e se ouvia ainda o ruído de pedras miúdas e resto de cal rolando, correndo e tombando nágua do mar, em baixo, com um gluglu muito lúgubre e triste.

Voltei à alcova. Vinham nascendo e iluminando a monotonia plúmbea do mar os primeiros clarões do dia. Claridade dúbia e vaga. Fui adormecendo.

***

Durante um ano inteiro passei essa vida de pavor no casarão em ruína. Continuei sempre meus passeios noturnos. Neles só encontrava o estranho pavor que fizera em meu organismo uma brecha profunda, se tornando uma necessidade latente. Só nesses caminhos povoados de espectros e visões, nesses chamamento saídos do mato escuro, encontrava, ansioso, muitas vezes hirto, abafado, bêbedo de horror, o saciar do nefasto e fatal desejo que se aninhara em minha alma, como um corvo maldito! Só, ali, naquele pânico, que me arrepiava o cabelo, e nas rútilas pupilas amarelas do gato negro do sarcófago antigo. Sempre, na hora da meia-noite, quando se extinguia a lâmpada da câmara, o vigia da urna funerária, na sombra ou na penumbra do luar que entrava do mar, se destacava a meu olhar pasmo de medo.

Entretanto, direi, na vaga preocupação, na febre que me devorava noite e dia, me deixando nas faces os sulcos fundos da dor. No meio dessas visões das estradas solitárias, não passou despercebida minha natureza de homem ardente uma circunstância na verdade estranha.

Na beira da estrada mais lúgubre, numa clareira aberta, notei uma isolada habitação rústica. Era uma nota discordante no meio da natureza lúgubre onde eu mergulhava minha vida de interminável pavor. Aquela clareira era morna. Aquele casebre rústico tinha a bondade flamenga dos quadros de van der Heyden e de Teniers.

O silêncio quieto quando eu passava e nenhum resquício de luz se coando através das frestas ou do teto grosseiro sempre me dizia que a paz do trabalho dormia ali, enquanto eu, o viajante fantástico do cavalo negro, vagava como um louco nas estradas ermas.

Era essa minha estrada predileta, como a mais sombria, de mais copadas árvores escuras, onde os espectros e as visões me apareciam mais medonhos e repetidos, mais assustadores e lúgubres.

Ali até sempre, trotando sobre o lombo de Relâmpago, já afeito àquele passeio noturno.

***

Ia. E notei que, naqueles últimos tempos, quando passava silencioso diante do casebre, lá estava à janela, se destacando da trava interior, um vulto branco, a meio-corpo, tão branco quanto uma gota de leite ou um floco de espuma sobre a anca de veludo de Relâmpago. Sempre o via imóvel até eu desaparecer na curva do caminho, E se ao me aproximar não o via de longe, como Relâmpago viesse resfolegando sempre no caminho, ou relinchasse alegremente ao acaso, a janela a abria, a pequena e tosca janela, e ele lá ficava nítido, alvo, branco, imóvel. Aquela figura lançada no meio daquela imensa sombra da noite, era como uma ironia da cor, ou um raio de luz, um raio de esperança num claustro escuro, num coração de desgraçado. Ficava até que não a visse mais. Algumas vezes pensei naquilo e pensei se seria um ser vivo e real ou uma visão apenas!

Seria alguma louca de amor, que morria ali, aos poucos, na contemplação da grande noite muda ou um espírito superior e febril, perdido na lubricidade do sonho? Seria uma mulher? Mas o que fazia ali? Esperaria o amante, que devia de vir lhe trazer, naquela hora, o beijo de amor, sorvido à luz meiga dos astros, como um presente adorado?

Que hora tétrica é essa em que tantos pensamentos cobertos de crepe, como corvos agoureiros, assaltam nosso espírito, o enchendo dum pavor terrível?!

Prosseguia adiante. E a branca aparição ficava, alvejante, à janela escura, no silêncio da noite. E em sua nudez impassível me lembrava daquela fada Lorelai, da tradição do Reno, que atraía com seu canto os viajantes retardados no caminho.

Seguia. Os espectros surgiam diante dos barrancos. Ouvia os gemidos nos valados, lacerantes, os longos psiu!, os chamamentos fantásticos que me abafavam de pavor.

Entrava trêmulo em minha solitária vivenda, meio despenhada sobre o mar, morada silenciosa, que mais parecia um túmulo ou um soluço solto da imensa noite tenebrosa da vida.

***

Repousava na hora da madrugada. E pra completar meu pavor, quando apagava a lanterna, sobre a urna, o móvel antigo, o gato negro acendia as pupilas de ouro, duma luz amarela, transparente e viva.

Visão escura de pupila ardente! Anacoreta da sombra, do olhar de ouro agatino! Sentinela eterna de túmulo desconhecido!

