CAPÍTULO 1: AS JABUTICABAS
De volta do reino das Águas Claras,
Narizinho começou todas as noites a sonhar com o príncipe Escamado, dona
Aranha, o doutor Caramujo e mais figurões que conhecera por lá. Ficou de jeito
que não podia ver o menor inseto sem que se pusesse a imaginar a vida
maravilhosa que teria na terrinha dele. E quando não pensava nisso pensava no
Pequeno Polegar e nos meios de o fazer fugir de novo da história onde o
coitadinho vivia preso.
Era este o assunto predileto das
conversas da menina com a boneca. Faziam planos de toda sorte, cada qual mais
amalucado.
Emília tinha ideias de verdadeira
louca.
— Vou lá — dizia ela — e agarro nas
orelhas da dona Carocha e dou um pontapé naquele nariz de papagaio e pego o
Polegada pelas botas e venho correndo.
Narizinho ria-se, ria-se...
— Vai lá onde, Emília?
— Lá onde mora a velha.
— E onde mora a velha?
A boneca não sabia, mas não se
atrapalhava na resposta. Emília nunca se atrapalhou nas suas respostas. Dizia
as maiores asneiras do mundo, mas respondia.
— A velha mora com o Pequeno Polegada.
— Polegar, Emília!
— PO-LE-GA-DA.
Era teimosa como ela só. Nunca disse
doutor Caramujo. Era sempre doutor Cara de Coruja. E nunca quis dizer Polegar.
Era sempre Polegada.
— Muito bem — concordou a menina. — A
velha mora com Polegar e Polegar mora com a velha. Mas onde moram os dois?
— Moram juntos.
Narizinho ria-se, dizendo: “Possa-se
com uma diabinha destas!”
Dona Benta era outra que achava muita
graça nas maluquices da boneca. Todas as noites punha -a ao colo para lhe
contar histórias. Porque não havia no mundo quem gostasse mais de história do
que a boneca. Vivia pedindo que lhe contassem a história de tudo – do tapete,
do cuco, do armário. Quando soube que Pedrinho, o outro neto de dona Benta,
estava para vir passar uns tempos no sítio, pediu a história de Pedrinho.
— Pedrinho não tem história —
respondeu dona Benta rindo-se. — É um menino de dez anos que nunca saiu da casa
de minha filha Antonica e portanto nada fez ainda e nada conhece do mundo. Como
há de ter história?
— Essa é boa! — replicou a boneca. —
Aquele livro de capa vermelha da sua estante também nunca saiu de casa e no
entanto tem mais de dez histórias dentro.
Dona Benta voltou-se para tia
Nastácia.
— Esta Emília diz tanta asneira que é
quase impossível conversar com ela. Chega a atrapalhar a gente.
— É porque é de pano, sinhá — explicou
a preta — e dum paninho muito ordinário. Se eu imaginasse que ela ia aprender a
falar, eu tinha feito ela de seda, ou pelo menos dum retalho daquele seu
vestido de ir à missa.
Dona Benta olhou para tia Nastácia dum
certo modo, como que achando aquela explicação muito parecida com as da
Emília...
Nisto apareceu Narizinho, com uma
carta para dona Benta trazida pelo correio.
— Letra da sua filha Tonica, vovó —
disse a menina. – Com certeza é marcando a viagem de Pedrinho.
Dona Benta leu. Era isso mesmo.
Pedrinho viria dali uma semana.
— Uma semana ainda? — comentou
Narizinho, desanimada de tanta demora. Que pena! Tenho tanta coisa a contar a
Pedrinho — coisas do reino das Águas Claras...
— Não sei que reino é esse. Você nunca
me falou nele, — disse dona Benta com cara de surpresa.
— Não falei nem falo porque a senhora
não acredita. Uma beleza de reino, vovó! Um palácio de coral que parece um
sonho! E o príncipe Escamado, e o doutor Caramujo, e dona Aranha com suas seis
filhinhas, e o major Agarra, e o papagaio que salvei da morte — quanta
coisa!... Até baleias vimos lá, uma baleia enorme, dando de mamar a três baleinhas.
Vi um milhão de coisas mas não posso contar nada nem para vovó nem para tia
Nastácia porque não acreditam.
Para Pedrinho, sim, posso contar tudo,
tudo...
Dona Benta, de fato, nunca dera
crédito às histórias maravilhosas de Narizinho. Dizia sempre: “Isso são sonhos
de crianças.” Mas depois que a menina fez a boneca falar, dona Benta ficou tão
impressionada que disse para a boa negra:
— Isto é um prodígio tamanho que estou
quase crendo que as outras coisas fantásticas que Narizinho nos contou não são
simples sonhos, como sempre pensei.
— Eu também acho, sinhá. Essa menina é
levada da breca. É bem capaz de ter encontrado por aí alguma varinha de condão
que alguma fada tenha perdido... Eu também não acreditava no que ela dizia, mas
depois do caso da boneca fiquei até transtornada da cabeça. Pois onde é que já
se viu uma coisa assim, sinhá, uma boneca de pano, que eu mesma fiz com estas
pobres mãos, e de um paninho tão ordinário, falando, sinhá, falando que nem uma
gente!... Qual, ou nós estamos caducando ou o mundo está perdido...
E as duas velhas olhavam uma para a
outra, sacudindo a cabeça. Narizinho não gostava de esperar; ficou pois
aborrecida de ter de esperar Pedrinho ainda uma semana inteira. Felizmente era
tempo de jabuticabas.
No sítio de dona Benta havia vários
pés, mas bastava um para que todos se regalassem até enjoar. Justamente naquela
semana as jabuticabas tinham chegado “no ponto” e a menina não fazia outra
coisa senão chupar jabuticabas. Volta e meia trepava à árvore, que nem uma macaquinha.
Escolhia as mais bonitas, punha-as entre os dentes e tloc! E depois do tloc,
uma engolidinha de caldo e pluf! –
caroço fora. E tloc, pluf, tloc, pluf,
lá passava o dia inteiro na árvore.
As jabuticabas tinham outros fregueses
além da menina. Um deles era um leitão muito guloso, que recebera o nome de
Rabicó.
Assim que via Narizinho trepar à
árvore, Rabicó vinha correndo postar-se embaixo à espera dos caroços. Cada vez
que soava lá em cima um tloc! seguido
de um pluf! ouvia-se cá embaixo um nhoc! do leitão abocanhando qualquer
coisa. E a música da jabuticabeira era assim: tloc! pluf! nhoc! — tloc! pluf! nhoc!...
Sanhaços também, e abelhas e vespas.
Vespas em quantidade, sobretudo no fim, quando as jabuticabas ficavam que nem
um mel, como dizia Narizinho. Escolhiam as melhores frutas, furavam-nas com o
ferrão, enfiavam meio corpo dentro e deixavam-se ficar muito quietinhas,
sugando até caírem de bêbedas.
— E não mordiam?
— Não tinham tempo. O tempo era pouco
para aproveitarem aquela gostosura que só durava uns quinze dias.
Não mordiam é um modo de dizer. Nunca
tinham mordido, isso sim. Porque justamente naquela tarde uma mordeu. Estava
Narizinho no seu galho, distraída em pensar na surpresa que teria o príncipe
Escamado se recebesse uma jabuticaba de presente, quando levou à boca uma das
tais furadinhas, com meia vespa dentro. Dessa vez em lugar do tloc do costume o que soou foi um berro
— ai! ai! ai!... tão bem berrado que lá dentro da casa as duas velhas ouviram.
— Que será aquilo? — exclamou dona
Benta assustada.
— Aposto que é vespa, sinhá! — disse
tia Nastácia. — Ela não sai da “fruteira” e, como nunca foi mordida, abusa. Eu
vivo dizendo: “Cuidado com as vespas!” mas não adianta, Narizinho não faz caso.
Agora, está aí...
E foi correndo ao pomar acudir a
menina.
Encontrou-a já de volta, berrando com
a língua à mostra, porque fora bem na ponta da língua que a vespa ferroara. A
negra trouxe-a para casa, botou-a no colo e disse:
— Sossegue, boba, isso não é nada. Dói
mas passa. Ponha a língua para eu arrancar o ferrão. Vespa quando morde deixa o
ferrão no lugar da mordedura. Bem para fora. Assim.
Narizinho espichou meio palmo de
língua e tia Nastácia, com muito custo, porque já tinha a vista fraca, pôde
afinal descobrir o ferrãozinho e arrancá-lo.
— Pronto! — exclamou mostrando
qualquer coisa na ponta duma pinça. — Está aqui o malvado. Agora é ter
paciência e esperar que a dor passe. Se fosse mordida de cachorro bravo seria
muito pior...
Narizinho curtiu a dor por alguns
minutos, de língua inchada e olhos vermelhos, soluçando de vez em vez. Depois
que a dor passou, foi contar à boneca toda a história.
— Bem feito! — disse Emília. — Se
fosse eu, antes de comer olhava cada fruta, uma por uma, com o binóculo de dona
Benta.
Apesar do acontecido, Narizinho não
pôde reprimir uma gargalhada, que tia Nastácia ouviu lá da cozinha.
“Narizinho já sarou”, disse consigo a
preta, “e daqui um instantinho está trepada na árvore outra vez”.
E tinha razão. Indo dali a pouco ao
rio com a trouxa de roupa suja, ao passar pela jabuticabeira parou para ouvir a
música de sempre — tloc! pluf! nhoc...
Lá estava Narizinho trepada à árvore.
Lá estavam as vespas com meio corpo
metido dentro das frutas. Lá estava Rabicó esperando a queda dos caroços.
— Está tudo regulando! — murmurou
consigo a preta, e pondo o pito na boca seguiu o seu caminho.
CAPÍTULO 2: O ENTERRO DA VESPA
De noite, à hora de deitar-se,
Narizinho lembrou-se de que havia deixado a boneca debaixo da jabuticabeira.
— Pobre da Emília! Deve estar morrendo
de medo das corujas... e pediu a tia Nastácia que fosse buscá-la.
A negra foi e trouxe Emília, toda
úmida de orvalho, danadíssima com o esquecimento da menina. E só com a promessa
de um belo vestido novo é que desamarrou o burro. Um vestido de chita cor-de-rosa
com pintinhas.
