Eram quatro numa câmara vizinha, velando o cadáver de David Morel, o tísico.
Cada
um, estava combinado, contaria uma história tremenda, pra encher a noite.
Alfredo
Vilar se levantou. Deviam de ser 11h. Foi à porta da sala imediata, e fitou o
cadáver branco. O círio ardia. Naquela parte era profundo o silêncio.
Imobilidade, tumular quietude gélida!
Começaria
a narrativa.
Passou
nervosamente a mão, com os dedos abertos, no cabelo grisalho e rebelde, o
derramando doidamente sobre a testa, e disse:
Evocarei
uma história tremenda, que nunca se apagou de minha lembrança! Nunca mais! E,
cada vez que a desperto, esse mesmo pânico, que quase me tornou louco, essa
mesma assiduidade eterna do terror, lançam à alma uma excitação medonha que me
faz arrepiar o cabelo. Nunca mais me abandonou aquela visão fatal! Nunca mais!
***
Preza
desse enfado profundo da vida, arrebatado pelo encanto do sonho, da visão e do
silêncio assombroso dos retiros, fizera aquisição dum velho casarão antigo,
abandonado, num sítio ermo e sobre um rochedo na borda do mar. As tradições
mais aterradoras circulavam entre o povo acerca daquele retiro. Aparição
noturna de fantasma e alma errante, espírito vagabundo, clamor doloroso no meio
da noite, tétrico arrastar de corrente, soluço convulso e fogo adejante,
através das janelas, abertas na meia-noite por mão invisível, formavam o
cortejo fantástico que dera a esse velho casarão a reputação assustadora.
Abandonado
e ermo durante alguns anos, atraíam meu espírito exaltado a essa morada, a
legenda tétrica e o retiro lúgubre do silêncio.
Os
antigos proprietários quase designaram o direito de posse. E foi sem custo que
obtive, com alguns arregalares de olhos admirados, o consentimento pra o
habitar, como próprio domínio.
Era só
o que pretendia ao habitar esses lugares. Queria me sentar tristemente sobre
aquela ruína, como Volney ou Chateaubriand sobre o destroço de Palmira morta.
Tinha a sede do fantasma e a vertigem da sombra. Apenas levava meu negro
Relâmpago, brioso cavalo dum bravo sargento morto no campo de batalha. Seria a
única vida que acompanharia a minha. Era sobre seu costado de veludo, negro
como o corvo, que eu vagava errante nas longas noites de estio, à luz frouxa
das estrelas, nas estradas solitárias. Ultimamente me tornara como um espectro
vagamundo. E os camponeses falavam, apavorados, do viajante do cavalo negro,
que passava nas estradas desertas na meia-noite, resfolegando às portas das
choupanas e que ao despontar o dia ninguém via mais.
Esse
nome de Relâmpago dera o bravo soldado que o possuíra. E, a não ser pela
agilidade fenomenal, não compreendo a razão. Relâmpago! Negro como o cervo
fatal! Negro como a tinta do crime! Negro como a hora da meia-noite!
***
Em
minha primeira estada noturna nada de extraordinário pude receber.
No
largo aposento que escolhera se abria uma janela, ou antes uma porta sobre o
mar, onde se levantava até o meio uma grade de ferro arruinada. O resto do
casarão era deserto, e mudo. Através da vidraça entrava um fosco luar de
inverno, embaçado e lúgubre. Li até alta noite, naquele silêncio que
embriagava, como uma volúpia suprema. Nada se ouvia!
No
aposento, além do leito onde devia descansar as poucas horas de repouso a que
me entregava, havia apenas uma espécie de armário envelhecido e escuro. E no
outro lado, alta, coberta de teia-de-aranha, cheia de pó mas com essa nobre
austeridade dos antigos móveis, uma dessas cadeiras à Luís XIII, que me
recordava de ter visto nas gravuras de Abraão Bosse.
Em
baixo, no pátio, o resfolegar de Relâmpago, reconhecendo pelo olfato os objetos
da nova morada que tinha: Resfolegando e escarvando, aqui e ali, o chão do
terreiro, aclarado pelo frouxo luar tristonho.
Apenas
notei que, muito alta noite já, quando fecharia o livro e apagaria a lâmpada,
pra descansar, um grande gato negro, descendo silenciosamente do madeirame do
teto nu, com as telhas escuras, esverdinhadas do hálito do mar, veio pousar
sobre o armário antigo, que eu já encontrara no lôbrego aposento. O olhar
espantado do animal brilhava na penumbra, como duas pequenas chamas amarelas.
Pousou, e ficou, sobre as patas traseiras, olhando a sombra da câmara onde eu
já apagara a lanterna.
E
comecei, então, a pensar, meio deitado sobre o leito. O que queria dizer
aquilo? Como vivia ali, aquele animal, naquele ermo, só, como o negro senhor
daquela morada assombrada? Acaso não seria um desses fantasmas falados?! Que
estranho animal! Os olhos vivos, vivos! O pelo negro, negro! Imóvel! Só!
E ali
ficou sobre o móvel antigo o anacoreta da sombra, como olhar chamejante, claro,
transparente, como duas ágatas luminosas. Seria aquele móvel um sepulcro ou uma
urna de despojo humano? E não seria o vigia fúnebre, preso por um afeto, uma
saudade antiga, à lembrança do morto?
E ali
ficou! E nada mais se escutou! Relâmpago resfolegando embaixo, a espaço.
Tristemente foi se apagando o baço luar, como um palor de morte.
E na
enorme habitação deserta, vasta, vazia, solitária, erma, escura, nada se
escutava!
Sobre
o chão, mal se divisava o reflexo da claridade noturna, que entra na janela de
gradil aberta. Tentei adormecer. Já devia de ser alta madrugada quando o sono
veio.
E o
gato negro ali ficou, imóvel, com os olhos de ágata cintilando sobre o túmulo
ou a urna.
E
seria na verdade um túmulo?
Que ideia
fúnebre, meu-deus!
***
Se
passaram meses.
Eu
continuava embebido e devorado pela melancolia e pelo sonho. Passava os dias
lendo sempre, à janela que dava sobre o mar, muito calmo ali, meus livros
queridos. As noites iam, ao menos até o meio, nos trajetos solitários sobre o
lombo de Relâmpago.