Poucas vezes deixava de sair a meu curso noturno e vagamundo. Raramente ficava no solar, esperando, numa angústia febril e despedaçadora, a vinda dos fantasmas, falados como os únicos habitantes da vivenda lúgubre do rochedo. Nunca vieram. Nunca!

E, estranha diversão era a minha, quando, na alta noite, já cansado da febril espera ansiosa, desanimado da visita dos espectros ou sombras de além-túmulo, ficaria à janela que dava sobre o pátio, vendo em baixo Relâmpago, inquieto, escarvando, bufando, como se me convidasse à jornada do pavor.

Esse cavalo marcial tinha uma particularidade estranha, como uma saudade ardente, um reviver voluptuoso, da alegria e do heroísmo, do tempo glorioso das batalhas campais.

Ao grito bélico do clarim, relinchando e nitrindo, com as crinas erriçadas, as narinas ofegantes, se lembrava dos bravos encontros da cavalaria marcial, o rufo dos tambores, o fumo da pólvora, as bandeiras flutuantes e o ribombo seguido e surdo do canhão de guerra.

Relâmpago levava sibilando, rápido como um sonho, a morte crua, no fio da espada do bravo sargento morto pela metralha inimiga.

***

Quase sempre depois da meia-noite, quando tudo era sombra muda, silêncio tumular e sombra abismal, empunhando o clarim, eu ia soprar à janela do pátio os toques vibrantes de combate.

As notas dos clarins se perdiam na imensidão da noite calada, como um acho estrídulo e longínquo. E embaixo, Relâmpago, com a crina revolta, as narinas ofegantes, escarvava o chão, nitrindo sempre ao toque de avançar como se estivesse no campo de batalha. Grandiosa saudade do perigo, bélico en avant à morte! Sublime reviver, repassado de glória e de coragem inaudita!

O toque-de-avançada se repetia e o bravo cavalo partia relinchando contra o muro do pátio. E rolava no circuito, galopando doidamente, como se quisesse cansar aquela febre que lhe ardia dentro do coração.

Ao longe os camponeses ouviam, do fundo das choupanas, esses sons inexplicados. Nos ouviam assombrados. E cada vez se tornava mais ampla a reputação terrível que pesava sobre aquele velho solar arruinado.

Noite negra, noite densa, noite calada, e ao longe, toques marciais, nitridos, finos, agudos, trêmulos, de cavalo ardente! Todos ouviam distintamente. Era do castelo do Rochedo, que partiam esses alarmas, parecendo ainda mais lúgubres, assim vibrados depois da hora lúgubre da meia-noite. E, entretanto, ao despontar do dia ninguém os ouvia!

Foram repetidas durante muitas noites essas cenas. Quando já não tinha a sensação do pavor dos espectros terríveis das estradas solitárias, me era preciso avivar no coração esse entusiasmo belicoso, que vivia em mim desde longos anos.

Nos exercícios militares eu aprendera os toques de ordem. E nessa melancolia pungente da noite me sonhava no campo de batalha como a figura do sargento morto. À notas agudas do clarim sentia um estremecimento que me arrepiava o cabelo, como se a coragem triunfal penetrasse em meu peito tumultuariamente.

Quando ia repousar, tendo ainda nos ouvidos as notas trêmulas, perdidas na mudez da noite, lá mesmo, sobre a urna funerária, sobre o móvel antigo, ao apagar a lâmpada, encontrava com meu olhar o do negro animal das ágatas luminosas, como dois faróis acesos naquela trava muda, prenhe de horror!

E a convicção se arraigara em mim de que aquilo era um túmulo? Mas quem mo dissera? Não sei. Mas um pressentimento fatal me batia dentro do coração marteladas de bronze.

Em noites de febre, quanta vez, tolhido de medo, abafado, deprimido, não passaram por mim, volteando convulsos, a ideia e o desejo de despedaçar aquele enigma, romper o sarcófago, e desvendar duma vez e até sempre aquele segredo pesado e fatal!?

Mas faltava coragem. E a interrogação ia e vinha. Quem estaria ali, naquele abandono silencioso e triste, vigiado apenas, como derradeiro amigo, pelo gato negro de pupilas de ouro?!

Em meus trajetos noturnos, na viagem do pavor, se acentuavam sempre os mesmos espectros e a mesma aparição branca do casebre da clareira na beira do caminho.

Numa noite de luar fosco, espalhado no céu morno, com uma dúvida vaga, uma noite triste, virando a rédea de Relâmpago, me aproximei da janela pequena do tugúrio silencioso.

Eu avançava, e a aparição imóvel ficava. Muito perto reconheci um vulto de mulher. Hesitei. Tive medo. Mas um movimento que me gelou, me tirou a dúvida que me pesava. Um braço nu se agitou no ar, com a mão branca, oscilando como um lenço claro.