E de saia bem comprida.
— Por que, Emília? — indagou a menina
estranhando aquele gosto.
— Porque sujei a perna aqui no joelho
e não quero que apareça.
— O mais fácil será lavar o joelho.
— Deus me livre! Tia Nastácia diz que
sou de macela por dentro e por isso não posso me molhar. Emboloro. Um dia ainda
posso virar condessa e não quero ser chamada a condessa do Bolor.
— Testo, panela, bolor, fedor! Tem
razão, Emília. O melhor é fazer um vestido de cauda. Para condessas fica bem.
Mas condessas de quê?
— Quero ser a condessa de Três
Estrelinhas! Acho lindo tudo que é de três estrelinhas.
— Pois muito bem, Emília. Desde este
momento fica você nomeada condessa de Três Estrelinhas e para não haver dúvida
vou pintar três estrelinhas na sua testa. Todas as criaturas do mundo vão
torcer-se de inveja!...
— Todas menos uma — observou a boneca.
— Quem?
— A vespa que ferrou sua língua.
— Explique-se, Emília. Não estou
entendendo nada.
— Quero dizer que a tal vespa está
morta e bem enterrada no fundo da terra — explicou a boneca. — Assisti a tudo.
Quando ela mordeu sua língua e você fez pluf!
antes de berrar ai! ai! ai!, a jabuticaba cuspida, ainda com a vespa dentro,
caiu bem perto de mim. Vi então tudo o que se passou depois que você desceu da
árvore, berrando que nem um bezerro, e lá foi de língua de fora.
E a boneca contou direitinho o triste
fim da pobre vespa.
— Ela ficou ainda quase uma hora
metida dentro da casca, toda arrebentadinha, movendo ora uma perna, ora outra.
Afinal parou. Tinha morrido. Vieram as formigas cuidar do enterro. Olharam,
olharam, estudaram o melhor meio de a tirar dali. Chamaram outras e por fim
deram começo ao serviço. Cada qual a agarrou por uma perninha e, puxa que puxa,
logo a arrancaram de dentro da jabuticaba. E foram-na arrastando por ali afora
até à cova, que é o buraquinho onde as formigas moram. La pararam à espera do
fazedor de discursos...
— Orador, Emília!
— FAZEDOR DE DISCURSOS. Veio ele, de
discursinho debaixo do braço, escrito num papel e leu, leu, leu que não acabava
mais. As formigas ficaram aborrecidas com o besourinho (era um besourinho do
Instituto Histórico) e apitaram. Apareceu então um louva-a-deus policial, de
pauzinho na mão. “Que há?” — perguntou. “Há que estamos cansados e com fome e
este famoso orador não acaba nunca o seu discurso. Está muito pau”, disseram as
formigas. “Para pau, pau!” — resolveu o soldado — e arrolhou o orador com o seu
pauzinho. As formigas, muito contentes, continuaram o serviço e levaram para o
fundo da cova o cadáver da vespa. Em seguida apareceu uma trazendo um letreiro
assim, que fincou num montinho de terra:
“AQUI NESTE
BURACO JAZ UMA POBRE VESPA ASSASSINADA NA FLOR DOS ANOS PELA MENINA DO NARIZ
ARREBITADO. ORAI POR ELA!”
Feito isso, recolheu-se. Era noite
quase fechada. No pomar deserto só ficou o besourinho, sempre engasgado com o
pau. Queria à viva força continuar o discurso. Por fim conseguiu destapar-se e
imediatamente continuou: “Neste momento solene...” Nisto um sapo, que ia
passando, alumiou o olho dizendo: “Espere que eu te curo!...” Deu um pulo e
engoliu o fazedor de discursos!
— Não reparou, Emília, se esse sapo
era o Major Agarra-e-não-larga-mais?
— perguntou a menina.
— Não era, não! — respondeu a boneca.
— Era o Coronel Come-orador-com-discurso-e-tudo...
CAPÍTULO 3: A PESCARIA
Afinal acabaram as jabuticabas.
Somente nos galhos bem lá do alto é que ainda se via uma ou outra, todas
furadinhas de vespa.
Rabicó — rom, rom, rom, — volta e meia
aparecia por ali por força do hábito. Ficava imóvel, muito sério, esperando que
caíssem cascas; mas, como não caísse coisa nenhuma, desistia e retirava-se,
rom, rom, rom...
Narizinho também ainda aparecia de vez
em quando de comprida vara na mão e nariz para o ar, na esperança de “pescar”
alguma coisa.
— Arre, menina! — gritou lá do rio tia
Nastácia, numa dessas vezes. — Não chegou quase um mês inteiro de tloc, tloc? Largue disso e venha me
ajudar a estender esta roupa, que é o melhor.
Narizinho jogou a vara em cima do
leitão, que fez coim! e foi correndo
para o rio, com a Emília de cabeça para baixo no bolso do avental.
Lá teve uma ideia: deixar a boneca
pescando enquanto ela ajudava a preta.
— Tia Nastácia, faça um anzolzinho de
alfinete para a Emília. A coitada tem tanta vontade de pescar...
— Era só o que faltava! — respondeu a
negra, tirando o pito da boca. — Eu, com tanto serviço, a perder tempo com
bobagem.
— Faz? — insistiu a menina. —
Alfinete, tenho aqui um. Linha, há no alinhavo da minha saia. Vara não falta.
Faz?
A negra não teve remédio.
— Como não hei de fazer, demoninho?
Faço, sim... Mas se ficar atrasada no serviço, a culpa não é minha.
E fez. Dobrou o alfinete em forma de
gancho, amarrou-o na ponta duma linha e descobriu uma vara — uma varinha de
dois palmos, imaginem! Narizinho completou a obra, atando a vara ao braço da
boneca.
— E isca? — indagou depois.
— Isca é o de menos, menina. Qualquer
gafanhotinho serve.
Salta daqui, salta dali, Narizinho
conseguiu apanhar um gafanhoto verde. Espetou-o no anzol. Depois arrumou a boneca
à beira d’água, muito tensa, com uma pedra ao colo para não cair.
— Agora, Emília, bico calado! Nenhum
pio, senão espanta os peixes. Logo que um deles beliscar, zuct!, dê um puxão na linha.
E, deixando-a ali, foi ter com a
preta.
— Você me frita para o jantar o
peixinho da Emília, Nastácia? Frita?
— Frito, sim! Frito até no dedo!...
— Não caçoe, Nastácia! Emília é uma
danada. Ninguém imagina de quanta coisa ela é capaz.
Palavras não eram ditas e — tchíbum!... pescadora de pano revirava
dentro d’água, com pedra e tudo.
— Acuda, Nastácia! Emília está se
afogando!... — gritou a menina aflita.
De fato. Um peixe engolira a isca e,
lutando por safar-se do anzol, arrastara a boneca para o meio do rio.
Tia Nastácia arranjou uma vara de
gancho e com muito jeito foi puxando para a beira do córrego a infeliz
pescadora, até o ponto onde a menina a pudesse agarrar.
Assim aconteceu, e qual não foi o
assombro de Narizinho vendo sair d’água, presa ao anzol de Emília, uma
trairinha que rabeava como louca!
A negra pendurou o beiço.
— Credo! Até parece feitiçaria! —
resmungou.
Muito contente da aventura, Narizinho
disparou para casa com o peixe na mão.
— Vovó — gritou ela ao entrar, —
adivinhe quem pescou esta trairinha...
Dona Benta olhou e disse:
— Ora, quem mais! Você, minha filha.
— Errou!
— Tia Nastácia, então.
— Qual Nastácia, nada!...
— Então foi o saci — caçoou Dona
Benta.
— Vovó não adivinha! Pois foi a
Emília...
— Está bobeando sua avó, minha filha?
— Juro! Palavra de Deus que foi a
Emília. Pergunte a tia Nastácia, se quiser. A preta vinha entrando com a trouxa
de roupa lavada à cabeça.
— Não foi mesmo, tia Nastácia? Não foi
Emília quem pescou a trairinha?
— Foi, sim, sinhá — respondeu a preta
dirigindo-se para dona Benta. — Foi a boneca. Sinhá não imagina que menina
reinadeira é essa! Arranjou jeito de botar a boneca pescando na beira do rio e
o caso é que o peixe tá aí...
Dona Benta abriu a boca.
— Bem diz o ditado, que quanto mais se
vive mais se aprende.
Estou com mais de sessenta anos e
todos os dias aprendo coisas novas com esta minha neta do chifre furado...
— Criança de hoje, sinhá, já nasce
sabendo. No meu tempo, menina assim desse porte andava no braço da ama, de
chupeta na boca. Hoje?... Credo! Nem é bom falar...
E com a menina dançando à sua frente,
tia Nastácia lá foi para a cozinha fritar a traíra.
CAPÍTULO 4: AS FORMIGAS RUIVAS
Só depois de comer o peixe frito é que
Narizinho se lembrou da pobre boneca, encharcada pelo banho no rio.
— A coitada!... É bem capaz de apanhar
pneumonia...
E foi correndo cuidar dela. Despiu-a e
pô-la num lugar de bastante sol. Dum lado estendeu suas roupinhas molhadas e do
outro, a pobre Emília nua em pelo. E já ia retirar-se quando a boneca fez cara
de choro.
— Eu aqui não fico sozinha!...
— Por que, sua enjoada? Tem medo que o
leitão venha espiar esses cambitos magros?
— Espiar não é nada, mas ele é capaz
de me comer. Tia Nastácia diz que Rabicó devora tudo o que encontra.
— Nesse caso, penduro você na árvore.
— Isso também não! — protestou Emília.
— Alguma vespa pode me ferrar.
— Boba! Não sabe que vespa não ferra
pano?
— Mas se eu cair com o vento?
— Grande coisa! Boneca de pano quando
cai não se machuca. Eu é que não posso ficar neste sol tirano à espera de que a
excelentíssima senhora condessa de Três Estrelinhas seque! Quem mandou
molhar-se?
— Mal agradecida! Se não fosse a minha
molhadela você não comia a traíra.
— Está pensando que era uma grande
coisa a tal traíra? Só espinho...
