domingo, 12 de dezembro de 2021

Os três cabelos de ouro do Diabo (Contos de Fadas), de Irmãos Grimm

 

OS TRÊS CABELOS DE OURO DO DIABO
 

Era uma vez uma pobre mulherzinha que deu à luz um filho, e como ele tivesse nascido num fole, não tinha ainda visto a luz do dia, e já prediziam que aos quatorze anos casaria com a princesa. Pouco tempo depois apareceu na aldeia, vindo incógnito, o rei, que, perguntando que novas havia, ouvira dizer:

— Não há muitos dias nasceu um rapazinho num fole, o que indica vir a ser muito feliz, demais que já lhe auguraram casamento com a princesa, quando chegasse aos quatorze anos.

O rei— que não tinha bom fundo — ficara agastado com a previdência; pediu para lhe indicarem a morada dos pais do rapaz, para onde se dirigiu com sorrisos. Em seguida falou assim:

— Sois pobres, por isso peço que me confieis o rapaz, a quem arranjarei um bom futuro.

Os pais, a princípio, recusaram semelhante proposta; mas o desconhecido ofereceu-lhes uma grossa maquia em ouro; lembrando-se eles da predição de que, tendo nascido num fole, nada de mau lhe podia acontecer, resolveram aceitar, separando-se do filho.

Assim que dali saiu, o monarca meteu o rapazinho numa caixa, que amarrou à sela do cavalo e continuou sua derrota. Não tardou a encontrar um ribeiro, com certa fundura, para onde atirou a caixa, exclamando:

— E assim livro minha filha de casar com tão desgraçado pretendente!

Mas o mais curioso é que a caixa não naufragou, bem pelo contrário singrou o rio ao sabor da corrente como se fora um barquinho, sem que uma só gota d'água lhe entrasse dentro. A caixa correu à tona d'água a uma distância de duas milhas da cidade; aí encontrou um obstáculo: as rodas de um moinho, onde encalhou. Um moço de moleiro, que por casualidade se encontrava a curtos passos dali, viu-a e rebocou-a com uma fateixa, crente de que encontraria uma riqueza. Abriu-a, pressuroso, mas a riqueza apareceu-lhe na figura de um menino esperto e risonho. Levou-o aos amos que, como não tinham filhos, bem contentes ficaram com o achado, e disseram em coro:

— É Deus que no-lo envia!

Por conseguinte, tomaram-no à sua conta e educaram na prática das boas ações o orfãozinho. Passados anos, o soberano, fugindo a um temporal, refugiou-se certa tarde em casa do moleiro, a quem perguntou se o rapaz que tinha ali era seu filho.

— Não — responderam o moleiro e a mulher. — É um menino abandonado, que há quatorze anos veio trazido pela corrente dentro de uma caixa até à calha do moinho; o moço, que estava perto, puxou-a e trouxe-a para terra.

A estas declarações, o rei percebeu logo que o rapaz não podia ser outro senão o menino que nascera num fole, e tanto que perguntou:

— Digam-me: este rapaz não podia ir fazer-me um recado, levar uma carta à rainha minha mulher? Dou-lhe duas moedas de ouro por este pequeno trabalho.

— Quando vossa majestade quiser! — redarguiram de pronto moleiro e moleira.

Em seguida mandaram pôr a postos o rapaz.

O rei, entretanto, dirigia esta carta à rainha: 

“Apenas o rapaz, portador desta, aí chegue, dá-te pressa em mandá-lo matar e enterrá-lo em seguida; o resto será resolvido no meu regresso.”

O mocinho partiu com a carta e chegou pela noite a uma grande mata; por entre a escuridão avistou uma luzinha. Seguiu nessa direção e depressa parou perto de uma cabana. Entrou e viu sentada uma velha, sozinha, ao pé de uma lareira. Ao ver o rapaz ficou tranzida de medo, e gritou:

— De onde vens e para onde vais?

— Venho do moinho — respondeu — e vou ao palácio levar uma carta à rainha; como, porém, me perdi na mata, muito grato me seria passar aqui a noite.