Estranhas ideias vieram, se atropelando precipitadamente. Avancei mais e mais. Relâmpago não queria chegar, com as orelhas agudas, resfolegando forte. Bati na anca, e com um salto fiquei encostado ao peitoril da janela. E vi um busto nu de mulher, deslumbrante, que conservava, à claridade vaga do luar, um encanto marmóreo e lúbrico, fantasticamente divino.

Com o dedo sobre o lábio impôs silêncio.

Senti que as mãos tomavam tremulamente as minhas. Me curvando um pouco tive, me roçando as faces, lábios finos, de infinita volúpia. A beijei, e aquela face fria de neve se animou subitamente como ao calor dum incêndio. Pigmalião animara o mármore frio.

Nu estava o busto e nus os seios túmidos, muito brancos, tremendo de desejo. Toquei com a mãos, ao acaso, e senti se me atordoarem os sentidos, bêbedo de sensualismo amoroso.

E mergulhamos toda aquela vida de uma hora, numa onda de volúpia fina, toda estrelada de milhares de beijos. A suprema volúpia tempestuosa e louca rugiu, assanhada, dentro dos corações.

Não sei quantos minutos se passaram nesse ardente idílio. Atordoado e fora de mim, me deixei devorar pela paixão que rebentava do seio daquela formosa mulher.

Nada mais sei. Recordo apenas de que vinham aparecendo as primeiras luzes do dia, quando entrei no solar do rochedo.

Muito despreocupado, muito só, senti que trazia voluptuosamente sobre o lábio, ressoando ao ouvido, como uma harmonia longínqua, um nome, que não sei onde aprendera nem ouvira, que ignorava quem mo dissera, muito brando, muito doce, muito suave. Eloísa!

Creio que não dormi esse resto de branca madrugada, alvorecer dúbio, muito fosco e vagamente triste.

***

No dia seguinte, logo ao cair da noite, me senti ansioso pela jornada noturna. Mas era muito cedo ainda quando começou a se grupar a circunstância trágica que produziu a mais medonha noite, que passeei no castelo da Rocha, arruinado e pendido sobre o mar.

O dia caíra quente e abafado, o crepúsculo violáceo e uma cor de chumbo que parecia fazer no céu e no ar.

Noite já, apagada no céu a última fímbria luminosa do dia.

Nas noites anteriores, sendo verão, ficava derramado no céu, à banda do ocidente, um enorme clarão rubro até a meia-noite. Era uma onda de sangue que se levantava sobre o horizonte em fogo até enorme altura. E lá ficava aquele lençol vermelho, candente, no céu escuro, como um protesto colérico da luz contra aquela imensa treva muda, serena e triunfal.

Mas nesse dia o sol se atufara triste e lúgubre. A cor chumbada e dúbia, pesada, arroxeada, triste, cobria tudo, o céu e o mar, que se tingia também da cor vaga do firmamento. Tal se paramentava a larga cena, onde se representaria a tragédia descomunal do espanto e do pavor infinito.

Olhei o mar e olhei o céu. Sobre o mar a pesada cor tristonha, e no céu a cor, a mesma cor profunda. Muito longe havia um rufar surdo de centenas de tambores abafados. Rufando surdamente, e se afastando e amortecendo o som. Novamente soaram as centenas de tambores, e novamente foi se lhes alongando o sussurro, amortecendo, sussurrando ao longe.

Uma silenciosa flecha de luz muito veloz, aguda e fina, riscou a grande abóbada. O sussurro redobrou ao longe. Outra lâmina vermelha, na rapidez dum sonho, pareceu cortar no meio a concha escura do firmamento. Mas o céu ficou unido, o cutelo sumiu na sombra, e só ao longe soou o rumor que dobrava, como muitos canhões soando confusamente, o rufar de mil tambores ou o acho longínquo duma multidão aclamando!

Estranho combate aquele! Que novo bombardeio destrói as ricas cidades da Europa civilizadora? Que povo de feras se bate, assim, medonhamente, na peleja crua do extermínio?!

E os rumores vêm de longe, rolando até mim, aclarado o espaço nas fagulhas vívidas de luz. Rufaram os milhares de tambores. Fuzila e refuzila, sussurra e ulula todo o recanto obscuro do céu, turvado o mar gemebundo e triste.

Me senti estremecer àquela ideia de guerra colossal, pugna imensa que se estendia dum a outro recanto do céu.

Com o braço trêmulo, a mão crispada, tomei a fanfarra pendurada na parede, e da janela que dava sobre o mar, soprei estridulamente os toques de avançada de guerra.

Queria animar os que combatiam. O clarim vibrava as notas vigorosamente.

E na imensidão da noite e do mar se perdiam os toques febris da fanfarra, morrendo e repercutindo ao longe.

Relâmpago nitria em baixo, no parque sombrio batido de chuva.

Rufaram então mais vigorosamente as centenas de tambores e a vozeria ululante do povo. Uma lâmina de luz se despenhou no espaço, como se quisesse tirar uma enorme fatia do mar obscuro e profundo. Caiu do céu e desapareceu, deixando após si a imensidão lôbrega, silenciosa e a treva imensa que sucede à luz.