— É, mas você comeu-a com espinho e
tudo. e até lambeu os beiços.
— Lábios, aliás. Beiço é de boi. Comi
porque quis, sabe? Não tenho que dar satisfações a ninguém, ahn! — e Narizinho pôs-lhe a língua.
Emburraram ambas. Narizinho, porém,
ficou, porque lá no íntimo estava com receio de deixar a boneca sozinha.
Fazia um sol quente e parado. Nas
árvores, um ou outro tico-tico só; e no chão, só formiguinhas ruivas.
Para matar o tempo a menina pôs-se a
observar o corre-corre delas, esquecendo a briga com a boneca.
— Já reparou, Emília, como as formigas
conversam? Que pena a gente não entender o que dizem...
— A gente é modo de dizer — replicou
Emília — porque eu entendo muito bem o que dizem.
— Sério, Emília?
— Sério, sim, Narizinho. Entendo muito
bem e, se você ficar aqui comigo, contarei todas as historinhas que elas
conversam. Repare. Vem vindo aquela de lá e esta de cá. Assim que se
encontrarem, vão parar e conversar.
Dito e feito. As formiguinhas
encontraram-se, pararam e começaram a trocar sinais de entendimento.
— Fiquei na mesma! — disse a menina.
— Pois eu entendi tudo, — declarou a
boneca. -A que veio de lá disse: “Encontrou o cadáver do grilinho verde”? A que
veio de cá respondeu: “Não”! A de lá: “Pois volte e procure perto daquela pedra
onde mora o besouro manco.” Esta formiga que dá ordens deve ser alguma
dona-de-casa lá do formigueiro. E repare seus modos de mandona; está sempre a
entrar e sair do buraquinho, como quem dirige um serviço. A outra com certeza é
uma simples carregadeira.
Havia de ser isso mesmo, porque logo
depois chegou uma terceira, muito apressada, que cochichou com a mandona e lá
se foi mais apressada ainda.
— Que é que disse esta? — perguntou
Narizinho.
— Disse que haviam descoberto uma bela
minhoca perto da porteira, mas que precisavam de ajutório para conduzi-la.
— Emília, você esta me bobeando! —
exclamou a menina desconfiada. — Vou ver, e se não for verdade você me paga.
Espere aí...
E disparou em direção da porteira.
Procura que procura, logo achou em certo ponto uma pobre minhoca corcoveando
com várias formiguinhas ferradas no seu lombo.
Teve vontade de libertar a
prisioneira, mas a curiosidade de ver o que aconteceria foi maior — e deixou a
triste minhoca entregue ao seu trágico destino.
Novas formiguinhas foram chegando, que
de um bote — zás!... ferravam a minhoca
sem dó. Não demorou muito e já eram mais de vinte. A minhoca bem que
espinoteou; por fim, exausta, foi moleando o corpo até que morreu bem morrida.
As formiguinhas então principiaram a arrastá-la para o formigueiro.
Que custo! A minhoca era das mais
gordas, pesando umas sete arrobas — arrobinhas de formiga, e além disso ia
enganchando pelo caminho em quanto pedregulho ou capim havia; mas as
carregadeiras sabiam dar volta a todos os embaraços.
Depois de meia hora de trabalheira
deram com a minhoca na boca do formigueiro. Aí, nova atrapalhação. Por mais que
experimentassem, não houve jeito de recolhê-la inteira. Nisto apareceu a
formiga mandona. Examinou o caso e deu ordem para que a picassem em vários
roletes.
Aquilo foi zás-trás! Em três tempos fez-se
o serviço e os roletes de carne foram levados para dentro.
— Sim, senhora! — exclamou a menina
depois de terminada a festa. — É o que se pode chamar um trabalho limpo! O demo
queira ser minhoca neste pomar...
— Bem feito! — disse Emília. — Quem a
mandou ser abelhuda?
Se estivesse com as outras lá dentro
da terra, que é o lugar das minhocas, nada lhe aconteceria. Macaco que muito
mexe quer chumbo, como diz tia Nastácia.
Isso, foi de dia. De noite a história
das formigas continuou.
Narizinho e Emília dormiam juntas na
mesma cama. A rede armada entre pés de cadeira fora abandonada desde que a
boneca aprendeu a falar. Dormiam juntas para conversar até que o sono viesse.
— Mas, Emília, como é que você entende
a linguagem das formigas? — perguntou Narizinho logo que se deitou.
A boneca refletiu um bocado e
respondeu:
— Entendo porque sou de pano.
Narizinho deu uma gargalhada.
— Isso não é resposta duma senhora
inteligente. O meu vestido também é de pano e não entende coisa nenhuma.
A boneca pensou outra vez.
— Então é porque sou de macela —
disse.
— Isso Também não é resposta. Este
travesseiro é de macela e entende as formigas tanto quanto eu.
— Então... então... engasgou Emília,
com o dedinho na testa. Então não sei. Era a primeira vez que Emília se
embaraçava numa resposta. Primeira e última. Nunca mais houve pergunta que a
atrapalhasse.
— Pois se não sabe, durma — disse a
menina, virando-se para a parede. Dormiram ambas.
Altas horas, estavam no mais gostoso
do sono quando bateram — toc, toc, toc...
— Quem é? — perguntou Narizinho
sentando-se na cama.
— Sou eu, Rabicó! — grunhiu o leitão
entreabrindo a porta com o focinho.
— Está aqui uma senhora ruiva que quer
entrar.
— Pois que entre! — ordenou a menina.
Rabicó escancarou a porta para dar passagem a uma formiga ruiva, de saiote
vermelho e avental de renda. Trazia na cabeça uma salva de prata, coberta com
guardanapo de papel.
— Que é que deseja? — indagou a menina
cheia de curiosidade.
— Quero entregar à senhora Condessa
este presente mandado pela rainha das formigas.
— Condessa? — repetiu Narizinho
franzindo a testa. – Que condessa, minha senhora?
— Condessa de Três Estrelinhas —
explicou a formiga.
— Hum! — fez a menina, lembrando-se de
que ela mesma havia “condessado” a boneca.
Voltou-se para Emília e deu-lhe uma
cotovelada.
— Acorde, pedra! É com Vossa
Excelência o negócio.
Emília sentou-se na cama.
Espreguiçou-se, tonta de sono. E julgando que ainda estivessem a conversar
sobre a linguagem das formigas, disse, num bocejo:
— Então é... é porque sou...
— Não se trata mais disso, idiota!
Está aí à procura duma tal condessa a criada duma tal rainha. Vamos! Acorde
duma vez!
Só então Emília acordou de verdade.
Viu a formiga com a salva e espichou os braços para receber o presente. Eram
croquetes, lindos croquetes tostadinhos.
A boneca sorriu de gosto e orgulho. A
rainha só se lembrara dela!
— Diga a Sua Majestade que a condessa
de Três Estrelinhas muito agradece o presente. Diga que os croquetes estão
lindos e que ela é uma grande cozinheira.
Narizinho disparou a rir gostosamente.
— Que ideia, condessa! Uma rainha lá
pode ser cozinheira?
Caindo em si, Emília viu que tinha
cometido uma coisa muito grave entre as pessoas de alta sociedade, chamada
“gafe”. E procurou corrigir-se.
— Isto é... diga que a cozinheira dela
é muito boa, entendeu? E diga também que os croquetes estão muito gostosos,
isto é... devem estar muito gostosos. Pode ir.
A criada fez um cumprimento de cabeça
antes de retirar-se, mas foi detida por um gesto da menina.
— Não vá ainda — disse ela. E
voltando-se para a Emília: — Presente, senhora condessa, paga-se com presente.
Mande à tal rainha uma perna daquele pernilongo que queimei com a vela antes de
deitar.
— É verdade! — exclamou a boneca. —
Não me custa nada e ela vai ficar contentíssima.
E pôs-se de gatinhas a procurar o
pernilongo assado. Achou-o, tirou-lhe uma perninha, enfeitou-a com um laço de
fita e, depois de embrulhá-la em papel de seda, colocou-a na salva, com um
cartão que dizia assim:
“À Sua Majestade a Rainha da Cintura
Fina, a humilde criada Condessa de Três Estrelinhas oferece este humilde
presente.”
— Leve este presente à rainha, sim? E
você, para distrair-se pelo caminho vá comendo este mocotó de pernilongo –
concluiu Emília, dando à criada um cambito de inseto.
A mensageira agradeceu, retirando-se
muito satisfeita da vida, com a salva na cabeça e o mocotó no ferrão.
Emília fechou a porta e veio examinar
os croquetes. Cheirou-os.
— Hum! Estão de fazer vir água à boca.
Quer provar um, Narizinho?
A menina torceu o nariz
desdenhosamente.
— Deus me livre! Juro que é croquete
de minhoca.
Percebendo que ela falava assim por
despeito, a boneca disse, para moê-la:
— Quem desdenha quer comprar...
— Só? Engraçadinha!... replicou a
menina com um grande ar de pouco caso. E vendo a boneca morder um dos
croquetes, com os maiores exageros do mundo, como se aquilo fosse um manjar do
céu, fez muxoxo de nojo.
— Está boa mesmo para casar com
Rabicó! Comer croquete de minhoca!
— Que seja de minhoca, que tem isso? —
retrucou Emília. Tanto faz carne de minhoca como de porco, vaca ou frango —
tudo é carne. E muito me admira que uma senhora que comeu ontem no jantar tripa
de porco, mostre essa cara de nojo por causa dum simples croquete de minhoca.
— Alto lá, senhora condessa
Minhoqueira! Porco é porco e minhoca é minhoca.
— É “por isso mesmo” que eu como
minhoca e não como porco! — replicou a boneca vitoriosa. — Não sou porcalhona.
A discussão foi por aí além. Enquanto
isso o senhor Rabicó farejou os croquetes, chegou-se de mansinho e, vendo-as
distraídas com a disputa, comeu-os todos de uma engolida só. Terminada a
discussão, quando a boneca, espichou o braço a fim de pegar um segundo
croquete...
— Que é dos croquetes? — gritou ela.
Nem sinal! Emília esperneou de ódio,
ao passo que Narizinho batia palmas de contentamento.
