terça-feira, 14 de dezembro de 2021

A noiva do golfinho (Conto do Folclore), de Xavier Marques

 

A NOIVA DO GOLFINHO

 – “Havia uma linda tinharense chamada Marina, que era também a mais singular de todas as criaturas...”

Viveu em Tinharé, nas águas alterosas do sul.

Essa ilha é formada por um alto morro sempre afligido dos ventos fortes que correm da banda de leste.

Quando os temporais conflagram o oceano, a grande ruga de terra parece muito mais longínqua e inabitável; as suas palmeiras de longos caules vergam e rangem como as cordagens dos navios em tormenta. E se os ares abonançam, fujam as nuvens, brilhe o sol ou paire sereno o luar, fica sempre nas costas o eterno alarido das marés, sob os gritos das procelárias que futuram novas insurreições marinhas, naufrágios, lutas e agonias de marinheiros.

Foi ali, mas em tempo já muito antigo, quando a roca de Tinharé não dardejava ainda a torre nem o lume do farol, que viveu e morreu aquela, cuja história de amor tanto comovia as raparigas de sua condição.

Talvez ainda a conte alguma velha avó, como as de outrora, sob o puxado das casas de palha, lá no cimo do morro, à hora em que num horizonte imenso, cavado e tão profundo que alucina os olhos e a alma, começam a murchar os jardins de violetas e os rosais do crepúsculo.

Era a essa hora que costumava transitar pelas praias o espetro amoroso da infeliz que esteve para noivar com o mais esquisito, o mais misterioso de todos os noivos.

Depois vinham as sombras da noite envolvendo as bordas da ilha, onde se punha a roncar o terrível gargantão, comedor de pescadores e marinheiros; nos casais do morro conchegavam-se os vizinhos, unidos pelos mesmos sonhos e terrores que desciam com as trevas: e as velhas avós, acabando de narrar o idílio trágico da malfadada, deixavam errar mais um mistério sobre as rochas ermas de Tinharé.

***

Eis o que elas contavam.

Havia uma linda tinharense chamada marina, que era também a mais singular de todas as criaturas da ilha. Sua morada era antes o campo e as praias do que o palhote, onde participava do sustento de um casal de velhos. Daquela cor de leite coalhado não havia senão ela no lugar. Era delgada como um palmito e leve como uma pena: leve de corpo e de juízo. Os olhos tinha-os um nada sombrios, tirando a azul, e os cabelos, tão sutis e assedados como os fios de uma teia de aranha.

Nisso, como em tudo mais, ela se punha fora do vulgar, semelhante a uma ave estrangeira vinda pelo céu, num dia de tempestade, para espantar as aves ribeirinhas de Tinharé, que a desconheceram sempre, sempre até à morte. De comum com as outras apenas tinha o falar, isto é, as palavras com que dizia as mil extravagâncias que lhe acudiam à mente.

Que tivesse pai ou mãe ou parente qualquer, nunca ninguém o soube. Nas ilhas aparecem às vezes desses entes solitários como elas mesmas. A gente, contudo, mal se satisfazia com esta razão, e por muito tempo não se cogitou de outra coisa.

– Donde veio Marina?... De algum navio naufragado nos bancos de coral? De algum barco onde acaso viajava a mulher que se arrependera de a ter dado à luz? Teria sido entregue às ondas dentro de uma barquinha ou de uma condessa, como aquele inocente que passava na correnteza do rio e foi salvo por uma princesa?...

Depois ninguém mais indagou da origem de Marina. O gênio caprichoso, as excentricidades, as louquices dela fizeram esquecer esse enigma. Em vez de perguntarem de que parte e como viera à ilha, perguntavam todos com pasmo quem havia formado naquele corpo franzino de criança um coração tão poderoso para resistir e tão soberbo para desejar.

Oh! não, nunca se vira em gente humilde um desejo tão alto, nem tão pouca resignação ao seu destino. Se bem a entendiam, ela queria colher à mão os astros, como se apanham os malmequeres no vargedo. Ambiciosa e cobiçada nenhuma o foi jamais como a linda criatura. Mas pobres daqueles que se enamoravam de Marina: ela não lhes dava mais esperança do que os vagalumes dão luz. Se um instante os escutava, dias e semanas fugia até de vê-los. Procuravam-na, espreitavam-na e lá iam encontrá-la nas dunas da costa ou na crista de um rochedo, sozinha e pensativa, como que à espera de embarcação ou de alguém que lhe houvesse prometido entrevista.

