PELE DE URSO
— Em que poderemos empregar-te? Em nada nos
poderias ser útil! Trata de te arrumar algures.
Ao pobre soldado só ficara a espingarda;
pô-la ao ombro, e resolveu correr mundo. Depressa chegou a uma charneca, onde
vegetava um número de árvores muito limitado. Sentou-se cabisbaixo à sombra e
começou a matutar na triste situação a que se via reduzido.
— Estou sem dinheiro — pensou — só conheço o
ofício das armas, e agora que estão feitas as pazes, este ofício de nada me
pode servir, e o meu fim é morrer de fome.
De repente, ouviu um ruído; voltou-se e viu,
defronte de si, um desconhecido, com um casaco verde; estava vestido com esmero,
mas tinha pés-de-cabra.
— Eu sei o que te falta — disse-lhe o
estranho personagem — Conceder-te-ei tantas riquezas quantas queiras, mas é
necessário que não sejas medroso, pois nesse caso não estou para tentar
fortuna.
— Soldado e medo são coisas que não se casam
— respondeu o rapaz — Podes tentar.
— Nesse caso, olha para traz! — tornou o
diabo feito homem.
O soldado olhou e viu um enorme urso que
avançava para ele urrando.
— Ah! ele é isso?! Espera lá que já te vais
calar de vez! — e o soldado assim falando apontou e fez fogo tão certeiro que a
bala entrou no focinho do pesado animal que caiu redondo, sem um gemido.
— Está provado que não te falta coragem!
Falta ainda outra condição para o contrato.
— Desde o momento em que não seja coisa alguma
contraria à minha saúde, estou disposto a tudo o que quiseres.
— A condição é esta: durante sete anos não te
lavarás, nem farás a barba, nem te pentearás, nem cortarás as unhas e, por
último, nem rezarás. Se te agrada a proposta, dou-te um fato e um manto que não
tirarás senão ao cabo desses sete anos. Se morreres entretanto, cairás em meu
poder; se, pelo contrário, viveres muito tempo, conquistarás a liberdade e
serás rico o resto de teus dias.
O soldado refletiu no perigo que corria, mas,
como várias vezes havia afrontado a morte, decidiu-se a arriscar a vida na
empresa, e aceitou o alvitre. O diabo despiu o casaco verde, que fez vestir ao
soldado, acrescentando:
— Desde que vistas este casaco não te há de
faltar dinheiro; mete a mão na algibeira e verás que te não minto.
Dito isto tirou a pele ao urso morto e
presenteou com ela o soldado a quem disse:
— Este é que é o teu manto; servir-te-á de
cama, porque não te é permitido deitar-te sob lençóis. Como consequência deste
nosso contrato todos te chamarão "Pele de urso".
Ao terminar a indicação, o demo sumiu-se.
O soldado vestiu o casaco, meteu a mão à
algibeira e achou o que o estupendo personagem lhe dissera; em seguida,
envolvendo-se na pele de urso, pôs-se a caminho, mostrando-se sempre e em toda
a parte bondoso e esmoler. O primeiro ano correu bem, mas ao segundo ano já era
um monstro; o cabelo tapava-lhe os olhos completamente; a barba parecia um
grosseiro bocado de feltro; os dedos afuselavam-se em garras e o rosto estava
tão sujo que se houvesse semeado nele qualquer planta, esta não deixaria de se
desenvolver. A sua presença afugentava toda a gente; como, porém, por todos os
lugares em que passava, ele distribuía esmolas aos pobres, pedindo-lhes que
orassem por ele, a fim de que não morresse antes de sete anos, e como usava
pagar depressa e bem, nunca ficara ao relento, e tinha sempre quem lhe desse
dormida.
No meado do quarto ano, chegou a uma
estalagem, mas o estalajadeiro recusou-se a dar-lhe gasalhado; este homem nem
mesmo consentiu que o estranho hóspede fosse dormir para a estrebaria, receoso
de que a presença de semelhante exemplar da espécie humana lhe espantasse os
cavalos. Contudo Pele de urso meteu a mão na algibeira, tirando um
punhado de dinheiro, e o estalajadeiro à vista do diabólico imã curvou-se à
imperiosa ambição e consentiu que o estranho viandante ficasse num péssimo
quarto interior, e ainda sob condição de que não se mostraria a pessoa alguma,
temendo sempre que a casa, por aquele dever de hospitalidade, perdesse os créditos.