— Bem feito! Estava muito ganjenta,
não é? Pois tome!
— Quero os meus croquetes! Quero os
meus croquetes! — berrava Emília, batendo o pé num grande desespero.
— Se quer os seus croquetes, peça
contas a quem os tirou.
— Quem foi?
— Quem mais se não Rabicó? Vai ver que
está aqui pelo quarto, escondido debaixo da cama.
Emília deu busca e logo descobriu o
ladrão num canto, ressonando de papo cheio.
— Espere que te curo! — gritou ela, passando
a mão na vassoura. E pá! pá! pá!... desceu a lenha no lombo do gatuno, enquanto
Narizinho se rebolava na cama de tanto rir, pensando consigo: “Se antes de
casar é assim, imagine-se depois!”
Isso porque ela andava alimentando o
projeto de casar Emília com Rabicó.
CAPÍTULO 5: PEDRINHO
Chegou afinal o grande dia. Na véspera
viera para dona Benta uma carta de
Pedrinho que começava assim:
“Sigo para aí no dia 6. Mande à
estação o cavalo pangaré e não se esqueça do chicotinho de cabo de prata que deixei
pendurado atrás da porta do quarto de hóspedes. Narizinho sabe.
Quero que Narizinho me espere na
porteira do pasto, com a Emília no seu vestido novo e Rabicó de laço de fita na
cauda. E tia Nastácia que apronte um daqueles cafés com bolinhos de frigideira
que só ela sabe fazer.”
Em vista disso Narizinho levantou-se
muito cedo para preparar a recepção de acordo com as instruções da carta.
Enfiou em Emília o vestido novo de chita cor- de-rosa com pintinhas e enfeitou
Rabicó de duas fitas — uma ao pescoço e outra na ponta da cauda.
Pac,
pac, pac... Pedrinho
apareceu na porteira, trotando no pangaré, corado do sol e alegre como um
passarinho.
— Viva! — gritou a menina, correndo a
lhe segurar a rédea. — Apeie depressa, senhor doutor, que temos mil coisas a
conversar!
Pedrinho apeou-se, abraçou-a e não
resistiu à tentação de ali mesmo abrir o pacote dos presentes para tirar o
dela.
— Adivinhe o que trouxe para você! —
disse, escondendo atrás das costas um embrulho volumoso.
— Já sei — respondeu a menina incontinenti. — Uma boneca que chora e abre e fecha os olhos.
Pedrinho ficou desapontado, porque era
justamente o que havia trazido.
— Como adivinhou, Narizinho?
— Grande coisa! Adivinhei porque
conheço você. Fique sabendo, seu bobo, que as meninas são muito mais espertas
que os meninos...
— Mas não têm mais muque! — replicou
ele com orgulho, fazendo-a apalpar a dureza do seu bíceps que a ginástica
escolar havia desenvolvido. E concluiu: — Com este muque e a sua esperteza,
Narizinho, quero ver quem pode com a nossa vida!
Os presentes dos demais foram também
distribuídos ali mesmo. Rabicó teve uma fita nova, de seda — e os restos do
farnel que Pedrinho trouxera (e foi isso o que ele mais apreciou). Emília
recebeu um serviço de cozinha completo — fogãozinho de lata, panelas, e até um
rolo de folhear massa de pastel.
— E para vovó que é que trouxe? —
perguntou Narizinho.
— Adivinhe, já que é tão adivinhadeira — disse ele.
— Eu só adivinho quando é você mesmo
quem escolhe os presentes. Mas o presente de vovó aposto que não foi você quem
escolheu, foi tia Antonica...
Pela segunda vez Pedrinho abriu a
boca. Aquela prima, apesar de viver na roça, estava se tornando mais esperta do
que todas as meninas da cidade.
— Tem razão. É isso mesmo. O presente
de vovó quem o escolheu e comprou foi mamãe. Você precisa me ensinar o segredo
de adivinhar as coisas, Narizinho...
Nesse momento dona Benta apareceu na
varanda e Pedrinho correu a abraçá-la.
Dali a pouco estavam todos reunidos na
sala de jantar, ouvindo notícias e histórias da cidade. Tia Nastácia trouxe da
cozinha a gamela de massa, para não perder uma só palavra ao mesmo tempo que ia
enrolando os bolinhos. Súbito, uma brisa soprou mais forte e um ringido se fez
ouvir — nhem, nhim...
Pedrinho interrompeu a conversa, de
ouvido atento.
— O mastro de São João!... — murmurou
enlevado. – Quantas vezes no colégio me iludi com os ringidos das portas,
imaginando que era a bandeira do nosso mastro!... Como vai ele?
— Já desbotado pelas chuvas e com um
rasgão na bandeira bem em cima da cabeça do carneirinho — respondeu a menina.
O dia de São João era o grande dia de
festa no Sítio do Pica-pau Amarelo. Reuniam-se lá todas as crianças dos
arredores, para soltar bombinhas e pistolões e dançar em torno da fogueira.
Pedrinho jamais faltou a essa festa anual, como jamais deixou de queimar o
dedo.
Um ano em que não queimou o dedo ficou
muito admirado.
Nos últimos tempos era Pedrinho quem
pintava o mastro, caprichando em formar arabescos de todas as cores, cada ano
dum estilo diferente. Também era ele quem fornecia a bandeira com o retrato de
São João menino, de cruz ao ombro e cordeiro no braço.
Trazia-a da cidade, depois de
percorrer todas as casas de negócio a fim de comprar a mais bonita.
— Está bem — disse dona Benta logo que
soube das principais novidades. — Pode ir brincar com Narizinho, que tem um
mundo de coisas a contar.
Os dois primos dirigiram-se ao pomar
aos pinotes. Era lá, debaixo das velhas árvores que trocavam confidências e
planejavam as grandes aventuras pelo mundo das maravilhas.
O assunto do dia foi o extraordinário
caso da boneca.
— Parece incrível! — dizia Pedrinho. —
Quando recebi sua carta contando que Emília falava, não quis acreditar. Mas
hoje vejo que fala e fala muito bem. É espantoso!
— No começo — explicou Narizinho —
Emília falava muito atrapalhado e sem propósito. Agora já está melhor, mas,
mesmo assim, quando dá para falar asneiras ou teimar, ninguém pode com a
vidinha dela. Sabe que já é condessa?
— Sim? Condessa de quê?
— De Três Estrelinhas, nome que ela
mesma escolheu. Mas estou com vontade de mudar. Condessa é pouco. Emília merece
ser marquesa.
— Marquesa de Santos?
— Não. Marquesa de Rabicó.
— É verdade!... Podemos fazer de
Rabicó um marquês e casar Emília com ele!
— Isso mesmo. Tenho pensado muito
nesse arranjo e até já o propus à Emília.
— E ela aceitou?
— Emília é muito vaidosa e cheia de
si. Mas eu sei lidar com ela. Quando chegar a ocasião darei um jeito.
Terminado o assunto Emília, começou o
assunto Reino das Águas Claras. Narizinho contou a série inteira daquelas
maravilhosas aventuras, despertando em Pedrinho um desejo louco de também
conhecer o príncipe-rei. De nada se admirou, conforme o seu costume. Tanto ele
como Narizinho achavam tudo tão natural! Só estranhou que o Pequeno Polegar
tivesse fugido da sua historinha.
— Isso, sim, não deixa de me intrigar
— disse ele. — Se Polegar fugiu é que a história está embolorada. Se a história
está embolorada, temos de botá-la fora e compor outra. Há muito tempo que ando
com esta ideia — fazer todos os personagens fugirem das velhas histórias para
virem aqui combinar conosco outras aventuras. Que lindo, não?
— Nem fale, Pedrinho! — exclamou a
menina pensativa. — O que eu não daria para brincar neste sítio com a menina da
Capinha Vermelha ou Branca de Neve...
— Eu só queria pilhar cá o Aladino da
lâmpada maravilhosa, para tirar a prosa dele! — ajuntou Pedrinho que voltara da
cidade com fumaças de valentia.
— E eu só queria Capinha. Tenho tanta
simpatia por essa menina... Aqueles bolos que ela costumava levar para a vovó
que o lobo comeu — que vontade de comer um daqueles bolos...
Uma voz conhecida veio interrompê-los:
— Narizinho! Pedrinho! O café está na
mesa.
— Duvido que fossem melhores que os de
tia Nastácia! — disse o menino erguendo-se.
E dispararam para casa.
CAPÍTULO 6: A VIAGEM
Deitaram-se bem tarde naquela noite.
Tanta coisa tinha o menino a contar, coisas da casa da dona Antonica e da
escola, que somente às onze horas foram para a cama. Que sono regalado! Isto é,
regalado até uma certa hora. Daí por diante houve coisa grossa.
Narizinho estava justamente no meio
dum lindo sonho quando despertou de sobressalto, com umas pancadinhas de
chicote na vidraça — pen, pen, pen... E logo em seguida ouviu a voz do marquês
de Rabicó, que dizia:
— O sol não tarda, Narizinho. Pule da
cama que são horas de partir. Chegando à janela, viu o marquês montado num
cavalinho de pau à sua espera.
— E a condessa? Já está pronta? —
perguntou a menina.
— A senhora condessa já está lá
embaixo, corcoveando no cavalo Pampa.
— Pois então que me selem o pangaré.
Em três tempos me visto.
Enquanto por ordem do marquês selavam
o cavalo pangaré, a menina punha o seu vestido vermelho de bolso. Precisava de
bolso para levar os bolinhos de tia Nastácia sobrados da véspera e também para
trazer coisas do reino das Abelhas.
Porque era para o reino das Abelhas
que eles iam, a convite da rainha. Reino das Abelhas ou das Vespas? Não havia
certeza ainda.
Na véspera chegara um maribondo
mensageiro com um convite assim:
Sua Majestade a Rainha das... dá a honra de
convidar vocês todos para uma visita ao seu reino.
Como o papelzinho estivesse rasgado
num ponto, havia dúvida se o convite era da rainha das Vespas ou da rainha das
Abelhas.
Narizinho respondeu ao convite por
meio dum borboletograma.
Não sabem o que é? Invenção da Emília.