— Infeliz criatura! — redarguiu a velha. — Vieste ter a uma caverna de salteadores, que, se aqui te encontram, são muito capazes de te darem cabo da pele!

— Venha quem vier, de nada me arreceio; estou bastante fatigado para que possa continuar a jornada.

Ditas estas palavras, sentou-se num banco e adormeceu.

Daí a pouco apareceram os salteadores que perguntaram irritados quem era aquele intruso.

— Ora — retorquiu a velha — é um pobre moço que se perdeu na mata e a quem recolhi por dó; foi encarregado de levar uma carta à rainha.

Os salteadores apoderaram-se da carta, partiram-lhe o sinete e leram, vendo pelo conteúdo que, apenas chegasse, o portador seria executado. Esta circunstância tão mal os impressionou que o capitão da quadrilha rasgou-a e escreveu outra em que dizia que apenas o portador chegasse lhe fizessem o casamento com a princesa.

Feito isto, deixaram-no dormir sossegadamente no banco até o dia seguinte; quando acordou, restituíram-lhe a carta e indicaram-lhe a estrada real.

Entretanto, a rainha apenas leu a carta, que passara como escrita pelo rei, ordenou grandes festas para o casamento da filha com o rapaz nascido num fole. Como este era perfeito, amorável e dotado de bom coração, a princesa vivia feliz e satisfeita.

Passado tempo, o soberano regressou ao palácio, e, com grande espanto seu, viu que a predição se realizara do rapaz nascido num fole, casar com a princesa.

— Como foi isto arranjado? — perguntou à rainha. — Havia dado outra ordem na minha carta!

A rainha apressou-se a mostrar-lhe a carta a fim de se certificar do que havia escrito. O rei leu-a, e viu que fora trocada. Perguntou ao rapaz o que havia feito da carta que lhe confiara, e como é que havia trazido outra.

— Não sei! — respondeu o rapaz. Só se me foi roubada na noite que passei na mata; aproveitando-se do meu sono.

O rei tornou irritado:

— Não me serve essa desculpa, e tanto que minha filha não te pertence, enquanto me não trouxeres do inferno três cabelos de ouro da cabeça do diabo; satisfeita esta condição, restituo-te a princesa.

O soberano, falando assim, cuidava que ficaria livre dele de uma vez para sempre. Como resposta, o rapaz nascido num fole disse ao rei:

— De boa vontade aceito a sua proposta de trazer os três cabelos de ouro, tanto mais que não me arreceio do diabo!

Ditas que foram estas palavras, despediu-se e pôs-se a caminho.

Esta estrada ia ter a uma cidade, às portas da qual estava uma sentinela que lhe perguntou em que ele poderia ser-lhe útil e o que é que sabia.

— Sei tudo — respondeu o rapaz nascido num fole.

— Nesse caso, podes-nos indicar com facilidade a razão porque a fonte do mercado de onde corria vinho, hoje não deita nem uma gota d'água?

— Depois o direi— respondeu o nosso viandante. — Espere que eu volte.

Em seguida, continuou o seu caminho até chegar às portas de outra cidade. A sentinela, que estava no seu posto, perguntou-lhe igualmente em que é que ele podia tornar-se útil e o que é que sabia.

— Sei tudo...

— Por conseguinte, só tu nos podes prestar um grande serviço em nos dizer qual o motivo porque a árvore da praça, que antigamente nos dava maçãs de ouro, hoje nem sequer folhas apresenta.

— Quando voltar darei explicação — respondeu.

E lá foi andando, andando até que chegou a um largo rio que precisava atravessar. O barqueiro, que estava próximo, perguntou-lhe também em que é que ele lhe poderia ser prestável e o que é que sabia.

— Sei tudo! — retorquiu o viageiro nosso conhecido.

— Pois tu é que estás nas melhores condições para me dizer qual a causa porque é que ando a remar neste barquinho de um lado para o outro sem que possa livrar-me deste encargo.