Como se provocado fera pelos toques da fanfarra, o rumor avançou sobre minha cabeça. E sobre o casarão retumbante e ermo passou um ribombar indizível, estalando como lâminas de metal partidas, rugindo com o rouco som de mil canhões troando junto do rufo dos tambores e o clamor enorme da multidão avançando.

Parecia que se arrebentara o céu num estrondo de infernal fragor.

Tudo vibrou, o clarim, o castelo, o rochedo, na passagem do rumor imenso.

Mudo e aterrado fiquei. E voltando a mim pude compreender que era a tempestade que galopava no céu, desgrenhada e louca, sobre o corcel assombroso da noite, empenachada a fronte da pluma vermelha e ardente do raio furibundo.

Em todo o espaço as cintilações elétricas e o rolar surdo dos trovões. Durante momentos acreditei que um poder terrível ameaçava reduzir a pó a grande máquina do mundo.

À claridade dos relâmpagos vi, sobre a água negra do mar, acinzentadas e soltas, velas de pescadores. A chuva começou de cair rija, muito grossa, batendo contra o chão com uma raiva concentrada.

No ar empanado pela chuva, no largo mar escuro, já nada descobriam os fuzis repetidos que se cruzavam no ar. Ribombando sempre, rolando, brandindo, estalando, passou ululante o trovão sobre o castelo vazio, que vibrou, repercutiu e ecoou como um tímpano imenso.

Quando me retirei ao fundo do aposento era quase meia-noite. Duas vezes acendi a lanterna e duas vezes a apagou a lufada úmida do temporal.

Meio deitado sobre o leito olhei a noite cheia de pavor. Então ouvi lamentos angustiosos vindos do mar.

Pensei nos pescadores, surpreendidos pelo temporal, talvez náufragos naquele mar fundo.

Os gritos se repetiam como pedidos de socorro. Pouco a pouco tudo foi se amortecendo, vozes e lamentos, como se afundando no abismo.

Enfim tudo cessou. Só o temporal continuava a rugir a galope, no céu muito torvo como uma masmorra larga e escura.

Um calafrio gelou meus ossos. E angustiadamente vi, sobre o móvel antigo, brilhando na treva, as órbitas luminosas do gato negro da meia-noite. Um luar dourado e triste começou a inundar lugubremente aquela alcova sinistra.

E de novo passaram rugindo em mim a ideia e o desejo de desvendar o segredo da urna funerária, quebrar até sempre aquela dúvida pesada, aquele mistério terrível.

Tremi de horror! Seria na verdade um túmulo? Me passou nos sentidos uma vertigem bêbeda de assombro.

Acendi a lâmpada convulsivamente e a coloquei no chão do aposento. Tomei, tremendo, um enorme camartelo de bronze e parti ao móvel misterioso, erguido na sombra como um espectro escuro.

Avancei ao despedaçar. Mas quando levantei o camartelo pesado, as órbitas do animal se acenderam tanto que recuei apavorado.

Medonha interrogação! E naquela luz vi, como num espelho enorme, no fundo da pupila, minha figura desgrenhada e horrenda com o camartelo erguido em atitude ameaçadora!

Tudo se arrepiou em mim. Era o sonho trágico que gela o assassino, no fundo da masmorra escura, ao dobre da meia-noite!

Fiquei bêbedo de pavor. E já sem consciência, num movimento rápido, deixei cair o camartelo pesado contra o móvel sinistro.

Tudo estremeceu na alcova. A parte frontal do alto móvel quadrado, de quase dois metros de altura, caiu ao chão, redondamente, com ruído estrondoso.

Horrendo espetáculo iluminou o clarão vermelho da lanterna! Em cima ficou o gato negro, com as pupilas acessas, num brilho descomunal e estranho. E dentro, em pé, no meio da urna escura, a figura encarquilhada e hirta dum velho, de longa barba amarela esparsa sobre o peito, a boca horrenda e as órbitas vazias, olhando estupidamente a noite terrível. A expressão era de cólera antiga, que se gelara na figura rugosa e contorcida.

E com os dedos negros das aves de rapina, a mão crispada, arrancava com fúria insana a língua duma criança, ressequida também, com as órbitas vazias, contorcida, hirta, horrenda, estrangulada a seus pés.

***

Recuei cambaleando diante daquele drama do Inferno. Parecia que aquele velho feroz me espiava medonhamente, do fundo das órbitas vazias, embebido em sua cólera impotente.

Creio que tive uma vertigem, ou perdi subitamente os sentidos. Não ouvi mais o ronco rouco da tempestade, que uivava no céu, como uma hiena brava, no meio da noite escura.

Apenas me lembro que quando abri os olhos era quase dia. Vinha no céu uma claridade rósea, do lado do oriente, muito indefinida e vaga. E o meigo luar da alvorada, muito úmido, muito triste, andava brincando e tremendo sobre a água acinzentada do mar.