Como não houvesse telégrafo para lá, a boneca teve a ideia de mandar a resposta
escrita em asas de borboleta. Agarrou uma borboleta azul que ia passando e
rabiscou-lhe na asa, com um espinho, o seguinte:
“Narizinho, a Condessa e o Marquês
agradecem a honra do convite e prometem não faltar.”
— Por que não incluiu o nome de
Pedrinho, Emília? — perguntou a menina.
— Porque ele não é nobre — nem barão
ainda é!... Pronto que foi o borboletograma, surgiu uma dificuldade. A quem
endereçá-lo? À rainha das Vespas ou à das Abelhas?
— Já resolvo o caso — disse Emília, e
soltou a borboleta com estas palavras: “Vá direitinha, hein? Nada de
distrair-se com flores pelo caminho.”
— Ir para onde? — perguntou a
borboleta.
— Para a casa de seu sogro, ouviu?
Malcriada! Atrever-se a fazer perguntas a uma condessa!
— Mas... — ia dizendo humildemente a
borboleta. Emília, porém, interrompeu-a com um berro.
— Ponha-se daqui para fora! Não admito
observações. Conheça o seu lugar, ouviu?
A borboleta lá se foi, amedrontada e
desapontadíssima.
— Você parece louca, Emília! —
observou Narizinho. – Como há de ela saber o endereço se você não deu endereço
algum?
— Sabe, sim! — retorquiu a boneca. —
São umas sabidíssimas as senhoras borboletas. Se sabem fabricar pó azul para as
asas, que é coisa dificílima, como não hão de saber o endereço dum
borboletograma?
Narizinho fez cara de quem diz:
“Ninguém pode entender como funciona a cabeça da Emília! Ora raciocina muito
bem, tal qual gente. Outras vezes, é assim — tão torto que deixa uma pessoa
trapalhada...”
O cavalo pangaré veio, a menina montou
e lá partiram todos pela estrada afora — pac,
pac, pac... Em certo ponto Narizinho disse à boneca:
— Vamos apostar corrida? Emília
aceitou, muito assanhada.
— Pois toque, então!
Emília — lept,
lept! chicoteou o cavalinho pampa, disparando numa galopada louca.
Narizinho, porém, não se moveu do lugar. O que queria era ficar só com o
marquês de Rabicó para uma conversa reservada — o casamento dele com a
condessa.
— Mas afinal de contas, marquês, quer
ou não quer casar-se com a condessa?
— Já declarei que sim, isto é, que casarei, se o dote for bom. Se me derem, por exemplo, dois cargueiros de milho, casarei com quem quiserem — com a cadeira, com o pote d’água, com a vassoura. Nunca fui exigente em matéria matrimonial.
— Guloso! Pois olhe que vai fazer um
casamentão! Emília é feia, não nego, mas muito boa dona de casa. Sabe fazer
tudo, até fios de ovos, que é o doce mais difícil. Pena ser tão fraquinha...
— Fraca? — exclamou o marquês
admirado. — Não me parece. Tão gorda que está...
— Engano seu. Emília, desde que caiu
n’água e quase se afogou, parece ter ficado desarranjada do fígado. E aquela
gordura não é banha, não, é macela! Emília o que está é estufada. Inda a semana
passada tia Nastácia a recheou de mais macela.
O marquês pensou lá consigo: “Que pena
não a ter recheado de fubá!” mas não teve coragem de o dizer em voz alta,
limitando-se a exclamar:
— Pois pensei que fosse toucinho e do
bom!...
— Que esperança! Toucinho do bom está
aqui, disse a menina apalpando-lhe o lombo. — Dos tais que dão um torresminho
delicioso! — e lambeu os beiços, já com água na boca. Felizmente o dia de Ano
Bom está próximo!...
Dia de Ano Bom era dia de leitão
assado no sítio, mas Rabicó não sabia disso.
— Dia de Ano Bom? — repetiu ele sem
nada compreender.
— Que tem isso com o meu toucinho?
— Nada! É cá uma coisa que sei e não é
da sua conta — respondeu a menina piscando o olho.
E assim, nessa prosa, alcançaram a
condessa, que estava lá adiante, furiosa com o logro.
— Não achei graça nenhuma! — foi
dizendo Emília logo que a menina chegou. — Nem parece coisa duma princesa
(Emília só a tratava de princesa nas brigas).
— Pois eu, Emília, estou achando uma
graça extraordinária na sua zanguinha! Sua cara está que é ver aquele bule
velho de chá, com esse bico...
Mais zangada ainda, Emília mostrou-lhe
a língua e dando uma chicotada no cavalinho tocou para a frente, resmungando
alto:
— Princesa!... Princesa que ainda toma
palmadas de dona Benta e leva pitos da negra beiçuda! E tira ouro do nariz...
Antipatia!...
Calúnias puras. Narizinho nem tomava
palmadas, nem levava pitos, nem tirava ouro do nariz. Emília, sim...
CAPÍTULO 7: O ASSALTO
Nisto o mato farfalhou à beira da
estrada. Os cavalinhos se assustaram e empinaram.
— A quadrilha Chupa-Ovo! — gritou
Emília aterrorizada, erguendo os braços como no cinema. Narizinho também
empalideceu e procurou instintivamente agarrar-se ao marquês de Rabicó. Mas o
marquês já havia pulado no chão e sumido...
— A bolsa ou a vida! — intimou o chefe
da quadrilha apontando o trabuco. Narizinho a tremer, olhou para ele e franziu
a testa. “Eu conheço esta cara!” — pensou consigo. “É Tom Mix, o grande herói
do cinema!... Mas quem havia de dizer que esse famoso cowboy tão simpático,
havia de acabar assim, feito chefe duma quadrilha de lagartos?...”
— A bolsa ou a vida! — repetiu Tom
Mix, carrancudo.
— Bolsa não temos, senhor Tom Mix —
disse a menina – mas tenho aqui uns bolinhos muito gostosos. Aceita um?
O bandido tomou um bolo e provou.
— Não gosto de bolo amanhecido! —
respondeu cuspindo de lado. Quero ouro de verdade!
Assim que ele falou em ouro, Narizinho
teve uma ideia de gênio.
— Perfeitamente, senhor Tom Mix. Vou
dar-lhe um montinho de ouro puro, do bem amarelo. Mas há de prometer-me uma
porção de coisas...
— Prometo tudo quanto quiser —
retrucou o bandido, já mais amável com a ideia do montinho de ouro.
— Então passe para cá o seu alforje e
mais uma tesourinha.
Sem nada compreender daquilo, Tom Mix
foi dando o que ela pedia.
Narizinho, então, chamou Emília de
parte e cochichou-lhe ao ouvido qualquer coisa.
A boneca não gostou, pois bateu o pé,
exclamando:
— Nunca! Antes morrer!...
Tanto Narizinho insistiu, porém, que
Emília acabou cedendo, entre soluços e suspiros de desespero. Depois, erguendo
a saia até os joelhos, espichou uma das pernas sobre o colo da menina. Esta,
muito séria, como quem faz operação da mais alta importância, desfez-lhe a
costura da barriga da perna e despejou toda a macela do recheio no alforje de
Tom Mix. Em seguida ergueu-se e disse-lhe:
— Aqui tem o seu alforje cheio de
ouro-macela!
— Muito bem — respondeu o bandido com
os olhos a faiscarem de cobiça.
— A menina está agora livre e tem em
mim de hoje em diante o mais dedicado servidor. Nos momentos de perigo basta
gritar; “Mix, Mix, Mix!” que aparecerei incontinenti para salvá-la.
Cumprimentou-a com o chapelão de abas
largas e retirou-se, seguido dos seus lagartos.
Ao vê-los sumirem-se ao longe,
Narizinho criou alma nova.
— Ufa! — exclamou. — Escapamos de boa!
Continuemos a nossa viagem, Emília — e tratou de montar novamente. Um, dois,
três — upa! Montou. Emília também — um, dois, três... e nada! Não conseguiu
montar.
— Ai! — gemeu sacudindo a perninha
saqueada. — Não posso andar, nem montar com esta perna vazia!...
Apesar do triste da situação, Narizinho espremeu uma risadinha.
— Malvada! — exclamou Emília chorosa.
— Salvei-a da morte à custa da minha pobre perna e em paga você ri-se de mim...
— Perdoe, Emília! Reconheço que me
salvou, mas se soubesse como está cômica com essa perna vazia... O melhor é vir
comigo na garupa do pangaré, bem agarradinha. Dê cá a mão. Upa!
Com alguma dificuldade conseguiu
acomodá-la na garupa do cavalinho, recomendando-lhe que se segurasse muito bem,
pois tinha de ir a galope.
— Sossegue, Narizinho, que daqui nem
torquês me arranca! — respondeu Emília. A menina estalou o chicote e o pangaré
partiu na galopada erguendo nuvens de pó — pá-lá-lá,
pá-lá-lá! De repente:
— Que fim levou o marquês? —
interrogou Emília olhando para trás. Narizinho deteve o cavalo.
— É verdade!... Aquele poltrão
comportou-se de tal maneira que a coisa não pode ficar assim. Hei de vingar-me
— e é já, quer ver?
Voltando-se para o mato gritou: Mix, Mix, Mix! Imediatamente Tom Mix
surgiu diante dela.
— Amigo Tom Mix — disse Narizinho —
fui covardemente traída pelo senhor marquês de Rabicó, um poltrão que ao
ver-nos em perigo só cuidou de si, fugindo com quantas pernas tinha. Quero ser
vingada sem demora, está entendendo?
— Sereis vingada, ó gentil princesa! —
disse Tom Mix estendendo a mão como quem faz um juramento. — Mas de que forma
quereis ser vingada, ó gentil princesa?
Narizinho respondeu depois de pensar
alguns instantes:
— Minha vingança tem de ser esta:
quero amanhã ao almoço comer virado de feijão com torresmo, mas torresmo de
marquês, está ouvindo?
— Vossa vontade será satisfeita, ó
gentil princesa! — disse o bandido, curvando-se com a mão no peito e
desaparecendo.
— Coitado do Rabicó! — exclamou Emília
compungida.