Ó
noites de luar turvo quando vi em cada sombra, em cada tufo negro de folhagem
um fantasma e um espectro! Relâmpago trotava vagarosamente. E nas passagens
sombreadas, na beira das correntes, sob as árvores copadas, onde se acreditava
ver o olhar dum assassino emboscado ou o vulto negro dum tigre, ali eu ouvia psius! prolongados que vinham de longe.
Via
adiante brancos espectros, na beira dos caminhos. E, àqueles psius! lentos a repetidos, sentia se me
arrepiar a carne. Meu chapéu largo, se levantava sobre o cabelo eriçado. Quem
me chamava naquele retiro, naquela hora? Quem? O que me queria o espectro
vagamundo dos sudários brancos? E ia, tiritando de medo, tiritando de frio,
ébrio de pavor!
Relâmpago
seguia, bufando a espaços. Mais adiante, eram gemidos lacerados, que, saíam do
fundo dos valados, dos matagais escuros, lamentos que cortavam o coração! A voz
se me abafava às vezes na garganta. Eu me agarrava ao arção da sela, pra não
cair. Tinha a vertigem do pânico. Gemido? Mas quem sofria ali? Quem sofria
quando tudo repousa? Dores?!
Deus?
E, paralisado de espanto, tremia como criança, ouvindo esses gemidos
lamentosos, que pareciam vir da profundeza do abismo, da imensidão do túmulo?
***
A
meia-noite entrava no domínio mudo. E sempre, antes de adormecer, na sombra do
aposento, meu olhar se cravava sobre o vulto do gato negro de olhos de ágata
luminosa, sobre a urna funerária. Sempre!
Aquelas
visões lúgubres dos caminhos se tornaram uma necessidade pra mim. A vertigem do
terror, a sensação do medo se plantaram em meu ser.
Numa
das últimas noites, antes dos acontecimentos que relatarei, já adormecido,
acordei aterrado por um barulho atroador na outra extremidade do casarão: Ruído
enorme, rolar de pedras, estalos, fracasso longo, como uma tempestade, se
espalhava e ressoava medonhamente em meus ouvidos. Fiquei gelado. Não pude
compreender o que se passava então. Seriam os fantasmas, os espectros que
reapareciam com fúria tamanha?! Fiquei imóvel. Olhei em torno. E vi, sobre a
urna funerária, as duas ágatas vivas. Sempre? Nem uma palavra! Sentia que não
tinha voz, mudo e gelado de espanto.
O
retumbar ruidoso rolava como uma tempestade. Pouco e pouco foi se amortecendo.
Amortecendo se foram as ágatas vivas do animal imóvel. Se amorteciam o rumor e
as pupilas. Mais!
Que
coincidência! Que laço íntimo havia ali? De repente o rumor redobrou duma
maneira medonha. E as pupilas do negro animal se acenderam de novo, com uma luz
que iluminava a câmara. Rolava a tormenta. Foram amortecendo de novo a
tempestade e a luz das ágatas de fogo. Mais! Amortecendo sempre.
Me
enchi de coragem, então.
O
silêncio voltara. Acendi a lanterna e, trôpego, saí da alcova em direção ao
lugar do ruído extinto. Um vento frio como o gume de espada me batia nas faces.
Frio e terror! A luz da lanterna fechada vacilava dentro, oscilando, tremendo.
Mais adiante. Nada? Caminhemos. O vento soprava. Enfim parei, apavorado.
***
Ao
avançar, senti que me faltou o assoalho debaixo do pé que ia adiante.
Recuei.
O que é isso? A noite estrelada apareceu em cima da cabeça. Estrelada e muda!
Apliquei, então, a luz da lanterna, e vi que grande parte do edifício ruíra.
Os
muros do segundo andar caíram sobre o assoalho, o arrebentando, e rolando tudo,
num turbilhão de ruína, sobre o rés-do-chão. Uma parte inteira arriara sobre a
rocha, e se ouvia ainda o ruído de pedras miúdas e resto de cal rolando,
correndo e tombando nágua do mar, em baixo, com um gluglu muito lúgubre e
triste.
Voltei
à alcova. Vinham nascendo e iluminando a monotonia plúmbea do mar os primeiros
clarões do dia. Claridade dúbia e vaga. Fui adormecendo.
***
Durante
um ano inteiro passei essa vida de pavor no casarão em ruína. Continuei sempre
meus passeios noturnos. Neles só encontrava o estranho pavor que fizera em meu
organismo uma brecha profunda, se tornando uma necessidade latente. Só nesses
caminhos povoados de espectros e visões, nesses chamamento saídos do mato
escuro, encontrava, ansioso, muitas vezes hirto, abafado, bêbedo de horror, o
saciar do nefasto e fatal desejo que se aninhara em minha alma, como um corvo
maldito! Só, ali, naquele pânico, que me arrepiava o cabelo, e nas rútilas
pupilas amarelas do gato negro do sarcófago antigo. Sempre, na hora da meia-noite,
quando se extinguia a lâmpada da câmara, o vigia da urna funerária, na sombra
ou na penumbra do luar que entrava do mar, se destacava a meu olhar pasmo de
medo.
Entretanto,
direi, na vaga preocupação, na febre que me devorava noite e dia, me deixando
nas faces os sulcos fundos da dor. No meio dessas visões das estradas
solitárias, não passou despercebida minha natureza de homem ardente uma
circunstância na verdade estranha.
Na
beira da estrada mais lúgubre, numa clareira aberta, notei uma isolada habitação
rústica. Era uma nota discordante no meio da natureza lúgubre onde eu
mergulhava minha vida de interminável pavor. Aquela clareira era morna. Aquele
casebre rústico tinha a bondade flamenga dos quadros de van der Heyden e de
Teniers.
O
silêncio quieto quando eu passava e nenhum resquício de luz se coando através
das frestas ou do teto grosseiro sempre me dizia que a paz do trabalho dormia
ali, enquanto eu, o viajante fantástico do cavalo negro, vagava como um louco
nas estradas ermas.
Era
essa minha estrada predileta, como a mais sombria, de mais copadas árvores
escuras, onde os espectros e as visões me apareciam mais medonhos e repetidos,
mais assustadores e lúgubres.
Ali
até sempre, trotando sobre o lombo de Relâmpago, já afeito àquele passeio noturno.