Andava cega pelas ondas ou por alguma visão que só a ela aparecia por cima das águas.

– Quem será?

E os tinharenses moços a rogar, a implorar-lhe piedade. Porque eles sofriam, coitados! sofriam constante e duríssimo desprezo, que é a maior pena de amor. Se eram bons faziam-se melhores, a fim de merecê-la. Trabalhavam dias inteiros no mato a cortar piaçaba, pelejavam na pesca e marinhagem com borrascas e calmarias. Como eram tidos por famosos indolentes, puniam-se com aturadas labutações; que assim é que eles catavam a confiança das raparigas que apeteciam por amantes. E todas elas amaram, deram marinheiros ao mar e cultivadores às vargens. Só a caprichosa Marina se recusava à lei da tribo, querendo, pelos modos, imitar a figueira que negou um fruto a Nosso Senhor.

– É uma ovelha brigada com o rebanho...

Assim diziam as outras, não menos escandalizadas pelo contraste da sua vida, sempre ao revés dos gostos, dos sentimentos, do pensar e das maneiras comuns. Quando todos riam, ela se mostrava amuada e triste. Se um temporal sobrevinha, atordoando o morro com o estrépito das vagas, toda a gente se recolhia silenciosa; mas agora é que era ver Marina aos saltos, cantando, rebentando de alegria. Sua voz acrescentava às cantigas mais sabidas umas toadas, uns retornelos de paixão e melancolia estranhas.

– Quem te ensinou essa toada, Marina?

– Foi o mar – respondia.

No meio do canto, repentinamente, calava-se, lançava suspiros à toa e muitas vezes acabava enxugando os olhos com a teia esparsa dos cabelos.

Assim vivia a desditosa num ansiar sem repouso, abrasada por uma sede sem aplacamento. Vela que transluzisse no horizonte fazia-a cismar como uma estrela que corresse no céu. Barco que aproasse à ilha, esperava-o a pé quedo, no porto, com o coração em frêmitos. Sumia-se a vela; do barco desciam os costumados, os vulgares tinharenses. Marina voltava, ora triste, morta de tristeza, ora agastada, mais intratável que um bicho. Criam muitos que ela amava, que curtia uma grande paixão de homem desconhecido. A dificuldade estava em explicar-se onde vira esse homem, que ninguém nem por sombra o encontrara naquele monte de terra, cujos habitantes, sem excluir os próprios animais, andavam pisando os mesmos sítios e caminhos.

Um dia, enfim, depois de violenta marulhada, achando-se ela no topo de uma escarpa, de frente para o oceano, alguém se aproximou e pôde ouvir-lhe a súplica inaudita que dirigia às ondas ainda ressentidas da tempestade.

– Mar, ó mar dos golfinhos encantados e das sereias feiticeiras, que é do meu amado marinheiro, aquele que me prometeste e por quem anseio mais que as tuas ondas? Traze o meu noivo, ó mar querido, que já não tenho suspiros no peito para lhe mandar!

Desde então, sempre que Marina desaparecia da chã do morro, era certo estar pousada em algum seixal da costa, a falar com o oceano essa língua que só assentava na loucura ou nos lábios cabalísticos de alguma bruxa. Quando subia, era mais muda que as pedras; os olhos semicerrados, fugidos com horror deste mundo, como que os vazara para não ver os pobres colhedores de piaçaba que andaram a ferir os pulsos nas palmeiras de espinho e agora desafogavam o peito em cantigas dolentes, capazes de comover os penhascos.

Enquanto eles padeciam, a visionária sonhava.

Passava dias longos dentro do seu sonho, donde só se desprendia aos primeiros uivos do temporal.

Ei-la de novo a folgar, a cantar e a dançar.

Isso fez compreender aos tinharenses que o marinheiro prometido devia chegar, como as aves da procela, num grande ruge-ruge de ventania e chuvas. A certeza desse amor agourento e quase fantástico teve-a a gente do morro uma manhã em que Marina, acordando de bom humor, contou às vizinhas:

– Sonhei que um navio tinha ferrado na costa da ilha. Era todo branco e brilhava como um navio de prata. As velas alvejavam como as roupas do coradouro ao luar. Na proa trazia duas figuras, que eram dois golfinhos de ouro, com as caudas retorcidas voltadas para o céu. Veio de bordo um moço corado e lindo, que parecia mais um príncipe do que um marinheiro, e subindo a este morro, chegou-se a mim e disse:

– “Bela menina, há muito tempo que te procuro, saltando de ilha em ilha, de praia em praia, trazido pelas ondas e pelos ventos que me levavam teus suspiros e queixumes. Sabes quem sou eu? Sou o príncipe dos marinheiros. Aqui estou e venho buscar-te... prepara-te e segue-me, se é do teu agrado”.