— Coitado nada! Rabicó precisa levar
uma boa esfrega. Dou-lhe uma lição que vai servir para toda a vida. Nunca mais
cairá noutra...
CAPÍTULO 8: TOM MIX
Assim que deixou a menina, Tom Mix
voltou ao lugar do assalto, a fim de orientar-se na pista de Rabicó. Descobriu
logo os rastos dele na terra úmida e os foi seguindo até à floresta. Lá se
guiou pelas ervinhas amassadas e outros sinais que na fuga ele fora deixando. E
andou, andou, andou até que de repente ouviu um ruído suspeito.
— É ele! — pensou Tom Mix agachando-se
— e, pé ante pé, sem fazer o menor barulhinho, aproximou-se do lugar donde
partia o ruído suspeito. Espiou. Lá estava o marquês, rom, rom, rom, de cabeça
enfiada dentro duma abóbora muito grande, tão entretido em devorá-la que não
deu pela presença do terrível vingador.
Tom Mix foi chegando, foi chegando e,
de repente...
— Nhoc!
— agarrou o marquês por uma perna.
— Coin! coin! coin! — grunhiu o ilustre fidalgo.
— Peço perdão a Vossa Excelência —
disse Tom Mix com ironia — mas estou cumprindo ordens da senhora princesa do
Narizinho Arrebitado.
— Que é que Narizinho quer de mim? —
gemeu Rabicó desconfiado.
— Pouca coisa — respondeu o vingador.
— Apenas uns torresminhos para enfeitar um tutu de feijão amanhã...
— Coin!
coin! coin! — gemeu o marquês compreendendo tudo.
E foi com bagas de suor frio no
focinho que implorou: “Tenha dó de mim, senhor bandido! Tenha piedade de mim,
que lhe darei esta abóbora e ainda outra maior que escondi lá adiante...”
Tom Mix parece que não gostava de
abóbora. Limitou-se a puxar pela faca e a passá-la sobre o couro da bota, como
que a afiando. Percebendo que estava perdido, Rabicó teve uma ideia.
— Senhor bandido, poderá prestar-me um
obséquio?
— Diga o que é — respondeu Tom Mix calmamente, sempre a afiar a faca.
— Quero que me conceda cinco minutos
de vida. Preciso fazer o testamento e confiar minhas últimas palavras a essa
libelinha que vai passando.
Tom Mix concedeu-lhe os cinco minutos.
Rabicó chamou a libelinha.
— Amiga, darei a você um lindo lago
azul onde possa voar a vida inteira, se me fizer um pequeno favor.
— Diga o que é — respondeu a
libelinha, vindo pousar diante dele.
— É levar uma carta à princesa
Narizinho, que deve estar no reino das Abelhas.
— Com muito prazer.
Rabicó fez a carta depressa e
entregou-lha. A libelinha tomou-a no ferrão e zzzit! lá se foi, veloz como o pensamento. Mal a viu partir, deu
Rabicó um suspiro de alívio, murmurando em voz alta:
“Coragem, Rabicó, teu dia não chegará
tão cedo!”
— Que é que está grunhindo aí, senhor
marquês? – perguntou o carrasco. Rabicó disfarçou.
— Estou pensando na sua valentia,
senhor Tom Mix. Está assim prosa porque deu comigo, que sou um pobre
coitadinho. Queria ver a sua cara, se Lampião aparecesse por aqui com os seus
cinquenta cangaceiros!
— Lá tenho medo de lampiões ou
lamparinas? O marquês não me conhece. Diga-me: costuma ir ao cinema?
— Nunca. Mas sei o que é.
— Se não conhece o cinema, não pode
fazer ideia do meu formidável heroísmo! Não há uma só fita em que eu seja
derrotado, seja lá por quem for. Venço sempre! Sou um danado!...
Rabicó olhou-o com o rabo dos olhos,
pensando lá consigo:
“Grandíssimo fiteiro é o que você é.”
Pensou só, nada disse. Aquela faca embargava-lhe a voz...
CAPÍTULO 9: AS MULETAS DO BESOURO
Enquanto Rabicó suava o suor da morte
nas unhas de Tom Mix, Narizinho e Emília chegavam ao palácio das Colméias,
donde vários zangões saíram a recebê-las com gentis rapapés.
— Salve, princesinha do Narizinho
Arrebitado! – exclamaram eles, curvando-se.
— Obrigada! — respondeu a menina,
dando-lhes a mão a beijar. — Recebi um convite da rainha, mas estou na dúvida
se foi da rainha das Abelhas ou da rainha das Vespas. Portei aqui para saber...
— O convite foi da rainha das Abelhas
— declarou um dos zangões. Fui eu mesmo quem o redigiu. A rainha das Vespas
anda furiosa com a menina por ter matado uma das suas súditas.
— Vê, Emília, de que escapamos? —
cochichou Narizinho. Se tivéssemos errado o caminho e ido parar na terra das
Vespas, com certeza nas matavam a ferroadas... E voltando-se para os zangões:
— Permitam-me, senhores que vos
apresente a senhora condessa de Três Estrelinhas. Esta ilustre dama foi vítima
dum desastre no caminho e não consegue andar sem encosto. Poderá algum dos
senhores arranjar-lhe um par de muletas?
— Podemos, sim, mas antes deverá
consultar o grande médico que por acaso se acha aqui, vindo do reino das Águas
Claras.
— O doutor Caramujo está aqui? —
exclamou a menina muito alegre. — Conheço-o muito! Chamem-no depressa.
Os zangões partiram rápidos,
regressando instantes depois em companhia do doutor Caramujo, o qual,
reconhecendo a menina e a boneca, saudou-as respeitosamente.
Depois arrumou os óculos para examinar
a perna de Emília.
— É grave! — exclamou. — A senhora
condessa está sofrendo duma anemia macelar no pernil barrigoide esquerdo. Caso
muito sério.
— E que receita, doutor? Pílula de
sapo outra vez? — indagou a menina.
— Esta doença — explicou o grande
médico — só pode sarar com um regime de superalimentação local.
— Alimentação macelar, eu sei — disse
a menina rindo-se da ciência do doutor. — Tia Nastácia sabe aplicar esse
remédio muito bem.
Em dois minutos, com um bocado de
macela e uma agulha com linha ela cura Emília para o resto da vida.
— Tia Nastácia! — exclamou o médico
escandalizado. – Com certeza é alguma curandeira vulgar! Macela! Alguma mezinha
vulgar também! Oh, santa ignorância! Admira-me ver uma princesa tão ilustre
desprezar assim a ciência de um verdadeiro discípulo de Hipócrates e entregar a
condessa aos cuidados duma reles curandeira!...
— Reles curandeira? — exclamou a
menina indignada. – Chama então Nastácia de reles curandeira? Se tem algum amor
à casca, retire-se, senhor cascudo, antes que eu faça o que fiz para a tal dona
Carochinha. Reles curandeira! Já viu Emília, um desaforo maior?
O doutor Caramujo meteu o rabo entre
as pernas e sumiu-se.
Narizinho estava ainda a comentar o
desaforo quando os zangões que tinham saído em procura das muletas apareceram.
— Aqui no palácio não há muletas,
senhora princesa, mas aí fora costuma andar um besouro manco que possui duas.
Quer ir até lá conosco?
Narizinho foi. Três esquinas adiante
encontraram o besouro mendigo, de chapéu na mão à espera de esmolas.
A menina já lhe ia oferecendo um
pedacinho de bolo quando o mendigo perguntou:
— Não me reconhece mais?
— Sim!... Estou reconhecendo!... Não
foi você que lá na beira do ribeirão esteve passeando pela minha cara e me
arrancou um feixinho de fios da sobrancelha?
— Isso mesmo! — confirmou o besouro. —
Por sinal que por causa daquele espirro levei um tombo de mau jeito e fiquei
aleijado para o resto da vida.
Pesarosa da sua desgraça, Narizinho
pô-lo no bolso, dizendo:
— Fique quietinho aí e divirta-se com
esses bolos. Vou levá-lo para o sítio de vovó, onde poderá viver uma vida
sossegada sem ser preciso tirar esmolas.
Depois, tomando suas muletinhas,
deu-as à boneca.
— Arrume-se nisso depressa, senhora condessa
da Perna Vazia, que a hora da audiência está próxima.
E, precedidas pelos zangões, as duas
de novo entraram no palácio.
CAPÍTULO 10: SAUDADES
Já estava cheio o palácio, não só de
personagens do reino das Abelhas como de muitos outros reinos, inclusive o das
Águas Claras.
Narizinho correu os olhos em procura
dalgum conhecido. Viu logo o Major Agarra.
— Viva, Major! — exclamou,
dirigindo-se a ele alegremente. — Como vão todos por lá?
Antes de dar notícias, o sapo
demonstrou mais uma vez a sua gratidão pelo que a menina lhe havia feito,
desculpando-se também de não ter aparecido no sítio de dona Benta, como
prometera. Depois contou que o príncipe andava cada vez mais taciturno.
— Não se casou ainda?
— Nem casa. Tem recusado a mão das
mais belas princesas do reino. Todos dizem que ele sofre de paixão recolhida.
Ama alguém que não faz caso dele, é isso.
O coração da menina palpitou mais
apressado.
— Não dizem por lá quem é essa que ele
ama?
— Dona Aranha Costureira sabe quem é,
mas guarda muito bem guardado o segredo. É uma senhora muito discreta.
— E o bobinho da corte, aquele tal
gigante Fura-Bolos?
— Nunca mais foi visto. Com certeza
teve o mesmo fim do Carlito Pirulito...
Narizinho refletiu uns instantes.
Depois:
— Olhe, não se esqueça, quando voltar,
de dizer ao príncipe que me viu aqui e que vou bem, obrigada. Diga-lhe também
que qualquer dia receberá um convite para vir com toda a sua corte passar umas
horas comigo no sítio de vovó, sim?
O Major prometeu não se esquecer do
recado. E ia dizer mais alguma coisa, quando a entrada duma libelinha
mensageira o interrompeu.
— Salve, princesa! — exclamou ela.
— Viva! — correspondeu a menina
franzindo os sobrolhos.
— Traz alguma mensagem para mim?