***
Ia. E
notei que, naqueles últimos tempos, quando passava silencioso diante do
casebre, lá estava à janela, se destacando da trava interior, um vulto branco,
a meio-corpo, tão branco quanto uma gota de leite ou um floco de espuma sobre a
anca de veludo de Relâmpago. Sempre o via imóvel até eu desaparecer na curva do
caminho, E se ao me aproximar não o via de longe, como Relâmpago viesse
resfolegando sempre no caminho, ou relinchasse alegremente ao acaso, a janela a
abria, a pequena e tosca janela, e ele lá ficava nítido, alvo, branco, imóvel.
Aquela figura lançada no meio daquela imensa sombra da noite, era como uma
ironia da cor, ou um raio de luz, um raio de esperança num claustro escuro, num
coração de desgraçado. Ficava até que não a visse mais. Algumas vezes pensei
naquilo e pensei se seria um ser vivo e real ou uma visão apenas!
Seria
alguma louca de amor, que morria ali, aos poucos, na contemplação da grande
noite muda ou um espírito superior e febril, perdido na lubricidade do sonho?
Seria uma mulher? Mas o que fazia ali? Esperaria o amante, que devia de vir lhe
trazer, naquela hora, o beijo de amor, sorvido à luz meiga dos astros, como um
presente adorado?
Que
hora tétrica é essa em que tantos pensamentos cobertos de crepe, como corvos
agoureiros, assaltam nosso espírito, o enchendo dum pavor terrível?!
Prosseguia
adiante. E a branca aparição ficava, alvejante, à janela escura, no silêncio da
noite. E em sua nudez impassível me lembrava daquela fada Lorelai, da tradição
do Reno, que atraía com seu canto os viajantes retardados no caminho.
Seguia.
Os espectros surgiam diante dos barrancos. Ouvia os gemidos nos valados,
lacerantes, os longos psiu!, os
chamamentos fantásticos que me abafavam de pavor.
Entrava
trêmulo em minha solitária vivenda, meio despenhada sobre o mar, morada
silenciosa, que mais parecia um túmulo ou um soluço solto da imensa noite
tenebrosa da vida.
***
Repousava
na hora da madrugada. E pra completar meu pavor, quando apagava a lanterna,
sobre a urna, o móvel antigo, o gato negro acendia as pupilas de ouro, duma luz
amarela, transparente e viva.
Visão
escura de pupila ardente! Anacoreta da sombra, do olhar de ouro agatino!
Sentinela eterna de túmulo desconhecido!
Poucas
vezes deixava de sair a meu curso noturno e vagamundo. Raramente ficava no
solar, esperando, numa angústia febril e despedaçadora, a vinda dos fantasmas,
falados como os únicos habitantes da vivenda lúgubre do rochedo. Nunca vieram.
Nunca!
E,
estranha diversão era a minha, quando, na alta noite, já cansado da febril
espera ansiosa, desanimado da visita dos espectros ou sombras de além-túmulo,
ficaria à janela que dava sobre o pátio, vendo em baixo Relâmpago, inquieto,
escarvando, bufando, como se me convidasse à jornada do pavor.
Esse
cavalo marcial tinha uma particularidade estranha, como uma saudade ardente, um
reviver voluptuoso, da alegria e do heroísmo, do tempo glorioso das batalhas
campais.
Ao
grito bélico do clarim, relinchando e nitrindo, com as crinas erriçadas, as
narinas ofegantes, se lembrava dos bravos encontros da cavalaria marcial, o
rufo dos tambores, o fumo da pólvora, as bandeiras flutuantes e o ribombo
seguido e surdo do canhão de guerra.
Relâmpago
levava sibilando, rápido como um sonho, a morte crua, no fio da espada do bravo
sargento morto pela metralha inimiga.
***
Quase
sempre depois da meia-noite, quando tudo era sombra muda, silêncio tumular e
sombra abismal, empunhando o clarim, eu ia soprar à janela do pátio os toques
vibrantes de combate.
As
notas dos clarins se perdiam na imensidão da noite calada, como um acho
estrídulo e longínquo. E embaixo, Relâmpago, com a crina revolta, as narinas
ofegantes, escarvava o chão, nitrindo sempre ao toque de avançar como se
estivesse no campo de batalha. Grandiosa saudade do perigo, bélico en avant à morte! Sublime reviver,
repassado de glória e de coragem inaudita!
O
toque-de-avançada se repetia e o bravo cavalo partia relinchando contra o muro
do pátio. E rolava no circuito, galopando doidamente, como se quisesse cansar
aquela febre que lhe ardia dentro do coração.
Ao
longe os camponeses ouviam, do fundo das choupanas, esses sons inexplicados.
Nos ouviam assombrados. E cada vez se tornava mais ampla a reputação terrível
que pesava sobre aquele velho solar arruinado.
Noite
negra, noite densa, noite calada, e ao longe, toques marciais, nitridos, finos,
agudos, trêmulos, de cavalo ardente! Todos ouviam distintamente. Era do castelo
do Rochedo, que partiam esses alarmas, parecendo ainda mais lúgubres, assim
vibrados depois da hora lúgubre da meia-noite. E, entretanto, ao despontar do
dia ninguém os ouvia!
Foram
repetidas durante muitas noites essas cenas. Quando já não tinha a sensação do
pavor dos espectros terríveis das estradas solitárias, me era preciso avivar no
coração esse entusiasmo belicoso, que vivia em mim desde longos anos.
Nos
exercícios militares eu aprendera os toques de ordem. E nessa melancolia
pungente da noite me sonhava no campo de batalha como a figura do sargento
morto. À notas agudas do clarim sentia um estremecimento que me arrepiava o
cabelo, como se a coragem triunfal penetrasse em meu peito tumultuariamente.
Quando
ia repousar, tendo ainda nos ouvidos as notas trêmulas, perdidas na mudez da
noite, lá mesmo, sobre a urna funerária, sobre o móvel antigo, ao apagar a
lâmpada, encontrava com meu olhar o do negro animal das ágatas luminosas, como
dois faróis acesos naquela trava muda, prenhe de horror!
E a
convicção se arraigara em mim de que aquilo era um túmulo? Mas quem mo dissera?
Não sei. Mas um pressentimento fatal me batia dentro do coração marteladas de
bronze.