E na sombra melancólica do céu, aquela luz mórbida do luar era como um beijo frio de velhice ou uma lágrima de saudade infinita.

E as montanhas silenciosas, se desdenham muito longe, no fundo do róseo céu, muito azuis, coroadas de névoas que flutuam.

Vinha tombando a noite. Da janela que dava sobre a água estendi a vista vagabunda e triste. E a face enorme do sol se atufava no mar, como uma enorme cabeça ensanguentada que caísse, do grande azul silencioso.

Havia em mim uma placidez desacostumada e mansa, naquela hora serena, como se um trapo de veludo fino me estreitasse o coração.

Quando a noite caiu silenciosa e lenta, da abóbada encurvada, veio de novo o desejo fatídico das sombras, dos caminhos, das exalações oxigenadas do campo adormecido. Fui ajaezar Relâmpago pro trajeto vagabundo das estradas ermas. E na escuridão daquelas noites me aparecia na lembrança, como uma visão da neve branca, a figura estranha de Eloísa, a visão calada dos caminhos, na meia-noite.

Preocupado por não sei que ideias extraordinárias e dominadoras, ferido por não sei que dores vagas, saí a esmo nas estradas sombrias. Caminhei errante, muito calmo, sem emoção nem pavor, atravessando as sombras negras, das grandes árvores sussurrantes, e o silêncio espectral das estradas empanadas de gaze finíssima ponteadas no ar da luz azulada das estrelas palpitantes. Relâmpago, que ia trotando vagarosamente, levantou a cabeça, respirou largo e relinchou forte, nitrindo fino, como um sinal combinado de bandido, no meio daquele silêncio da noite imensa, muito alta, tombando à madrugada.

Saíramos da clareira. Ao longe a casa de Eloísa e a figura imóvel é branca na janela escura.

Senti baterem dentro em mim não sei que estranhas titilações de vida.

O cavalo deixou o caminho e avançou à casa rústica, à janela aberta, da qual em noites anteriores nos aproximamos a medo. Tive uma ideia extraordinária e súbita.

Cheguei. A visão continuou imóvel ali. Sem dizer palavra enlacei com o braço longo, o busto nu do espectro branco que vinha ver passar, havia tanto tempo o cavaleiro negro e fantástico da meia-noite. Eu disse, suavemente lhe roçando o lábio na face:

— Eloísa! Eloísa!

Ela começou a tremer como se sentisse frio. Em noite calmosa e longa o ar tépido dos beijos faz tiritar a carne que arde ao calor da volúpia infinita.

Tudo li na meiguice da face, nos grandes olhos negros e úmidos, de expressão muito vaga e estranha. Tinham o brilho frio do carvão escuro das minas de Newcastle. Falavam, diziam, com uma clareza incomparável. Creio que lhe disse algo ao ouvido, porque o olhar se iluminou mais vivamente ainda, e pude ler claramente a resolução estranha, a vontade ignorada, impetuosa, indefinida que  ardia no coração.

O busto se elevou acima do peitoril da janela. Houve um aconchegar de roupas e de carnes, um abafar de beijos e suspiros. E tive a formosa Eloísa seminua, montada comigo sobre o dorso negro do ginete ofegante. A envolvi numa manta escura e apertei os joelhos contra a sela do Relâmpago, que partiu como uma flecha. Me enlaçando com os longos braços nus, meio deitada sobre meu coração, galopamos a toda brida, na meia-noite, em direção à estrada.

O cavalo voava aos arrancos no ar, resfolegando e atirando contra o peito densas ondas de fumo.

Devorávamos a estrada. A terra desaparecia sob os pés, listada e pardacenta, e os vultos negros das árvores fugiam como um exército de espectros derrotados. A aragem da noite açoitava nossa face. Dos pontos mais sombrios vinham arrepios de pavor. Upa, cavalo, upa! E galopávamos no meio da noite, entre os fogos soltos vagamundos, como olhos de feras que espiam as presas, as lanternas mágicas dos assassinos. A crina de Relâmpago se espalhava sobre nós como uma longa madeixa de cabelo negro batido pelo vento. Upa, cavalo, upa! E o suor corria nas narinas palpitantes. Upa!

Ia apertando muito doidamente Eloísa contra o coração.

Não sabia porque fugíamos, nessa carreira infrene, na meia-noite, como loucos perdidos, a toda brida. De repente, do fundo dum valado saiu um gemido estertoroso que cortava o coração. Tudo se arrepiou em mim. Eloísa se aconchegou quase hirta e transida de horror.

A noite muda e negra! Medonho gemido lamentoso e triste! Upa, meu cavalo, upa! A toda! Noite calada e lúgubre!

***

Muito longe apareceu, como um fantasma escuro, imenso, no meio da planície sombria, o enorme castelo abandonado. Relâmpago nitriu ao ar. Upa, meu cavalo, upa!