— Trago uma carta dum ilustre marquês.
Ei-la.
Narizinho tomou a carta e leu:
Pesso-vos-lhe
perdão da minha covardia. Tom Mix está aqui amolando a faca pra me matar. Tenha
dó deste infeliz, que se assina, com perdão da palavra, criado brigado
— O estilo, a letra, a ortografia e a
gramática é tudo dele! Este bilhete corresponde a um perfeito retrato de Rabicó
— ou Rabico, sem acento, como ele assina. Grandíssimo patife!
E voltando-se para a libelinha:
— Onde está ele?
— No capoeirão dos Tucanos Vermelhos,
lá na terra dos lagartões. Prometeu-me um lindo lago azul em paga do meu
trabalho de trazer esta carta.
Narizinho não pôde deixar de sorrir,
pensando lá consigo: “Sempre o mesmo! Onde Rabicó já viu lago azul?” Mas não
quis desiludir a mensageira, visto precisar dos seus serviços para a resposta.
Rabiscou um bilhetinho a galope.
— Leve este bilhete a Tom Mix, mas
depressa hein? E quando quiser aparecer lá pelo sítio de vovó, não faça
cerimônia, ouviu? Vá, vá!...
A libelinha vibrou as asas e zuct! desapareceu. Voou rápida como o
pensamento. Chegou ao capoeirão dos Tucanos Vermelhos no instante em que os
cinco minutos concedidos a Rabicó iam chegando ao fim e o carrasco lhe dizia,
erguendo a faca:
— Está findo o prazo. Chegou a sua
hora, marquês!
Mas Tom Mix teve de interromper o
serviço. A libelinha sentara-se justamente na ponta do seu nariz, com o bilhete
no ferrão.
Percebendo-o, Tom Mix tomou o bilhete
e leu. Era ordem de perdão a Rabicó.
— Tem muita sorte o senhor marquês! —
disse ele, enfiando a faca na bainha. — A princesa perdoa o seu crime e comuta
a pena de morte nesta outra mais leve — e pregou-lhe um formidável pontapé.
— Uf!
— exclamou Rábico depois que se viu livre do perigo. — Escapei de boa! Pontapé
dum bruto destes não é nada agradável, mas mesmo assim deve ser mil vezes
preferível às suas facadas...
Depois indagou, voltando-se para a
mensageira:
— Onde está a princesa?
— No reino das Abelhas.
— E a condessa?
— Também lá, num canto, muito jururu
nas suas muletas.
— Muletas? — repetiu Rabicó sem nada
compreender. — Será que caiu do cavalo?
— Não sei, não tive tempo de indagar.
Rabicó permaneceu pensativo por alguns
instantes. Depois disse:
— Está direito. Pode ir. Passe bem,
muito obrigado. A mensageira franziu o nariz.
— E o meu lago azul?
Rabicó, que tinha muito má memória
para as suas promessas, fez cara de surpresa.
— Lago? Que lago?
— O lago azul que me prometeu em troca
de levar a carta...
— Ah, sim... Mas menina, para que quer
você um lago e logo um lago azul? Eu prometi um lago, é verdade, mas refletindo
melhor vi que é um presente muito perigoso, pois você pode vir a morrer
afogada. Em vista disso achei melhor substituir esse lago por esta sementinha
de abóbora. Tome!
A libelinha ficou furiosa.
— Muito agradecida, senhor. Trato é
trato. Faço questão do meu lago azul! O marquês coçou a cabeça, embaraçado,
lançando olhares gulosos para a abóbora que estivera comendo quando Tom Mix
apareceu.
— Vamos deixar o caso para ser
decidido amanhã — disse por fim. Agora não posso; tenho muito serviço. Imagine
que Tom Mix me condenou a comer esta abóbora inteirinha — a mim, um marquês que
está acostumado a só comer bombons e presuntos...
CAPÍTULO 11: A RAINHA
Enquanto isso se passava no capoeirão
dos Tucanos Vermelhos, lá no palácio das Abelhas a menina dizia ao ouvido da
boneca:
— Já reparou, Emília, como é bem
arrumado este reino? Uma verdadeira maravilha de ordem, economia e
inteligência! Estive no quarto das crianças. Que gracinha! Cada qual no seu
berço de cera, com pernas e braços cruzados, todas tão alvas, dormindo aquele
sono gostoso... O que admiro é como as abelhas sabem aproveitar tudo de modo
que a colmeia funcione como se fosse um relógio. Ah, se no nosso reino também
fosse assim... Aqui não há pobres nem ricos. Não se vê um aleijado, um cego, um
tuberculoso. Todos trabalham, felizes e contentes.
— Isso não! — contestou a boneca. — O
besouro é aleijado e pede esmolas.
— Besouro não é abelha, boba. Estou
falando das abelhas.
— E quem manda aqui? Quem é o
delegado? – perguntou Emília.
— Ninguém manda — e é isso o mais
curioso. — Ninguém manda e todos obedecem.
— Não pode ser! — exclamou a boneca. —
Quem manda há de ser a rainha. Vou perguntar, e chamou uma abelha que ia
passando.
— Faça o favor, senhora abelhinha, de
nos dar uma informação. Quem é, afinal de contas, que manda neste reino? A
rainha?”
— Não senhora! — respondeu a abelha. —
Nós não temos governo, porque não precisamos de governo. Cada qual nasce com o
governo dentro de si, sabendo perfeitamente o que deve e o que não deve fazer.
Nesse ponto somos perfeitas.
Narizinho ficou admirada daquelas ideias,
e viu que era assim mesmo. “Que pena que também não seja assim na humanidade!”
— De manhã saímos todas — continuou a
abelha — cada uma para o seu lado, a fim de recolher o mel das flores e o
pólen. É disso que nos alimentamos. Depois guardamos o mel nos favos. Se há
consertos a fazer, qualquer uma de nós os faz sem que seja preciso ordem. Se a
menina passasse uns tempos aqui havia de gostar tanto que depois não mais se
ajeitaria no reino dos homens.
— Mas a rainha? — perguntou a menina.
— Estou cansada de esperar pela hora de conhecer essa grande dama. Deve ser
linda, linda!...
A abelha continuou:
— Pensa que a nossa rainha é alguma
dama emproada como as rainhas dos homens? Nada disso. Nem rainha é! Os homens é
que lhe chamam assim. Para nós não passa de mãe. Todas somos filhinhas dela —
todas, todas! E rodeamo-la de comodidades e carinhos, sem nunca lhe darmos o
menor desgosto. Olhe, menina, lá no reino dos homens costumam falar muito em
felicidade, mas fique certa de que felicidade só aqui. Cada uma de nós é feliz
porque todas somos felizes. Lá não sei como pode alguém ser feliz sabendo que
há tantos infelizes em redor de si!
Narizinho e Emília ficaram tristes.
Que pena serem gente e não poderem transformar-se em abelhas para morar numa
colmeia daquelas, toda a vida ocupadas num trabalhão tão lindo como esse de
recolher o mel e o pólen das flores...
— Mas a rainha, a rainha! — insistiu a
menina. — Quero ser apresentada à rainha!
— Pois vamos lá — respondeu a abelha.
— Sigam-me.
Foram. Depois de atravessarem vários
compartimentos, chegaram aos cômodos reais. Lá estava Sua Majestade num trono
de cera, conversando com vários zangões emproados e orgulhosos (pelo menos
assim pareceu à menina).
— Bem-vinda seja! — saudou a rainha numa doce voz maternal. — Tem gostado da nossa colmeia?
— Muito, Majestade! É o reino mais bem
arrumadinho de quantos vi até agora. Estou positivamente encantada!
— O meu reino é assim — explicou a
rainha — porque não é reino nenhum, mas uma grande família onde a boa mãe geral
vive rodeada de todos os seus filhos. Já percorreu a colmeia inteira?
— Já vi parte e tenho gostado de tudo,
menos da cara desses senhores zangões, que me parecem emproados e orgulhosos...
— É que estão a me fazer a corte.
Todos os anos escolho um dentre eles para marido, e os outros...
— Já sei! Os outros casam-se com as
outras abelhas. A rainha sorriu.
— Não, menina! Os outros são
condenados à morte e executados...
— Quê? — exclamou Narizinho
horrorizada. — Acho que isso constitui uma crueldade, verdadeira mancha negra
na organização das abelhas.
— Parece, menina. Mas é o jeito. Como
não sabem trabalhar e a natureza os fez unicamente para serem esposos da
rainha, as abelhas não têm a menor consideração com eles depois que a rainha
elege um para esposo. Trucidam-nos e lançam os cadáveres para fora da colmeia.
Estas minhas filhas acham que o sentimentalismo não dá bom resultado em matéria
de organização social.
Narizinho, cada vez mais admirada da
inteligência da rainha, murmurou ao ouvido da boneca: “Vê, Emília? Isto é que é
falar bem! Até parece aquele filósofo que vovó às vezes lê, o tal Rou...
Rousseau, creio.”
Nisto um trrriin, trrriin, de esporas ressoou perto. Voltaram-se todos. Era
Tom Mix que entrava. O cowboy correu os olhos pela sala. Logo que deu com a
menina, dirigiu-se para ela.
— Recebi o recado, princesa, e aqui
estou às vossas ordens!
— Que fim levou o marquês? — perguntou
a menina com ansiedade, pois nada sabia do que se passara. — Está vivo ainda
ou...
— Vivíssimo, senhora princesa! A estas
horas já deve de estar atacando a segunda abóbora...
— Muito bem! — exclamou Narizinho,
aliviada dum grande peso. — Quero agora, senhor Tom Mix, que me arranje uns
burrinhos de carga para levar um pouco de mel e cera para vovó.
Tom Mix retirou-se para cumprir a
ordem, enquanto a menina se dirigia de novo à rainha.
— Senhora rainha, poderá Vossa
Majestade dar ordem à sua cozinheira para me oferecer um tostão de mel?
— Darei o mel e a cera que quiser —
respondeu a rainha sorrindo; — quanto ao tostão, guarde-o para você, que aqui
entre nós não tem o menor valor o dinheiro dos homens. Ali, naquela sala dos
favos, é o depósito de mel. Vá lá e tire quanto quiser.