Em
noites de febre, quanta vez, tolhido de medo, abafado, deprimido, não passaram
por mim, volteando convulsos, a ideia e o desejo de despedaçar aquele enigma,
romper o sarcófago, e desvendar duma vez e até sempre aquele segredo pesado e
fatal!?
Mas
faltava coragem. E a interrogação ia e vinha. Quem estaria ali, naquele
abandono silencioso e triste, vigiado apenas, como derradeiro amigo, pelo gato
negro de pupilas de ouro?!
Em
meus trajetos noturnos, na viagem do pavor, se acentuavam sempre os mesmos
espectros e a mesma aparição branca do casebre da clareira na beira do caminho.
Numa
noite de luar fosco, espalhado no céu morno, com uma dúvida vaga, uma noite
triste, virando a rédea de Relâmpago, me aproximei da janela pequena do tugúrio
silencioso.
Eu
avançava, e a aparição imóvel ficava. Muito perto reconheci um vulto de mulher.
Hesitei. Tive medo. Mas um movimento que me gelou, me tirou a dúvida que me
pesava. Um braço nu se agitou no ar, com a mão branca, oscilando como um lenço
claro.
Estranhas
ideias vieram, se atropelando precipitadamente. Avancei mais e mais. Relâmpago
não queria chegar, com as orelhas agudas, resfolegando forte. Bati na anca, e
com um salto fiquei encostado ao peitoril da janela. E vi um busto nu de
mulher, deslumbrante, que conservava, à claridade vaga do luar, um encanto
marmóreo e lúbrico, fantasticamente divino.
Com o
dedo sobre o lábio impôs silêncio.
Senti
que as mãos tomavam tremulamente as minhas. Me curvando um pouco tive, me
roçando as faces, lábios finos, de infinita volúpia. A beijei, e aquela face
fria de neve se animou subitamente como ao calor dum incêndio. Pigmalião
animara o mármore frio.
Nu
estava o busto e nus os seios túmidos, muito brancos, tremendo de desejo. Toquei
com a mãos, ao acaso, e senti se me atordoarem os sentidos, bêbedo de
sensualismo amoroso.
E
mergulhamos toda aquela vida de uma hora, numa onda de volúpia fina, toda
estrelada de milhares de beijos. A suprema volúpia tempestuosa e louca rugiu,
assanhada, dentro dos corações.
Não
sei quantos minutos se passaram nesse ardente idílio. Atordoado e fora de mim,
me deixei devorar pela paixão que rebentava do seio daquela formosa mulher.
Nada
mais sei. Recordo apenas de que vinham aparecendo as primeiras luzes do dia,
quando entrei no solar do rochedo.
Muito
despreocupado, muito só, senti que trazia voluptuosamente sobre o lábio,
ressoando ao ouvido, como uma harmonia longínqua, um nome, que não sei onde
aprendera nem ouvira, que ignorava quem mo dissera, muito brando, muito doce,
muito suave. Eloísa!
Creio
que não dormi esse resto de branca madrugada, alvorecer dúbio, muito fosco e
vagamente triste.
***
No dia
seguinte, logo ao cair da noite, me senti ansioso pela jornada noturna. Mas era
muito cedo ainda quando começou a se grupar a circunstância trágica que
produziu a mais medonha noite, que passeei no castelo da Rocha, arruinado e
pendido sobre o mar.
O dia
caíra quente e abafado, o crepúsculo violáceo e uma cor de chumbo que parecia
fazer no céu e no ar.
Noite
já, apagada no céu a última fímbria luminosa do dia.
Nas
noites anteriores, sendo verão, ficava derramado no céu, à banda do ocidente,
um enorme clarão rubro até a meia-noite. Era uma onda de sangue que se levantava
sobre o horizonte em fogo até enorme altura. E lá ficava aquele lençol
vermelho, candente, no céu escuro, como um protesto colérico da luz contra
aquela imensa treva muda, serena e triunfal.
Mas
nesse dia o sol se atufara triste e lúgubre. A cor chumbada e dúbia, pesada,
arroxeada, triste, cobria tudo, o céu e o mar, que se tingia também da cor vaga
do firmamento. Tal se paramentava a larga cena, onde se representaria a
tragédia descomunal do espanto e do pavor infinito.
Olhei
o mar e olhei o céu. Sobre o mar a pesada cor tristonha, e no céu a cor, a
mesma cor profunda. Muito longe havia um rufar surdo de centenas de tambores
abafados. Rufando surdamente, e se afastando e amortecendo o som. Novamente
soaram as centenas de tambores, e novamente foi se lhes alongando o sussurro,
amortecendo, sussurrando ao longe.
Uma
silenciosa flecha de luz muito veloz, aguda e fina, riscou a grande abóbada. O
sussurro redobrou ao longe. Outra lâmina vermelha, na rapidez dum sonho,
pareceu cortar no meio a concha escura do firmamento. Mas o céu ficou unido, o
cutelo sumiu na sombra, e só ao longe soou o rumor que dobrava, como muitos
canhões soando confusamente, o rufar de mil tambores ou o acho longínquo duma
multidão aclamando!
Estranho
combate aquele! Que novo bombardeio destrói as ricas cidades da Europa
civilizadora? Que povo de feras se bate, assim, medonhamente, na peleja crua do
extermínio?!
E os
rumores vêm de longe, rolando até mim, aclarado o espaço nas fagulhas vívidas
de luz. Rufaram os milhares de tambores. Fuzila e refuzila, sussurra e ulula
todo o recanto obscuro do céu, turvado o mar gemebundo e triste.
Me
senti estremecer àquela ideia de guerra colossal, pugna imensa que se estendia
dum a outro recanto do céu.
Com o
braço trêmulo, a mão crispada, tomei a fanfarra pendurada na parede, e da
janela que dava sobre o mar, soprei estridulamente os toques de avançada de
guerra.
Queria
animar os que combatiam. O clarim vibrava as notas vigorosamente.
E na
imensidão da noite e do mar se perdiam os toques febris da fanfarra, morrendo e
repercutindo ao longe.
Relâmpago
nitria em baixo, no parque sombrio batido de chuva.
Rufaram
então mais vigorosamente as centenas de tambores e a vozeria ululante do povo.