E sempre a galope, como loucos ou condenados fugitivos, corríamos na sombra, iluminados por fogos adjacentes, à luz trêmula das estrelas, voando, como numa balada do Reno, em direção ao vulto enorme, escuro, alevantado do velho casarão arruinado.

Tudo mudo, calado e triste. Nem um canto ao longe! E na fímbria indefinida do céu um traço claro, branco, muito fino, como o primeiro albor da madrugada.

Quando entramos ambos naquela alcova sinistra, à luz fosca diurna, a sentia estremecer. Arranquei, tremulamente, a roupa que a cobria e a atirei nua sobre o leito descomposto e acendi a lâmpada, prà examinar de perto.

Aquela mesma luz cor de sangue, que iluminara aquela cena trágica do túmulo sinistro, acariciava agora, muito meiga, a carne branca e intata da mais formosa mulher da Terra.

E essa mulher eras tu, encantadora Eloísa, que nunca mais verei! Mas me recordo muito bem ainda. Eras formosa como a Madalena de Rubens, que eu admirara um dia, pasmo de encanto, sobre o muro da catedral de Anvers. Tinha a beleza seráfica e infinita das mulheres imortais de Rafael, Corregio e Ticiano.

Foste Inez, a espanhola, que veio tentar, em vão, consolar a tristeza eterna de teu romeiro Haroldo!

***

Começaram de desfilar pra nós as longas noites de amor infinito, de êxtase incomparável, de loucura sonhadora.

Junto da carne nova e palpitante e o desejo lúbrico que arde como uma labareda no fundo do coração, começou o desencadeamento infernal dos desejos semimortos, do sensualismo intenso, bestial e mudo.

Em mim, como um sarcófago de mármore, ou no fundo escuro duma gruta, dormia de longo tempo, a fera insaciável dos desejos infernais.

Naquele recolhimento monástico onde se me ia a vida neurótica dos terrores infinitos, devoradores e repetidos, me dormia no fundo do coração a aspiração intensa da carne, como num largo braseiro extinto. E quanta vez acreditei, naquele viver místico de espanto, ter atrofiadas em mim as potências másculas da virilidade genésica!

Tudo acordava agora, como numa imensa alvorada lúbrica. Avalanches de sensualidade inaudita rolavam, rugindo em catadupas, do fundo rebelado de meu ser.

Era o sabá demoníaco dos despojos e das concupiscências, o festejando a música rítmica, a vozeria ululante da carne, que anseia diante de mim, que canta, que desmaia, que estrebucha e clama!

E as longas noites se passaram na mais horrenda devassidão que sonhou um cérebro de louco! E aquela formosa Eloísa, nada mais era que uma loba enjaulada, ardendo de desejo e febre lúbrica de amor!

E ébrio de sonho, bêbedo de amor, hipnotizado, em delírio, me deixava estrangular, rindo, por aquela besta insaciável do sensualismo triunfante.

Eram duas feras, que enfim se encontravam, frente a frente, depois dum ódio longo. Uma dormiu sob a palmeira, de folhas trêmulas e murmurantes, na fresquidão calada do bosque silencioso. A outra, sedenta, aspirando sangue, com as narinas dilatadas e a garra pronta, esperou um ano inteiro a inimiga anelada.

Ano de sono, e meses de desejo e dor. Ano de cólera oprimida, de sangue, que lateja nas artérias, que grita e clama, e longos meses de repouso calado, que cria a força e dá a coragem triunfal!

Enfim chegou o dia do encontro fatal. E feras ambas, saciam na carne quente a fome devoradora que lhes tripudiava no seio!

***

Se ia na manhã o meio luar que entrava na janela do mar, e voltava na tarde o luar, e nos encontrava ainda abraçados, no eterno sonho daquele amor sem trégua.

Raio pálido de luar, tu viste, frio com um olhar de gelo, aquele drama sombrio de incomparável amor!

E mudo o viste, e em silêncio assististe ao desfecho terrível. E nunca falaste, ao menos uma palavra!

E frio, como a neve, e sempre frio, rindo, sorriste naquela noite tremenda e lúgubre!

Teu claro raio me seguiu sempre e vejo que me segue ainda. Testemunha impassível de meu me crime, em vez do medo tragas a mim sempre uma meiga recordação apagada de minha alma morta até nunca mais!

Tudo se transformara em mim. E a leoa desperta da gruta me enchia o peito com seu lamentoso uivo!

Uma tarde me senti exausto. Não sei se me esgotara a vida nessa orgia infernal de amor de besta, na bacanal da carne, dos delírios e dos beijos.

O que em verdade sinto é que nunca mais amei!

O dia descera. Eloísa dormia como morta, pálida e fria, sobre o leito da núpcia infernal.

Nascia a Lua. Na sombra vaga da alcova começou a entrar o primeiro luar dulcíssimo.