— Dir-to-ei à volta — respondeu.

Assim que se viu na margem oposta, reparou logo na boca do inferno. Estava escuro, e chegava-lhe ao nariz o cheiro da fuligem. O diabo não estava em casa. Só lá estava a mãe, sentada numa larga poltrona que perguntou ao arrojado mocinho:

— Que queres tu daqui? — e olhava-o com certo ar de simpatia.

— Queria possuir três cabelos de ouro da cabeça do diabo, pois que se não os consigo, fico sem a minha noiva.

— É querer muito — retorquiu a velha — porque se o diabo entra e te vê aqui, não ganhas para o susto; mas tenho pena de ti e por isso te auxilio.

Quando acabou de falar, transformou-o numa formiga e aconselhou-o:

— Mete-te numa das pregas da saia, pois estás seguro do perigo.

— Está bem, mas eu desejava três respostas a três perguntas: qual a razão porque uma fonte que antigamente deitava vinho, agora nem uma gota d'água deita; porque é que uma árvore que dantes dava maçãs de ouro, agora nem folhas tem; e, finalmente, qual o motivo porque um pobre barqueiro tem de remar de uma banda para a outra, sem que se substitua.

— São problemas com certa dificuldade de solução, mas ouve com atenção e não dês palavra; escuta com cuidado as respostas que hão de coincidir com o arranque dos três cabelos de ouro.

Ao anoitecer, voltou o diabo. Ainda bem não tinha posto o seu pé-de-cabra dentro do inferno, e já notava um certo cheiro que lhe era estranho.

— Cheira-me a carne humana — dizia ele fungando. — Alguma coisa há aqui que não é costume!

E pôs-se a esquadrinhar por todos os cantos, mas nada encontrou. A mãe, então, ralhando-lhe, disse:

— Ainda agora arrumei a casa e andas tu a pôr tudo em polvorosa; não tens outro cheiro que não seja o de carne humana! Anda daí, senta-te e come, que o teu mal é fome!

Depois de ter comido e bebido bem, sentiu-se cansado, colocou a cabeça no regaço da mãe, a quem pediu para o embalar. Não tardou a adormecer, roncando que nem um porco e assobiando como uma locomotiva. A velha aproveitou esse ensejo para lhe arrancar um cabelo de ouro.

— Ai! — fez o diabo — que faz mãe?

— Ora, deixa-me cá: tive um sonho terrível, e por isso é que te arrepelei.

— Com que sonhou então?

— Sonhei que uma fonte que antigamente dava vinho, agora nem água deita. Por que será?

— Se soubesse! — respondeu o demo. — Debaixo de uma pedra vive um sapo; assim que o matem, a fonte continuará a deitar vinho.

A velha tornou a embalá-lo e daí a pouco Satã ressonava e assobiava em alto ruído, e com tal força que até as vidraças estremeciam. A velha, vendo-o assim, arrancou-lhe o segundo cabelo.

— Ui! — gritou sobressaltado o rei dos infernos — que pesadelo foi esse mãe?

— Não te apoquentes, filho, foi um outro sonho que tive.

— E de que constava ele? — interrogou Belzebu.

— De uma árvore que antes produzia maçãs de ouro e que atualmente está despida de folhas. Qual a razão do caso?

— Ora, é bem simples! tornou o demônio. É um rato que rói a raiz.

Matem-no que a árvore continuará a dar maçãs de ouro; do contrário, o rato continuará na sua obra de destruição e a árvore definhará. Mas deixe-me sossegado com sonhos; se me torna a acordar, não tenho outro remédio senão faltar-lhe ao respeito.

A velhota ameigou-o com boas palavras, e continuou acalentando-o, até que o viu de novo ferrado no sono; então, arrancou-lhe o terceiro cabelo. O diabo deu um pulo, soltou um grito e ia-se zangando deveras com a mãe, mas esta cortou-lhe os ímpetos, dizendo:

— Oh, filho, quem é que é superior aos sonhos!