Uma lâmina de luz se despenhou no espaço, como se quisesse tirar uma enorme
fatia do mar obscuro e profundo. Caiu do céu e desapareceu, deixando após si a
imensidão lôbrega, silenciosa e a treva imensa que sucede à luz.
Como
se provocado fera pelos toques da fanfarra, o rumor avançou sobre minha cabeça.
E sobre o casarão retumbante e ermo passou um ribombar indizível, estalando
como lâminas de metal partidas, rugindo com o rouco som de mil canhões troando
junto do rufo dos tambores e o clamor enorme da multidão avançando.
Parecia
que se arrebentara o céu num estrondo de infernal fragor.
Tudo
vibrou, o clarim, o castelo, o rochedo, na passagem do rumor imenso.
Mudo e
aterrado fiquei. E voltando a mim pude compreender que era a tempestade que
galopava no céu, desgrenhada e louca, sobre o corcel assombroso da noite,
empenachada a fronte da pluma vermelha e ardente do raio furibundo.
Em
todo o espaço as cintilações elétricas e o rolar surdo dos trovões. Durante
momentos acreditei que um poder terrível ameaçava reduzir a pó a grande máquina
do mundo.
À
claridade dos relâmpagos vi, sobre a água negra do mar, acinzentadas e soltas,
velas de pescadores. A chuva começou de cair rija, muito grossa, batendo contra
o chão com uma raiva concentrada.
No ar
empanado pela chuva, no largo mar escuro, já nada descobriam os fuzis repetidos
que se cruzavam no ar. Ribombando sempre, rolando, brandindo, estalando, passou
ululante o trovão sobre o castelo vazio, que vibrou, repercutiu e ecoou como um
tímpano imenso.
Quando
me retirei ao fundo do aposento era quase meia-noite. Duas vezes acendi a
lanterna e duas vezes a apagou a lufada úmida do temporal.
Meio
deitado sobre o leito olhei a noite cheia de pavor. Então ouvi lamentos
angustiosos vindos do mar.
Pensei
nos pescadores, surpreendidos pelo temporal, talvez náufragos naquele mar
fundo.
Os
gritos se repetiam como pedidos de socorro. Pouco a pouco tudo foi se
amortecendo, vozes e lamentos, como se afundando no abismo.
Enfim
tudo cessou. Só o temporal continuava a rugir a galope, no céu muito torvo como
uma masmorra larga e escura.
Um
calafrio gelou meus ossos. E angustiadamente vi, sobre o móvel antigo,
brilhando na treva, as órbitas luminosas do gato negro da meia-noite. Um luar
dourado e triste começou a inundar lugubremente aquela alcova sinistra.
E de
novo passaram rugindo em mim a ideia e o desejo de desvendar o segredo da urna
funerária, quebrar até sempre aquela dúvida pesada, aquele mistério terrível.
Tremi
de horror! Seria na verdade um túmulo? Me passou nos sentidos uma vertigem
bêbeda de assombro.
Acendi
a lâmpada convulsivamente e a coloquei no chão do aposento. Tomei, tremendo, um
enorme camartelo de bronze e parti ao móvel misterioso, erguido na sombra como
um espectro escuro.
Avancei
ao despedaçar. Mas quando levantei o camartelo pesado, as órbitas do animal se
acenderam tanto que recuei apavorado.
Medonha
interrogação! E naquela luz vi, como num espelho enorme, no fundo da pupila,
minha figura desgrenhada e horrenda com o camartelo erguido em atitude
ameaçadora!
Tudo
se arrepiou em mim. Era o sonho trágico que gela o assassino, no fundo da
masmorra escura, ao dobre da meia-noite!
Fiquei
bêbedo de pavor. E já sem consciência, num movimento rápido, deixei cair o
camartelo pesado contra o móvel sinistro.
Tudo
estremeceu na alcova. A parte frontal do alto móvel quadrado, de quase dois metros de
altura, caiu ao chão, redondamente, com ruído estrondoso.
Horrendo
espetáculo iluminou o clarão vermelho da lanterna! Em cima ficou o gato negro,
com as pupilas acessas, num brilho descomunal e estranho. E dentro, em pé, no
meio da urna escura, a figura encarquilhada e hirta dum velho, de longa barba
amarela esparsa sobre o peito, a boca horrenda e as órbitas vazias, olhando
estupidamente a noite terrível. A expressão era de cólera antiga, que se gelara
na figura rugosa e contorcida.
E com
os dedos negros das aves de rapina, a mão crispada, arrancava com fúria insana
a língua duma criança, ressequida também, com as órbitas vazias, contorcida,
hirta, horrenda, estrangulada a seus pés.
***
Recuei
cambaleando diante daquele drama do Inferno. Parecia que aquele velho feroz me
espiava medonhamente, do fundo das órbitas vazias, embebido em sua cólera
impotente.
Creio
que tive uma vertigem, ou perdi subitamente os sentidos. Não ouvi mais o ronco
rouco da tempestade, que uivava no céu, como uma hiena brava, no meio da noite
escura.
Apenas
me lembro que quando abri os olhos era quase dia. Vinha no céu uma claridade
rósea, do lado do oriente, muito indefinida e vaga. E o meigo luar da alvorada,
muito úmido, muito triste, andava brincando e tremendo sobre a água acinzentada
do mar.
E na
sombra melancólica do céu, aquela luz mórbida do luar era como um beijo frio de
velhice ou uma lágrima de saudade infinita.
E as
montanhas silenciosas, se desdenham muito longe, no fundo do róseo céu, muito
azuis, coroadas de névoas que flutuam.
Vinha
tombando a noite. Da janela que dava sobre a água estendi a vista vagabunda e
triste. E a face enorme do sol se atufava no mar, como uma enorme cabeça ensanguentada
que caísse, do grande azul silencioso.
Havia
em mim uma placidez desacostumada e mansa, naquela hora serena, como se um
trapo de veludo fino me estreitasse o coração.
Quando
a noite caiu silenciosa e lenta, da abóbada encurvada, veio de novo o desejo
fatídico das sombras, dos caminhos, das exalações oxigenadas do campo
adormecido. Fui ajaezar Relâmpago pro trajeto vagabundo das estradas ermas. E
na escuridão daquelas noites me aparecia na lembrança, como uma visão da neve
branca, a figura estranha de Eloísa, a visão calada dos caminhos, na meia-noite.