Num recanto do céu se elevava aquele imenso globo rubro de sangue. E foi lentamente e pausadamente subindo e empalidecendo, da palidez serena daquela formosa mulher adormecida.

E tranquilamente dormia, sobre o leito decomposto, com a beleza impecável, a figura de Eloísa, como se lhe pesasse a fadiga duma luta imensa.

Juntos cantáramos, arrebatadamente, o Amor, amor, amor! do canto árabe de Whashington Irving, o canto da volúpia infinita!

Dormia agora ali, pálida, exausta e fria.

Oprimido não sei por qual imensa e profunda dor, me debrucei à janela que dava sobre o triste mar. Ideias negras revolvendo o cérebro cansado e me pesando dentro do crânio como pedras enormes, que tombassem da altura. Passei tremulamente a mão no cabelo e senti o gélido suor terrível de minhas noites de assombro.

Eloísa dormia na paz serena. E sobre ela passei rapidamente meu olhar fugitivo. Senti me estremecer inteiro e se me arrepiou o cabelo. Que ideia horrível, meu-deus!

Em vão buscaria dizer o que se passou em mim naquela hora e lugar sinistro.

Acendi a lâmpada e me sentei pra ler silenciosamente.

Longas horas creio que foram de vaga abstração perdida. Meus olhos corriam sobre as páginas que virava sempre, sem que uma ideia estranha acalmasse a tempestade que rolava no cérebro e no coração.

Ouvi ao longe, na meia-noite, um dobre lúgubre. Olhei a Lua e a vi impassível no grande céu sereno. Seria meia-noite. Apaguei a lanterna. Quando me vi na trava me senti estremecer. Comecei a ouvir arfar o seio de Eloísa adormecida. Fora, o mar estava mudo. O céu estava iluminado e claro. E muito longe, na névoa da noite, a extensão do mar, que foge como um deserto imenso.

Um rumor mais forte ecoou então na câmara. E, atentando, vi que o gato negro da meia-noite descia, como de costume, a cima do móvel antigo. Senti um gélido pavor. Vinham lembranças sinistras. O sarcófago, a urna, o túmulo oculto! Aquele animal ou estranho ser implacável! Quanta ideia pesada e lúgubre! Que recordações apavorantes, senhor!

Em silêncio fui ao leito onde Eloísa dormia. A quis beijar mas senti que todo meu esforço era vão. Me senti exausto e frio, e compreendi que tudo estava acabado para mim. Ela continuava fria e adormecida, beijada na face por um raio trêmulo de luar.

Que dor profunda é essa de quem sente a desoladora evaporação de seu ser!

Como sentindo exausto, acreditei que tudo se extinguira em mim. E estremeci à ideia de a ver acordar de repente e pedir ainda um afago de meu pobre amor sepulto. Senti bem convencidamente que esse esforço me seria impossível. E tive medo e tive receio de que ela pudesse ir amar ainda. Podia ir gozar além a vida e o amor que os beijos em mim sepultaram e gastaram. E entregaria a outro aquela carne ainda quente, aquele corpo ainda machucado ao fogo de meus beijos? E a mulher, que fora minha, pura como um sonho de luar ou de estrela, serviria de pasto à sanha lúbrica dos vampiros do mundo?!

— Nunca!, minha formosa Eloísa. Nunca!

Jurei com o punho levantado, rangendo os dentes, vibrado com um tremor convulso. Tinha as cóleras inauditas de Otelo, e meu crime lancinante à passagem da primeira dúvida.

E apenas, na sombra imensa da alcova sinistra vi que brilhavam as ágatas luminosas do espectro singular da meia-noite.

Eloísa dormia. E na sombra calada da noite eu ouvia, apavorado, o arfar sereno do seio. Tomei sobre a mesa meu punhal marroquino, encurvado e reluzente, e avancei tragicamente, com o braço alçado, ao leito silencioso.

Tudo tremia em mim. E com os dentes cerrados murmurava sempre:

— Nunca, Eloísa, nunca! Mais ninguém.

E preparei do alto um profundo golpe certeiro.

Todo o quarto se iluminou estranhamente. Se acenderam as pupilas da fera dum luar muito claro de platina e outro. E, a essa luz terrível eu via adormecida, com um paladino riso trêmulo do luar.

O braço armado caiu sem atingir o alvo. Fiquei imóvel e mudo de assombro.

Vi o mar fora, silencioso, e a larga noite muda como um sonho imenso de Deus!

Eloísa se voltou preguiçosamente no leito. Fui o último dos bandidos da Terra! E a tomei nos braços, sorrindo como quem embala uma meiga criança adormecida.

E diante daquela nudez deslumbrante de carne opulenta e fina, que tocava com os dedos, que apertava contra o coração, a fúria dos desejos farejou cinicamente e se conservou impassível.