E Marina, crente e feliz, pôs-se a girar como o fuso nas mãos da fiandeira.

Entretanto foram correndo as semanas e o marinheiro não chegava, nem com tormenta nem com bonança, em navio de prata ou barco de madeira. Pelas praias e grotas e ambiciosa criatura continuava a penar, a gemer e a exclamar:

– Ó mar dos golfinhos encantados e das sereias feiticeiras, que é do meu amado marinheiro, aquele que me prometeste e por quem anseio mais que as tuas ondas?...

***

Um dia, tendo descido a escarpa do morro, logo às primeiras claridades da manhã, Marina afastou-se até sumir-se, do tamanho de um pássaro, nas areias espessas do litoral. Havia passado um rebojo; aves pesadas sulcavam o céu, baixando às vezes até molhar as penas na espumarada do oceano.

As rochas marinhas, os morretes de pedra verdejavam de camadas de limo que as marés de água-viva tinham criado, na conjunção da lua.

A tinharense demorou-se horas esquecidas, mas quando apareceu não cabia em si de contente. Nas faces de leite coalhado fulgia-lhe uma luz de nácar puríssimo, o cabelo esvoaçava, os olhos dilatados e mais azuis ardiam em febre de alegria. E ela chilrava como uma andorinha a fazer verão.

– Que viste hoje, Marina?

– Vi o meu amado.

Vira-o de fato. Depois de tanto suspirar, de tanto ansiar, de tanto gemer, o mar lhe mandara o prometido e desejado amante. Não viera em nave de prata nem esquife de madeira: ela o encontrara de súbito, encostado a um morrete verdejante, ao pé da escarpa que se abria em grutas habitadas por aves marinheiras. Belo, feiticeiro, fresco e palpitante como um peixe n´água, tinha o ar de quem dizia: “Pensavas que eu não vinha, amor? Pois aqui estou”. Era fielmente aquele que ela trazia retratado na mente, – marinheiro e jovem, de cabelos ruivos como as barbas da lagosta, o rosto vermelho da lustrosa cor dos salmonetes, os olhos amorosos, esverdeados, profundos como os abismos onde flutuavam as querenas de seus navios de sonho. Sua voz (ele falou-lhe) era um murmúrio doce e branco, só comparável ao rumor dos mimosos búzios que ela gostava de escutar; seu sorriso (ele sorriu-lhe) deixou-a fascinada como o brilho de escamas dos alvíssimos dentes...

E agora, todas as manhãs, partia Marina do puxado da casa e lá ia esconder-se com a sua felicidade nas grutas mais silenciosas, longe, entre as eriçadas fragas da costa. Passava quase os dias inteiros nesses retiros, em colóquios misteriosos com o noivo, de quem contava maravilhas, o lindo noivo que a enchia de promessas, de carícias e lisonjas, mas que a ninguém aparecia e a quem todos viam somente pelos olhos da encantada criatura.

– Que ele era esquivo, confirmava Marina, mas havia de vir, havia de mostrar-se e então julgariam do tesouro que as vagas lhe trouxeram.

Supunham-no algum náufrago ou mareante fugido de bordo. Pelos traços que ela dava, seria estrangeiro, vindo por altos mares, dos países desconhecidos e tão remotos que parecem lendas.

Muita moça do morro invejou a estrela da gloriosa tinharense. Como ela, desejavam ser loucas para ter sonhos de que assim despertassem. Os moços aquietaram-se e perdoaram-lhe o orgulho e os desdéns, porque ela, enfim, já amava. Os velhos rogavam ao céu pela paz daquele coração que tanta piedade merecia.

Todos os dias estava o noivo para subir ao casalejo; e cada dia se malograva a expectativa dos tinharenses.

Decorreram tempos. Ninguém viu, de longe sequer, o marinheiro de Marina. As raparigas e os homens baldaram passos e tocaias; nunca atinaram nem com a gruta onde se refugiavam os felizes amantes.

Já no espírito da gente nascia a suspeita de algum encantamento ou bruxaria, quando de repente se soube que Marina pedira ao casal de velhos um canto da casa de palha para morar com o adventício que viria a desposá-la.