Preocupado
por não sei que ideias extraordinárias e dominadoras, ferido por não sei que
dores vagas, saí a esmo nas estradas sombrias. Caminhei errante, muito calmo,
sem emoção nem pavor, atravessando as sombras negras, das grandes árvores
sussurrantes, e o silêncio espectral das estradas empanadas de gaze finíssima
ponteadas no ar da luz azulada das estrelas palpitantes. Relâmpago, que ia
trotando vagarosamente, levantou a cabeça, respirou largo e relinchou forte,
nitrindo fino, como um sinal combinado de bandido, no meio daquele silêncio da
noite imensa, muito alta, tombando à madrugada.
Saíramos
da clareira. Ao longe a casa de Eloísa e a figura imóvel é branca na janela
escura.
Senti
baterem dentro em mim não sei que estranhas titilações de vida.
O cavalo
deixou o caminho e avançou à casa rústica, à janela aberta, da qual em noites
anteriores nos aproximamos a medo. Tive uma ideia extraordinária e súbita.
Cheguei.
A visão continuou imóvel ali. Sem dizer palavra enlacei com o braço longo, o
busto nu do espectro branco que vinha ver passar, havia tanto tempo o cavaleiro
negro e fantástico da meia-noite. Eu disse, suavemente lhe roçando o lábio na
face:
—
Eloísa! Eloísa!
Ela
começou a tremer como se sentisse frio. Em noite calmosa e longa o ar tépido
dos beijos faz tiritar a carne que arde ao calor da volúpia infinita.
Tudo
li na meiguice da face, nos grandes olhos negros e úmidos, de expressão muito
vaga e estranha. Tinham o brilho frio do carvão escuro das minas de Newcastle.
Falavam, diziam, com uma clareza incomparável. Creio que lhe disse algo ao
ouvido, porque o olhar se iluminou mais vivamente ainda, e pude ler claramente
a resolução estranha, a vontade ignorada, impetuosa, indefinida que ardia
no coração.
O
busto se elevou acima do peitoril da janela. Houve um aconchegar de roupas e de
carnes, um abafar de beijos e suspiros. E tive a formosa Eloísa seminua,
montada comigo sobre o dorso negro do ginete ofegante. A envolvi numa manta
escura e apertei os joelhos contra a sela do Relâmpago, que partiu como uma
flecha. Me enlaçando com os longos braços nus, meio deitada sobre meu coração,
galopamos a toda brida, na meia-noite, em direção à estrada.
O
cavalo voava aos arrancos no ar, resfolegando e atirando contra o peito densas
ondas de fumo.
Devorávamos
a estrada. A terra desaparecia sob os pés, listada e pardacenta, e os vultos
negros das árvores fugiam como um exército de espectros derrotados. A aragem da
noite açoitava nossa face. Dos pontos mais sombrios vinham arrepios de pavor. Upa, cavalo, upa! E galopávamos no meio da noite, entre os fogos soltos
vagamundos, como olhos de feras que espiam as presas, as lanternas mágicas dos
assassinos. A crina de Relâmpago se espalhava sobre nós como uma longa madeixa
de cabelo negro batido pelo vento. Upa,
cavalo, upa! E o suor corria nas
narinas palpitantes. Upa!
Ia
apertando muito doidamente Eloísa contra o coração.
Não
sabia porque fugíamos, nessa carreira infrene, na meia-noite, como loucos
perdidos, a toda brida. De repente, do fundo dum valado saiu um gemido estertoroso
que cortava o coração. Tudo se arrepiou em mim. Eloísa se aconchegou quase
hirta e transida de horror.
A
noite muda e negra! Medonho gemido lamentoso e triste! Upa, meu cavalo, upa! A
toda! Noite calada e lúgubre!
***
Muito
longe apareceu, como um fantasma escuro, imenso, no meio da planície sombria, o
enorme castelo abandonado. Relâmpago nitriu ao ar. Upa, meu cavalo, upa!
E
sempre a galope, como loucos ou condenados fugitivos, corríamos na sombra,
iluminados por fogos adjacentes, à luz trêmula das estrelas, voando, como numa
balada do Reno, em direção ao vulto enorme, escuro, alevantado do velho casarão
arruinado.
Tudo
mudo, calado e triste. Nem um canto ao longe! E na fímbria indefinida do céu um
traço claro, branco, muito fino, como o primeiro albor da madrugada.
Quando
entramos ambos naquela alcova sinistra, à luz fosca diurna, a sentia
estremecer. Arranquei, tremulamente, a roupa que a cobria e a atirei nua sobre
o leito descomposto e acendi a lâmpada, prà examinar de perto.
Aquela
mesma luz cor de sangue, que iluminara aquela cena trágica do túmulo sinistro,
acariciava agora, muito meiga, a carne branca e intata da mais formosa mulher
da Terra.
E essa
mulher eras tu, encantadora Eloísa, que nunca mais verei! Mas me recordo muito
bem ainda. Eras formosa como a Madalena de Rubens, que eu admirara um dia,
pasmo de encanto, sobre o muro da catedral de Anvers. Tinha a beleza seráfica e
infinita das mulheres imortais de Rafael, Corregio e Ticiano.
Foste
Inez, a espanhola, que veio tentar, em vão, consolar a tristeza eterna de teu
romeiro Haroldo!
***
Começaram
de desfilar pra nós as longas noites de amor infinito, de êxtase incomparável,
de loucura sonhadora.
Junto
da carne nova e palpitante e o desejo lúbrico que arde como uma labareda no
fundo do coração, começou o desencadeamento infernal dos desejos semimortos, do
sensualismo intenso, bestial e mudo.
Em
mim, como um sarcófago de mármore, ou no fundo escuro duma gruta, dormia de
longo tempo, a fera insaciável dos desejos infernais.
Naquele
recolhimento monástico onde se me ia a vida neurótica dos terrores infinitos,
devoradores e repetidos, me dormia no fundo do coração a aspiração intensa da
carne, como num largo braseiro extinto. E quanta vez acreditei, naquele viver
místico de espanto, ter atrofiadas em mim as potências másculas da virilidade
genésica!
Tudo
acordava agora, como numa imensa alvorada lúbrica. Avalanches de sensualidade
inaudita rolavam, rugindo em catadupas, do fundo rebelado de meu ser.