— Que sonho foi esse para assim me despertar! Decerto é muito curioso!

— Sonhei que um barqueiro se lastima bastante em andar de uma banda para outra sem que seja substituído.

— Porque é um asno chapado! — exclamou Satanás — Ao primeiro passageiro que lhe peça para atravessar a margem, não tem mais do que entregar-lhe os remos e pirar-se!...

Agora a velha, que já tinha arrancado os três cabelos de ouro e que tinha na mão a chave dos três enigmas propostos, deixou em paz o diabo, que dormiu a sono solto até madrugada.

Logo que o demônio saiu dos lares, a velha pegou na formiga, deu de novo figura de gente ao rapaz nascido num fole, e disse-lhe:

— Aqui tens os três cabelos de ouro; quanto às respostas dadas pelo diabo às perguntas que formulaste, creio que as ouviste.

— Certamente que as ouvi e não me esquecem.

— E assim alcançaste o que querias — continuou a boa velha. — Agora podes tornar para de onde vieste.

O mocinho agradeceu muito o auxílio que a velha lhe havia prestado e saiu do inferno bem contente por haver conseguido os seus fins. Assim que chegou perto do barqueiro, este lembrou-lhe logo o cumprimento da promessa que lhe fizera.

Mas o rapazito, que era bastante sagaz, respondeu:

— Conduze-me à outra margem, que então te direi o que hás de fazer para te veres livre daqui.

Logo que pôs o pé na outra margem, o rapaz cumpriu a palavra:

— Apenas se apresente um novo passageiro para que o ponhas na outra margem, entrega-lhe os remos e safa-te.

Seguiu a sua rota, e depressa chegou às portas da cidade, onde existia a árvore estéril; a sentinela aguardava o rapaz para que não se esquecesse do prometimento.

— Matem o rato que rói a raiz da árvore, se querem ver a árvore carregadinha de maçãs de ouro — aconselhou o moço.

A sentinela, grata com a resposta, compensou-o com dois burros carregados de ouro. Para encurtarmos razões, o rapaz nascido num fole depressa alcançou as portas da cidade, onde havia a fonte que estava sequinha. Aqui, repetiu também à sentinela as palavras do diabo:

— Debaixo de uma pedra está um sapo; assim que o matarem, continuará a fonte a dar vinho abundantemente.

A sentinela agradeceu muito e, em paga, deu-lhe também dois burros carregados de ouro.

O rapaz nascido num fole estava, dali a pouco, em presença da noiva, a quem abraçou, e que ficou contente em tornar a vê-lo. Foi levar ao rei os três cabelos de ouro do diabo; e o soberano, ao ver os quatro burros carregados de ouro, demonstrou claramente a sua alegria, dizendo:

— Agora que satisfizeste todas as condições, tens minha filha por tua mulher. Mas dize-me, meu caro genro, como é que arranjaste todo esse ouro?

— Atravessei um rio, cuja margem é de ouro, em vez de areia. Foi aí que o apanhei.

— É muito difícil fazer igual colheita? — perguntou o monarca, cujos olhos cintilavam de cobiça.

— É facílimo tomar tanto quanto se deseje — continuou o rapaz nascido num fole. — Há um barqueiro próximo; peça-lhe que o conduza à outra margem, e desta maneira pode trazer os sacos que quiser cheios de ouro.

O monarca, mordido pela ambição, depressa se pôs em marcha. Chegado à margem do rio pediu ao barqueiro para o levar à outra margem. O barqueiro apressadamente disse ao rei para entrar no barco, e assim que chegaram ao outro lado do rio, o barqueiro entregou-lhe os remos e saltou lesto para terra.

— E ainda lá está o rei feito barqueiro? — perguntarão os meus amáveis e gentis leitorzinhos.

— Está e estará até que expie, por completo todas as suas culpas.

 

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Fonte:
Tradução de Henrique Marques Júnior: "Pérolas e Diamantes". Irmãos Grimm (1908).
Pesquisa a adequação ortográfica: Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2021.

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