As leis do reino de Sarinhã – grande e
riquíssima nação, que há séculos e séculos deslumbrou o mundo pelos altos
feitos dos seus príncipes e pela sua opulência, – obrigavam o soberano reinante
a casar-se assim que completasse quinze anos de idade.
O príncipe Altir, que governava Sarinhã, na
época em que se passa esta história, querendo conformar-se com as leis, resolveu
casar-se.
Para realizar o seu desígnio, ordenou que lhe
apresentassem as moças mais famosas que existissem no país, embora morassem nos
confins do reino.
Os emissários, já haviam corrido todas as
cidades, vilas, aldeias, povoados de casa em casa, e nenhuma das jovens
apresentadas a Altir lhe tinham agradado.
Tinha ele perdido a esperança de casar com a
moça mais linda do país, conforme desejava, e por isso vivia muito triste,
quando se deu um fato interessante.
O batalhão que dava a guarda de honra do
palácio, unicamente composto de moços fidalgos, escolhidos entre os mais ricos,
instruídos, famosos e valentes do reino, tinha ido assistir à missa na capela
real.
Entre os soldados, havia um jovem marquês,
nascido numa província longínqua, filho de nobilíssima e antiga família, e que
pouco antes fora admitido nas guardas do rei.
Era a primeira vez que ele entrava na real
capela, pois não havia ainda um mês que chegara à capital.
Estava admirando o luxo, o esplendor, a
arquitetura do templo, um dos mais elegantes e célebres do mundo inteiro e
percorria com o olhar as imagens, nos altares, cada qual mais primorosamente
executada por afamado artista, quando fitou a de Nossa Senhora do Rosário, que
ficava justamente ao seu lado.
Não pôde deixar de soltar um grito de
espanto, ao mesmo tempo que de seus olhos jorravam lágrimas abundantes.
O general comandante, que era o príncipe
Seraf, estranhando aquele procedimento, indagou do jovem marquês, cujo nome era
Odern, a causa da exclamação que soltara e do pranto que derramava.
Odern disse que chorava porque havia se
lembrado de repente de sua família, de sua casa, situada havia um mês de
viagem, e lembrara-se ao ver a imagem de Nossa Senhora do Rosário, que era o
retrato exatíssimo, perfeito, de uma de suas quatro irmãs, Gabi, a mais moça.
A notícia correu de boca em boca. Muita gente
zombava, não acreditando, porquanto essa imagem era uma perfeição, um primor de
escultura, um ideal de beleza, e não podia existir uma criatura humana que se
parecesse com ela, quanto mais que fosse a mesma coisa, o modelo vivo.
No entanto a notícia chegou aos ouvidos do
príncipe Altir, que mandou chamar Odern, a quem falou:
— Se tua irmã é assim tão bonita, dize-me
onde mora tua família, que quero mandar buscá-la para minha esposa.
— Saberá vossa real majestade, respondeu o
marquês, que meus pais moram nos desfiladeiros do monte Camocim, distante daqui
dez mil léguas por terra e cinco mil por mar.
O rei mandou imediatamente preparar uma
esquadra para ir buscar a jovem Gabi, enviando para isso embaixadores ao pai,
pedindo-a em casamento. Odern fez parte dessa embaixada.
***
Ao cabo de três meses de viagem, os navios
aportaram finalmente a Camocim; todos, ao verem a moça, ficaram maravilhados
com sua beleza extraordinária.
O embaixador entregou a carta do rei ao velho
duque Odern, que aceitou o honroso pedido do rei Altir, e deixou a formosa Gabi
partir, em companhia de seu irmão.
Regressava a esquadra, quando caiu um grande
temporal, que obrigou os navegantes a procurar o primeiro abrigo que se lhes
deparou. Era uma enseada desconhecida, que não figurava em mapa algum.
Mas ninguém se importou com aquilo, e todos
saltaram em terra, indo pedir pousada à casa de uma velhinha que ali morava.
Era uma velhinha com perto de noventa anos,
magra, baixa, e horrorosamente feia, caolha e aleijada. Devia ser com certeza
uma bruxa mas disse que se chamava Sarda.
Em conversa indagou donde vinham e para onde
iam tão ilustres navegantes, e soube assim o destino da embaixada real.
Aproveitando-se de uma ocasião favorável,
convidou Gabi para dar um passeio pela horta, e aí chegando atirou a pobre
menina no poço que ali havia.
Para não darem por falta dela, pôs em seu
lugar uma filha que tinha, moça em verdade, mas horrível de feia.
Como já era noite os viajantes não deram pela
troca, e conduziram-na para bordo.
Quando os navios levantaram ferro, a velha
foi ao poço, tirou dele a moça, cortou-lhe os cabelos, furou-lhe os olhos e
deitou-a num caixão, que atirou ao mar. Mas o caixão, em vez de afundar,
flutuou, e foi chegar ao reino primeiro que a esquadra real.
Pedro, um pescador, achou-o. Vendo-o muito
pesado, julgou ter dinheiro, e começou a gabar-se que havia achado uma fortuna
no fundo do mar, e que por isso seria mais rico que o rei.
Sendo chamado à presença do monarca, Pedro
disse que de fato tinha achado um caixão com dinheiro.
Altir mandou que os guardas fossem se
certificar o que havia de verdade no que dizia o pescador.
Aberto o caixão, deram com a moça dentro,
ficando todos com pena, de ver uma jovem formosíssima, divinamente bela, mas
cega e com os cabelos cortados.
Os soldados voltaram conduzindo a moça,
chegando ao palácio, um dia depois de ter aportado a embaixada trazendo a filha
da velha.
O embaixador, dando conta da missão, disse ao
rei:
— Real majestade, fui alegre e volto triste;
sujeito-me, porém, à pena que me quiserdes dar. Quanto ao marquês Odern, ao ver
a irmã ficar tão feia, de um dia para o outro, receando a justa cólera de vossa
majestade, lançou-se ao mar.
— Não há remédio, disse o rei, casar-me-ei
com essa mulher feia.
Efetuou-se o casamento, mas o rei
conservou-se sempre triste.
No outro dia, quando lhe apresentaram a moça
dos olhos furados e cabelos cortados, todos da embaixada reconheceram sem
demora a formosa Gabi Odern.
Contando-se-lhe o que havia ocorrido com o
temporal e a hospedagem na casinha da velha Sarda, Altir desconfiou da infame
bruxa, e mandou buscá-la por um navio veloz.
Sarda a princípio negou tudo, e até fingiu
desconhecer sua própria filha, mas esta era muito parecida com ela, de sorte
que se descobriu toda a falsidade das duas malvadas feiticeiras.
Por castigo, o rei mandou furar os olhos da
velha e cortar-lhe os cabelos. Assim que cumpriram a ordem real, os olhos de
Gabi ficaram perfeitos, e cresceram-lhe os cabelos, tornando-se ela ainda mais
formosa, mais deslumbrante, o verdadeiro tipo da beleza.
O marquês Odern não havia morrido afogado.
Tendo sido lançado à praia, foi recolhido pelo mesmo pescador Pedro. Sabendo
que sua irmã estava viva e sã, e que casara com o rei Altir, apresentou-se no
palácio, sendo magnificamente recebido pela rainha, sua irmã, e pelo seu real
cunhado.
A família do duque de Odern deixou os
desfiladeiros de Camocim, e veio residir na capital do reino de Sarinhã, onde
viveu sempre feliz e considerada.
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Ano de publicação: 1896.
Origem: Brasil (Reconto)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)
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