Enquanto Pele de urso, sentado sozinho no
humilde casinholo, pensava tristemente na lentidão dos anos que ainda tinha a
passar sob aqueles medonhos trajes, ouviu queixumes e suspiros que partiam de
um quarto próximo. Como era dotado de bom coração — e sem se lembrar do pedido
do hospedeiro — abriu a porta e viu um velho que chorava a bom chorar e que,
dolorosamente, punha as mãos na cabeça. Pele de urso acercou-se do
companheiro de estalagem que se ergueu subitamente querendo fugir. Ao ouvir,
porém, a voz da estranha criatura, serenou, e a sua conversa amável fê-lo
animar a confiar-lhe as mágoas que o afligiam. Os seus recursos iam diminuindo
a olhos vistos; as filhas e ele estavam sujeitos a sofrer as maiores privações,
e tão pobre era que não podia pagar hospedagem ao estalajadeiro, razão pela
qual o iam prender.
Se outro não é o vosso cuidado, consolai-vos
— disse Pele de urso ao ouvir a narrativa do velho — A mim
não me falta dinheiro.
Chamou o estalajadeiro e pagou-lhe tudo o que
o velho lhe devia, entregando a este uma bolsa recheadinha de ouro.
Quando o velho se viu tão facilmente livre de
apoquentações, não teve palavras para exprimir o seu grande reconhecimento; ao
cabo de algum tempo, disse a Pele de urso:
— Siga-me; as três filhas que possuo são
perfeitas maravilhas de beleza; autorizo-o a escolher uma para mulher. Assim
que souberem da boa-ação que praticou em meu favor, serão as primeiras a aceder
ao meu desejo. Realmente, o seu aspecto é esquisito e pouco atraente, mas a que
escolher saberá disfarçar a primeira impressão que é, decerto, desagradável.
A proposta agradou a Pele de urso, que de muito boamente
acompanhou o velho. Apesar de afastados de casa, a primeira filha ao vê-lo
fugiu, transida de medo, aos gritos. A segunda — valha a verdade — não fugiu
senão depois de o ter bem examinado dos pés à cabeça.
— Como posso eu aceitar por marido um ser que
não tem aspecto humano? Marido por marido, então antes preferia o urso pardo
que ultimamente se pelas ruas, que dava ares de homem, vestindo um rico manto e
de luvas calçadas! Era feio, mas facilmente me habituaria a vê-lo.
Quando coube a vez da mais novinha esta
disse:
— Meu pai, este homem deve ter um bom
coração, pois que dúvida alguma teve em livrá-lo de apuros; se, para lhe provar
a gratidão de que está possuído para com ele, lhe prometeu noiva, não se dirá
que a sua palavra se não cumpre.
Que alegria não transpareceria no rosto do
pobre soldado, se não estivesse tão velado pelo cabelo! O seu coração rejubilou
ao ouvir as boas palavras da linda moça! Tirou do dedo um anel que trazia,
partiu-o em duas metades e deu uma das partes à rapariga, tendo antes disso o
cuidado de escrever o nome na parte que deu à prometida e o dela na metade com
que ficou. Feito isto, despediu-se dos seus novos conhecimentos, dizendo-lhes:
— Tenho ainda de correr mundo durante três
anos; se voltar ao cabo desse tempo casamos; se não tornar, a sua palavra está
desligada do compromisso, pois é prova segura de que morri; rogue a Deus para
que me conserve a vida.
A infeliz namorada vestiu-se toda de negro, e
sempre que se lembrava do seu prometido as lágrimas corriam-lhe abundantes. As
irmãs não se cansavam de a motejar e escarnecer.
— Acautela-te ao estenderes-lhe a mão, não vá
ele dar-te a pata! — dizia-lhe a mais velha.
— Sê prudente, pois os ursos são traiçoeiros,
e ainda que lhe agradasses, pode muito bem ser que depois te devore! — fazia
coro a segunda irmã.
— Tens de fazer-lhe todas as vontades, senão
dá urros! — tornava a primeira.