Era o
sabá demoníaco dos despojos e das concupiscências, o festejando a música
rítmica, a vozeria ululante da carne, que anseia diante de mim, que canta, que
desmaia, que estrebucha e clama!
E as
longas noites se passaram na mais horrenda devassidão que sonhou um cérebro de
louco! E aquela formosa Eloísa, nada mais era que uma loba enjaulada, ardendo
de desejo e febre lúbrica de amor!
E
ébrio de sonho, bêbedo de amor, hipnotizado, em delírio, me deixava
estrangular, rindo, por aquela besta insaciável do sensualismo triunfante.
Eram
duas feras, que enfim se encontravam, frente a frente, depois dum ódio longo.
Uma dormiu sob a palmeira, de folhas trêmulas e murmurantes, na fresquidão
calada do bosque silencioso. A outra, sedenta, aspirando sangue, com as narinas
dilatadas e a garra pronta, esperou um ano inteiro a inimiga anelada.
Ano de
sono, e meses de desejo e dor. Ano de cólera oprimida, de sangue, que lateja
nas artérias, que grita e clama, e longos meses de repouso calado, que cria a
força e dá a coragem triunfal!
Enfim
chegou o dia do encontro fatal. E feras ambas, saciam na carne quente a fome
devoradora que lhes tripudiava no seio!
***
Se ia
na manhã o meio luar que entrava na janela do mar, e voltava na tarde o luar, e
nos encontrava ainda abraçados, no eterno sonho daquele amor sem trégua.
Raio
pálido de luar, tu viste, frio com um olhar de gelo, aquele drama sombrio de
incomparável amor!
E mudo
o viste, e em silêncio assististe ao desfecho terrível. E nunca falaste, ao
menos uma palavra!
E
frio, como a neve, e sempre frio, rindo, sorriste naquela noite tremenda e
lúgubre!
Teu
claro raio me seguiu sempre e vejo que me segue ainda. Testemunha impassível de
meu me crime, em vez do medo tragas a mim sempre uma meiga recordação apagada
de minha alma morta até nunca mais!
Tudo
se transformara em mim. E a leoa desperta da gruta me enchia o peito com seu
lamentoso uivo!
Uma
tarde me senti exausto. Não sei se me esgotara a vida nessa orgia infernal de
amor de besta, na bacanal da carne, dos delírios e dos beijos.
O que
em verdade sinto é que nunca mais amei!
O dia
descera. Eloísa dormia como morta, pálida e fria, sobre o leito da núpcia
infernal.
Nascia
a Lua. Na sombra vaga da alcova começou a entrar o primeiro luar dulcíssimo.
Num
recanto do céu se elevava aquele imenso globo rubro de sangue. E foi lentamente
e pausadamente subindo e empalidecendo, da palidez serena daquela formosa
mulher adormecida.
E
tranquilamente dormia, sobre o leito decomposto, com a beleza impecável, a
figura de Eloísa, como se lhe pesasse a fadiga duma luta imensa.
Juntos
cantáramos, arrebatadamente, o Amor,
amor, amor! do canto árabe de Whashington Irving, o canto da volúpia
infinita!
Dormia
agora ali, pálida, exausta e fria.
Oprimido
não sei por qual imensa e profunda dor, me debrucei à janela que dava sobre o
triste mar. Ideias negras revolvendo o cérebro cansado e me pesando dentro do
crânio como pedras enormes, que tombassem da altura. Passei tremulamente a mão
no cabelo e senti o gélido suor terrível de minhas noites de assombro.
Eloísa
dormia na paz serena. E sobre ela passei rapidamente meu olhar fugitivo. Senti
me estremecer inteiro e se me arrepiou o cabelo. Que ideia horrível, meu-deus!
Em vão
buscaria dizer o que se passou em mim naquela hora e lugar sinistro.
Acendi
a lâmpada e me sentei pra ler silenciosamente.
Longas
horas creio que foram de vaga abstração perdida. Meus olhos corriam sobre as
páginas que virava sempre, sem que uma ideia estranha acalmasse a tempestade
que rolava no cérebro e no coração.
Ouvi
ao longe, na meia-noite, um dobre lúgubre. Olhei a Lua e a vi impassível no
grande céu sereno. Seria meia-noite. Apaguei a lanterna. Quando me vi na trava
me senti estremecer. Comecei a ouvir arfar o seio de Eloísa adormecida. Fora, o
mar estava mudo. O céu estava iluminado e claro. E muito longe, na névoa da
noite, a extensão do mar, que foge como um deserto imenso.
Um
rumor mais forte ecoou então na câmara. E, atentando, vi que o gato negro da
meia-noite descia, como de costume, a cima do móvel antigo. Senti um gélido pavor.
Vinham lembranças sinistras. O sarcófago, a urna, o túmulo oculto! Aquele
animal ou estranho ser implacável! Quanta ideia pesada e lúgubre! Que
recordações apavorantes, senhor!
Em
silêncio fui ao leito onde Eloísa dormia. A quis beijar mas senti que todo meu
esforço era vão. Me senti exausto e frio, e compreendi que tudo estava acabado
para mim. Ela continuava fria e adormecida, beijada na face por um raio trêmulo
de luar.
Que
dor profunda é essa de quem sente a desoladora evaporação de seu ser!
Como sentindo
exausto, acreditei que tudo se extinguira em mim. E estremeci à ideia de a ver
acordar de repente e pedir ainda um afago de meu pobre amor sepulto. Senti bem
convencidamente que esse esforço me seria impossível. E tive medo e tive receio
de que ela pudesse ir amar ainda. Podia ir gozar além a vida e o amor que os
beijos em mim sepultaram e gastaram. E entregaria a outro aquela carne ainda
quente, aquele corpo ainda machucado ao fogo de meus beijos? E a mulher, que
fora minha, pura como um sonho de luar ou de estrela, serviria de pasto à sanha
lúbrica dos vampiros do mundo?!
—
Nunca!, minha formosa Eloísa. Nunca!
Jurei
com o punho levantado, rangendo os dentes, vibrado com um tremor convulso.
Tinha as cóleras inauditas de Otelo, e meu crime lancinante à passagem da
primeira dúvida.
E
apenas, na sombra imensa da alcova sinistra vi que brilhavam as ágatas
luminosas do espectro singular da meia-noite.