A menina agradeceu a gentileza e
retirou-se para a tal sala com a boneca. Tudo tão bem arrumado! Potinhos de
cera cheios de mel em quantidade, todos iguais, com tampinhas também de cera.
— Querem mel? — perguntou logo uma
abelha de avental muito limpa que tomava conta daquela repartição.
— Queremos, sim, senhora! Mel e cera.
— De que qualidade?
— Há de muitas qualidades?
— Temos aqui mel de flores de
laranjeira, mel de flores de jabuticabeira lá do sítio de dona Benta e temos o
mel mil-flores, colhido de todas as flores do campo.
— Dê-me de flores de jabuticabeira —
resolveu logo Narizinho.
— E também um quilinho de cera bem
branca, para tia Nastácia.
— Quem leva é aqui a sua criada? —
perguntou a abelha indicando a boneca, enquanto fazia os pacotes.
Emília abespinhou-se toda, já
vermelhinha de cólera. Mas a menina salvou a situação.
— Esta senhora não é minha criada e
sim a Excelentíssima Senhora Condessa da Perna Vazia, futura Marquesa de
Rabicó.
A abelhinha pediu mil desculpas, e
ainda estava pedindo desculpas quando a entrada de Tom Mix à frente duma tropa
de grilos arreados de cangalhas e ancorotes próprios para conduzir mel a
interrompeu. Tom descarregou os ancorotes e esperou que a abelha meleira os
enchesse. Depois os colocou de novo sobre as cangalhas e pediu instruções.
— Espere-me no portão do palácio com
os cavalinhos prontos que também já vamos — ordenou-lhe a menina.
CAPÍTULO 12: A VOLTA
Estavam todos prontos para a volta,
exceto Emília. Narizinho refletia sobre o seu caso. Por fim pediu a opinião de
Tom Mix sobre o melhor meio de a levar.
-Acho que temos de pôr a senhora
condessa dentro dum dos ancorotes de mel.
— Que disparate, Tom! Emília ficaria
toda melada!...
— Sim, mas há um vazio — respondeu
ele. — Creio que ali irá mais comodamente do que na garupa do cavalinho
pangaré.
Emília fez cara feia e protestou. O
meio de sossegá-la foi permitir-lhe seguir na frente do bando, para que pudesse
“ir vendo as coisas antes dos outros”. Estava nascendo nela aquele espírito
interesseiro que a ia tornar célebre nos anais da ciganagem.
Puseram-se em marcha. Meia légua
adiante Emília pôs-se de pé dentro do barrilzinho e gritou:
— Estou vendo uma coisa esquisita lá
na frente! Um monstro com cabeça de porco e “peses” de tartaruga!
Todos olharam, verificando que Emília
tinha razão. Era um monstro dos mais estranhos que possa alguém imaginar. Tom
Mix puxou da faca e avançou, dizendo a Narizinho que não se mexesse dali.
Chegando mais perto percebeu o que era.
— Não é monstro nenhum, princesa!
Trata-se do senhor marquês montado num pobre jabuti! Vem metendo o chicote no
coitado, sem dó nem piedade.
E assim era. Rabicó dava de rijo no
pobre jabuti e ainda por cima o descompunha.
— Caminha, estupor! Caminha depressa,
se não te pico de espora até a alma! — gritava ele.
Narizinho ficou indignada com aquilo.
Era demais! Vendo-a assim, Tom Mix puxou do revólver e disse:
— Se quer, apeio aquele maroto com uma
bala!
— Não é necessário — respondeu ela. —
Eu mesma lhe darei uma boa lição. Deixe o caso comigo.
Nisto o marquês alcançou o grupo, e já
estava armando cara alegre de sem-vergonha, quando a menina o encarou, de
carranca fechada.
— Desça já do pobre jabuti, seu
grandíssimo...
Muito espantado daquela recepção,
Rabicó foi descendo, todo encolhido.
— E para castigo — continuou a Menina
— quem agora vai montar é o senhor jabuti. Vamos, senhor jabuti! Arreie o
marquês e monte e meta-lhe a espora sem dó!
O jabuti assim fez, e sossegadamente,
porque jabuti não se apressa em caso nenhum, botou os arreios no leitão, apertou
o mais que pôde a barrigueira, montou muito devagar e lept! lept! fincou-lhe o chicote como quem surra burro bravo.
— Coin!
coin! coin! — berrava o pobre marquês.
— Espora nele, jabuti! — gritava a
boneca. — Espora nesse guloso que me comeu os croquetes!
— E também uma boas lambadas por minha
conta! — murmurou uma voz fina no ar.
Todos ergueram os olhos. Era a
libelinha enganada, que ia passando, veloz como um relâmpago.
O caso foi que naquele dia Rabicó
perdeu pelo menos um quilo de peso e pagou pelo menos metade dos seus
pecados...
Depois desse incidente puseram-se de
novo em marcha, só parando numa figueira de boa sombra, já pertinho do sítio.
— Ponto de almoço! — gritou Narizinho,
que estava com uma fome tirana. Desde que saíra de casa só comera os bolinhos
trazidos.
Apearam-se. Estenderam no chão uma
toalhinha. Tom Mix abriu dois barriletes de mel. Narizinho remexeu no bolso a
ver se ainda encontrava algum pedaço de bolo. Não encontrou nem o besouro.
Tinha fugido, o ingrato! Puseram-se a manducar mel puro, único alimento que
havia.
No melhor da festa — tzzsiu! um passarinho cantou na árvore
próxima. A menina ergueu os olhos: era um tiziu.
— Emília — disse ela intrigada — não
acha aquele tiziu com um certo ar de Pedrinho?
— Muito! E querem ver que é ele mesmo?
— Pedrinho! Pedrinho! Venha cá,
Pedrinho! — gritou a menina, aflita.
— Então que é isso, Pedrinho? Deixo
você em casa feito gente e o venho encontrar virado em ave!...
— Assim é — disse ele. — Todos viramos
aves lá em casa.
— Como? Explique isso! — gritou
Narizinho ansiosa.
— Pois apareceu por lá uma velha
coroca, de porrete na mão e cesta no braço. “Menino”, disse-me ela, “é aqui a
casa onde moram duas velhas dugudeias em companhia duma menina de nariz
arrebitado, muito malcriada?” Furioso com a pergunta, respondi: “Não é da sua
conta. Siga seu caminho que é o melhor”. “Ah, é assim”? exclamou ela. “Espere
que te curo”! E virou a mim em passarinho, virou vovó em tartaruga e tia
Nastácia em galinha preta...
— Que horror! — foi o grito que
escapou de Narizinho. — Que vai ser de nós agora? Já sei quem é essa velha! Não
pode ser outra! Bem ela me disse que havia de vingar-se...
— Que foi que aconteceu, princesa? —
indagou Tom Mix, já de mão no revólver.
— Não sei, Tom, se desta vez nos
poderá valer! Você é invencível, mas só de igual para igual. Contra uma bruxa
feiticeira, não sei... não sei... e contou o que havia acontecido.
— Deixe tudo por minha conta,
princesa, e não duvide da minha arte de resolver situações complicadas. Siga
viagem que eu vou dar volta pelos arredores a fim de apanhar essa velha. Juro
que hei de trazê-la bem segura, para que desfaça o mal que fez...
— Os anjos digam amém! — suspirou
Narizinho mais animada. E dando rédeas ao cavalo pangaré tocou para o sítio com
o tiziu ainda pousado no ombro.
Que tristeza! Mal Narizinho apeou no
terreiro e já ouviu uma galinha cacarejar lá dentro.
— É tia Nastácia, coitada! — suspirou
com o coração apertado.
Entrou. Na sala de jantar viu sentada
na rede, costurando, uma tartaruga de óculos.
— Vovó! — gritou a menina com desespero. — Não me conhece mais vovó? A tartaruga, quieta, quieta...
— Veja, Emília, que desgraça! — gritou
Narizinho em lágrimas.
Vovó é aquele bicho cascudo que está
na rede! Nastácia é aquela horrenda galinha preta que mais parece urubu...
Emília olhou, olhou e também rompeu em
choro, abraçando-se com a menina.
— A única esperança que nos resta é
Tom Mix – disse Narizinho. — Mas este caso é tão estranho que receio que nem
ele possa nos salvar...
Passaram-se dois dias. Narizinho,
inconsolável, não podia conformar-se com a ideia da sua querida avó
tartarugando na rede, nem de tia Nastácia volta e meia botando um ovo na
cozinha.
— Sossegue, Narizinho. Tom Mix é um
danado. De repente reaparece e conserta tudo, como no cinema — dizia a boneca
para a consolar.
— Mas está demorando tanto, Emília!...
— Dois dias só. Você sabe que a conta
para tudo é três...
Chegou afinal o terceiro dia. As duas
amiguinhas, postadas à janela desde cedo, espiavam os horizontes, ansiosas. Nem
uma poeira se erguia! Narizinho suspirou.
— Qual, Emília! Está tudo perdido...
Se a velha tem o poder de virar os outros em bicho, também pode virar-se a si
própria em pedra, árvore, tronco seco — e como há de Tom Mix saber?
— Paciência, Narizinho! Vai ver que de
repente ele brota por aí com a velha na ponta da faca...
Palavras não eram ditas e um
cachorrinho latiu no terreiro.
— Deve ser ele! — gritou Emília
correndo para a porta.
E era mesmo. Era Tom Mix que voltava
com dois revólveres apontando e a velha à frente, de braços erguidos.
— É agora! — berrou o cowboy no ouvido
da bruxa. – Vais desfazer o mal que fizeste, se não te como os fígados, já
neste momento...
Horrorizada com a feiura da velha,
Narizinho fechou os olhos.
Depois criou coragem e os foi abrindo
devagarinho. E viu... sabem quem? Viu tia Nastácia a olhar para ela e a dizer:
— Acorde menina! Parece que está com
pesadelo...
— E vovó? — perguntou.
— Lá dentro, costurando.
— E Pedrinho?
— Fazendo uma arapuca no quintal.
— E... e Tom Mix?
— Deixe de bobagens e venha tomar o seu café que já está esfriando — rematou tia Nastácia.
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