Ela por sua vez fazia aprestos de noivado, dizendo e jurando:

– Está para breve...

De tábuas de pau-louro mandou construir um leito sobre quatro toros. De macias flores de macela encheu uma colcha, que estendeu nas tábuas. A mulher que cosia rendas teceu-lhe fronhas para os travesseiros. Marina carreou a areia mais branca da praia e sessou-a numa urupema sobre o chão da camarinha, onde passou a queimar folhas aromáticas de alecrim.

Nada mais faltava para as núpcias, a não ser quem lhes deitasse a bênção.

Num domingo pela manhã foi anunciada a vinda do marinheiro.

– Companheiras, ajudem-me a enramar esta casa para que se torne digna de receber o meu amado.

Vieram do mato braçadas de folhagem fresca, ainda gotejante de orvalho, ramos de murungu que pareciam cobertos de borboletas vermelhas, cachos alvos de ingazeiro, lírios convales e regaços cheios de flores amarelas de São João.

As moças, amigas de folgar, pregavam palmitos e canas aos portais da casa, e com os cipós floridos das trepadeiras fizeram festonadas, que pendiam das vergas do palhote. O terreiro alastrou-se de conchas e juncou-se de folhas de pitanga. A casa dos velhos parecia um bosque sagrado, todo em flor, para as núpcias de uma ninfa.

Vieram os bons cantores com as violas. Todas as suas mágoas se finaram, por não haver mais coração que disputar. Dentro de poucas horas iam conhecer o ente privilegiado que cativara e possuía o coração arisco da tinharense.

Assim que o sol abrandou e no céu do morro, azul da cor do seu mar, começaram a desdobrar-se as nuvens róseas e douradas da tarde, Marina, com os cabelos ornados de junquilhos, saiu a correr pelo trilho escarpado, ao encontro do marinheiro que a esperava ao pé das rochas.

Lá se demorou mais de uma longa hora. Mas com surpresa dos convivas voltou sozinha.

– Teu noivo, Marina?...

– Ele aí vem, ele aí vem... Soem as violas, para que haja prazer em volta do meu amado.

As violas soltaram rasgados vivos e estridentes. Pararam. Repetiram as tocatas.

E o marinheiro não chegava.

– Ele aí vem... Dancem, companheiras, para que sejam de primor as boas-vindas do meu amado.

As moças rodaram como fusos. Cantaram. Sapatearam. E o marinheiro não subia.

– Ele aí vem... Ora esperem.

Marina tornou a descer, mais rápida que uma andorinha no ar, com o cabelo espalhado a derramar os junquilhos de que se havia engrinaldo para as núpcias.

Desceu e sumiu-se...

Nisto as sombras caíram pesadamente, enrolando-se ao longo da praia. As nuvens do crepúsculo, de róseas fizeram-se roxas, de roxas tornaram-se pretas.

Uma vasta mancha negra fechou num capuz o horizonte do morro, e um vento irado, esmigalhando vagas e vagas contra as penhas da costa, ganhou o cimo, passou esmagando as copas das árvores, que se punham a urrar, enquanto os caules das palmeiras gemiam.

Maria não voltava.

Homens e raparigas recolheram-se ao palhote, surpreendidos por essas trevas repentinas e por essa tormenta assombrosa, em que o oceano bramia pelas bocas de milhões de feras assanhadas, que em feras se haviam transformado as ondas.

Marina continuava ausente!

Palmas e ramagens eram arrancadas do terreiro e destruídas, como se lhes tocassem as mãos de iracundos demônios. A casa como que girava num vórtice; as próprias criaturas tinham medo de ser arrebatadas pelas refregas. Apelos, protestos furiosos articulavam-se no alarido da tempestade. O vento silvava maldições, o mar levantava clamores de vingança. Parecia que todos os gênios marinhos, peixes encantados, sereias, feiticeiras raivosas, acudiam das suas glaucas moradas para impedir a união dos amantes...

Nem Marina, nem o marinheiro!...

Só então se fez a luz sobre o mistério daquele amor desnatural...

– Pai do céu, que horror!

E ao espírito da gente surgiu, mas só então, no seu feitio verdadeiro, aquele que sob as formas enganadoras de homem tinha vindo iludir a ambição da triste e malfadada.

Noivado, se o houve, foi no seio do abismo, no leito frio do mar, donde nunca mais voltou a noiva do golfinho.

 

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Ano de publicação: 1902.
Origem: Brasil.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

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