Eloísa
dormia. E na sombra calada da noite eu ouvia, apavorado, o arfar sereno do
seio. Tomei sobre a mesa meu punhal marroquino, encurvado e reluzente, e
avancei tragicamente, com o braço alçado, ao leito silencioso.
Tudo
tremia em mim. E com os dentes cerrados murmurava sempre:
—
Nunca, Eloísa, nunca! Mais ninguém.
E
preparei do alto um profundo golpe certeiro.
Todo o
quarto se iluminou estranhamente. Se acenderam as pupilas da fera dum luar
muito claro de platina e outro. E, a essa luz terrível eu via adormecida, com
um paladino riso trêmulo do luar.
O
braço armado caiu sem atingir o alvo. Fiquei imóvel e mudo de assombro.
Vi o
mar fora, silencioso, e a larga noite muda como um sonho imenso de Deus!
Eloísa
se voltou preguiçosamente no leito. Fui o último dos bandidos da Terra! E a
tomei nos braços, sorrindo como quem embala uma meiga criança adormecida.
E diante
daquela nudez deslumbrante de carne opulenta e fina, que tocava com os dedos,
que apertava contra o coração, a fúria dos desejos farejou cinicamente e se
conservou impassível.
No
chão andaram rastejando as tranças bastas e escuras que eu vira subirem como
duas serpentes negras e ondulantes em suas espáduas de mármore. Tentei a
beijar, ainda mas meus lábios não se abriram. Tremiam encostados aos dentes
cerrados, que batiam de febre.
E a
tremer senti que suas mãos me passavam algo em redor do pescoço com carícia
infinita.
Então
parecia que a noite estava fria. Ia o luar lá fora, muito claro, sobre o mar
tristonho e mudo.
Creio
que compreendeu que o que se passaria era tremendo, e me apertou muito contra o
coração.
Caminhei
tragicamente à janela do mar, essa eterna escâncara aberta em minha vida
sombria como um abismo sem fundo! O luar lhe deu em cheio no rosto e se via,
assim, na derradeira hora, muito pálida, muito linda, banhada inteira pelo
clarão fantástico do luar.
Fui o
ínfimo bandido da Terra!. A levantei nos braços e a atirei ao mar, pálida e
nua.
O mar
era como um lençol torvo de chumbo listado no meio dum fitão de prata.
Quando
a arremessei ao seio d'água profunda, senti um estranho choque inesperado, que
me pareceu querer arrancar a cabeça com um arranco colossal. Conseguiu resistir
quase morto de dor.
E vi,
após, com espanto, que uma daquelas tranças que me atara ao pescoço com carícia
inefável acabava de se partir naquela queda da altura.
Vi
sobre o mar aquele corpo alvo e vacilante, como um imenso lírio desfolhado. As
águas se abriram, marulhando no silêncio da noite, e se fecharam tremendo sobre
o corpo branco, imerso na escâncara do abismo.
Depois
veio a mudez infinita, silenciosa paz, calada e triste!
E a
Lua, com a cara branca no meio do céu, ficou rindo. Um riso pálido e infernal
sobre aquele túmulo imenso!
***
Me
voltei a dentro e entrei na câmara.
Estranho
luar de platina e ouro, luz infernal, iluminava tudo! Horrenda aparição,
senhor!
Na
sombra imensa, o gato negro terrível tomou proporção assustadora, se
avolumando. Era mais negro que o pavor, a noite e a tinha do remorso! Horrível
dilatar de formas se operava naquele ser, e já não é o gato de todos os dias
mas a pantera negra e sinistra, que ataca o viajante nas estradas ermas do
Industão. E as pupilas rútilas, descomunais têm a dilatação disforme do globo
luminoso da Lua.
Em
toda a câmara aquele claro fatídico. E lá no fundo daqueles dois astros fatais,
claro como no fundo dum espelho de cristal, vi, claramente, pálida, minha
figura estranha, com o cabelo revolto, atirando ao mar, o corpo de Eloísa,
seminua! E no pescoço estava o baraço da trança negra como a figura trágica dum
condenado eterno de legenda. Recuei, fechei os olhos pra não ver, trêmulo,
batendo os dentes, transido de horror.
Mas
toda a tentativa foi vã. A pantera negra ali ficou, sobre o móvel fatal, com as
pupilas imensas, e lá no fundo, como um espelho de ouro, a visão horrenda de
meu crime! Em vão acendi a lanterna! Em vão caminhei! O clarão e as ágatas
luminosas cresciam e com elas cresciam também aquelas figuras terríveis!
Meio
louco e desvairado corri sobre a parede, tomei uma pistola carregada e atirei
contra aquele espectro maldito. Soou o detonação, houve um clarão de pólvora, e
o acho saiu rolando no silêncio da noite por sobre a imensidão muda do mar
silencioso.
Me
deitei e fechei os olhos, tremendo de medo e de horror!
E ao
romper do dia abandonei o casarão antigo.
***
Hoje
guardo dele apenas uma vaga recordação.
Mas
todas as noites, na meia-noite, quando apago a luz de minha alcova
horrendamente sinistra, ante meus olhos aparece a pantera negra, que assalta o
viajante nas estradas do Industão. O quarto todo tomou a claridade estranha de
ouro fulvo. E lá no fundo das pupilas de fogo me vi desgrenhado e pálido, com o
baraço negro no pescoço, como a visão fatídica do crime.
Toda
minha vida foi até aqui um inferno de assombro, cólera, medo, horror.
Assim
vivi e assim morrerei, eternamente perseguido por esse espectro vingativo e
inquebrantável.
Ele,
eternamente ele, com suas órbitas de fogo, e lá no fundo aquele quadro terrível
como a figura do Remorso negro que me ulula no fundo do coração!
***
Quando
o narrador terminou, todos se voltaram, instintivamente, à porta da câmara
mortuária, envolto no sudário branco, imóvel e de pé, atento, com a mão sobre o
ouvido, a face pálida, os olhos cerrados, estava o cadáver de David Morel,
tísico.
Ninguém
disse palavra.
Apenas,
ao despontar do dia, todos viram que Alfredo Vilar, o narrador, estava ainda
imóvel, na posição em que fizera a narrativa, com o olhar desvairado e a cabeça
branca de neve!
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