E acrescentava a do meio:
— Sim, sim... e olha que a cerimônia deve ser
bem divertida, pois os ursos dançam alegremente.
A pobre criatura conservava-se alheia aos
motejos que lhe não faziam diminuir o sentimento que nutria pelo benfeitor de
seu pai. Entretanto Pele de urso, percorrendo vários lugares, continuava
praticando o bem e semeando dinheiro a rodo em esmolas, na esperança de que os
mendigos rogariam por ele. Chegou finalmente o último dia dos sete anos de
caminheiro.
Tomou o caminho da charneca e foi sentar-se
no mesmo sítio em que se havia sentado sete anos antes. Pouco tempo esteve só,
pois que, segundos depois, sentiu soprar o vento e viu na sua frente o diabo
olhando-o tristemente; em seguida restituiu ao viandante o seu antigo traje,
recebendo em troca o casaco verde que lhe cedera.
— Não te apresses — disse Pele de urso — primeiro tens
que me arranjar convenientemente.
Se a lembrança agradou ou não ao demo é coisa
que não podemos averiguar, mas o que é certo é que, com vontade ou sem ela, não
teve outro remédio senão ir buscar água, lavar Pele de urso, cortar-lhe o cabelo e
as unhas, penteá-lo e fazer-lhe a barba. Limpo e arranjado, Pele de urso voltou ao seu
aspecto de soldado valente; nunca fora tão formoso.
Assim que se viu livre do diabólico
personagem de uma vez para sempre, o herói do nosso conto sentiu-se leve que
nem uma pena. Rápido se encaminhou para uma povoação próxima, comprou uma
andaina de veludo, sentou-se numa elegante carruagem puxada a duas parelhas de
cavalos brancos, e deu ordem ao cocheiro para se dirigir a casa da noiva.
Pessoa alguma o reconheceu; e o futuro sogro, imaginando-o um alto personagem,
fê-lo entrar para o gabinete em que permaneciam as filhas. Convidou-o a
sentar-se entre as mais velhas que tiveram o cuidado de oferecer-lhe vinhos
generosos, doces dos mais finos, enfim fizeram tudo o que puderam para lhe
agradar, e dizendo em segredo, entre si, que nunca tinham contemplado
personagem tão perfeito. Contudo a noiva, coberta de luto, permanecia sentada
defronte dele; não erguia os olhos nem dizia palavra. Por fim, o desconhecido —
para nós bem conhecido — pedindo ao velho se consentia ser esposo de uma das
filhas, as duas mais velhas levantaram se como se mola as impelisse, e foram
paramentar-se com os mais ricos vestidos que possuíam, pois qualquer delas
estava crente de que era sobre si que incidia a escolha do desconhecido
personagem. Ora, este apenas se viu só com a futura, tirou da algibeira metade
do anel que conservara preciosamente, meteu-a num cálice que encheu de vinho generoso,
apresentando-o à fiel menina que o aceitou e, depois de o beber, notou no fundo
a metade do anel; sentiu pulsar o seu coração; tomou a outra metade que trazia
pendente de um colar que lhe envolvia o pescoço, aproximou as duas e viu que se
ajustavam perfeitamente. Por então o rapaz disse:
— Sou o teu noivo, o noivo que há três anos
viste coberto com uma pele de urso, mas graças a Deus recobrei a minha forma
primitiva.
Ao concluir, apertou-a nos braços, e beijou-a
na testa. Nessa ocasião, entraram as duas irmãs muito tafulas nos seus
vestidos, e ao verem que o personagem já estava comprometido com a mais moça, é
que se lembraram de que não podia ser outro senão Pele de urso, de quem tão pouco
haviam feito. Ficaram tão corridas de vergonha e de invejoso ciúme que fugiram
do gabinete: uma deitou-se a um poço, e a outra enforcou-se na primeira árvore
que encontrou.
À noite bateram à porta; o noivo foi abri-la
e reconheceu pelo casaco verde o diabo que lhe disse:
— Fiquei sem a tua alma, é certo, mas em compensação
apareceram-me duas!
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Fonte:
Tradução de Henrique Marques Júnior: "Pérolas e
Diamantes". Irmãos Grimm (1908).
Pesquisa a adequação ortográfica: Iba
Mendes Editor Digital. São Paulo, 2021.
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