No chão andaram rastejando as tranças bastas e escuras que eu vira subirem como duas serpentes negras e ondulantes em suas espáduas de mármore. Tentei a beijar, ainda mas meus lábios não se abriram. Tremiam encostados aos dentes cerrados, que batiam de febre.

E a tremer senti que suas mãos me passavam algo em redor do pescoço com carícia infinita.

Então parecia que a noite estava fria. Ia o luar lá fora, muito claro, sobre o mar tristonho e mudo.

Creio que compreendeu que o que se passaria era tremendo, e me apertou muito contra o coração.

Caminhei tragicamente à janela do mar, essa eterna escâncara aberta em minha vida sombria como um abismo sem fundo! O luar lhe deu em cheio no rosto e se via, assim, na derradeira hora, muito pálida, muito linda, banhada inteira pelo clarão fantástico do luar.

Fui o ínfimo bandido da Terra!. A levantei nos braços e a atirei ao mar, pálida e nua.

O mar era como um lençol torvo de chumbo listado no meio dum fitão de prata.

Quando a arremessei ao seio d'água profunda, senti um estranho choque inesperado, que me pareceu querer arrancar a cabeça com um arranco colossal. Conseguiu resistir quase morto de dor.

E vi, após, com espanto, que uma daquelas tranças que me atara ao pescoço com carícia inefável acabava de se partir naquela queda da altura.

Vi sobre o mar aquele corpo alvo e vacilante, como um imenso lírio desfolhado. As águas se abriram, marulhando no silêncio da noite, e se fecharam tremendo sobre o corpo branco, imerso na escâncara do abismo.

Depois veio a mudez infinita, silenciosa paz, calada e triste!

E a Lua, com a cara branca no meio do céu, ficou rindo. Um riso pálido e infernal sobre aquele túmulo imenso!

*** 

Me voltei a dentro e entrei na câmara.

Estranho luar de platina e ouro, luz infernal, iluminava tudo! Horrenda aparição, senhor!

Na sombra imensa, o gato negro terrível tomou proporção assustadora, se avolumando. Era mais negro que o pavor, a noite e a tinha do remorso! Horrível dilatar de formas se operava naquele ser, e já não é o gato de todos os dias mas a pantera negra e sinistra, que ataca o viajante nas estradas ermas do Industão. E as pupilas rútilas, descomunais têm a dilatação disforme do globo luminoso da Lua.

Em toda a câmara aquele claro fatídico. E lá no fundo daqueles dois astros fatais, claro como no fundo dum espelho de cristal, vi, claramente, pálida, minha figura estranha, com o cabelo revolto, atirando ao mar, o corpo de Eloísa, seminua! E no pescoço estava o baraço da trança negra como a figura trágica dum condenado eterno de legenda. Recuei, fechei os olhos pra não ver, trêmulo, batendo os dentes, transido de horror.

Mas toda a tentativa foi vã. A pantera negra ali ficou, sobre o móvel fatal, com as pupilas imensas, e lá no fundo, como um espelho de ouro, a visão horrenda de meu crime! Em vão acendi a lanterna! Em vão caminhei! O clarão e as ágatas luminosas cresciam e com elas cresciam também aquelas figuras terríveis!

Meio louco e desvairado corri sobre a parede, tomei uma pistola carregada e atirei contra aquele espectro maldito. Soou o detonação, houve um clarão de pólvora, e o acho saiu rolando no silêncio da noite por sobre a imensidão muda do mar silencioso.

Me deitei e fechei os olhos, tremendo de medo e de horror!

E ao romper do dia abandonei o casarão antigo.

***

Hoje guardo dele apenas uma vaga recordação.

Mas todas as noites, na meia-noite, quando apago a luz de minha alcova horrendamente sinistra, ante meus olhos aparece a pantera negra, que assalta o viajante nas estradas do Industão. O quarto todo tomou a claridade estranha de ouro fulvo. E lá no fundo das pupilas de fogo me vi desgrenhado e pálido, com o baraço negro no pescoço, como a visão fatídica do crime.

Toda minha vida foi até aqui um inferno de assombro, cólera, medo, horror.

Assim vivi e assim morrerei, eternamente perseguido por esse espectro vingativo e inquebrantável.

Ele, eternamente ele, com suas órbitas de fogo, e lá no fundo aquele quadro terrível como a figura do Remorso negro que me ulula no fundo do coração!

***

Quando o narrador terminou, todos se voltaram, instintivamente, à porta da câmara mortuária, envolto no sudário branco, imóvel e de pé, atento, com a mão sobre o ouvido, a face pálida, os olhos cerrados, estava o cadáver de David Morel, tísico.

Ninguém disse palavra.

Apenas, ao despontar do dia, todos viram que Alfredo Vilar, o narrador, estava ainda imóvel, na posição em que fizera a narrativa, com o olhar desvairado e a cabeça branca de neve!


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Ano de publicação: 1925.
Origem: Brasil (Nordeste)

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