CAPÍTULO 1: EM FÉRIAS
Quando naquela tarde Pedrinho voltou da escola e disse à Dona Tonica que as
férias iam começar dali uma semana, a boa senhora perguntou:
— E onde quer passar as férias deste
ano, meu filho? O menino riu-se.
— Que pergunta, mamãe! Pois onde mais,
se não no sítio de vovó.
Pedrinho não podia compreender férias
passadas em outro lugar que não fosse no Sítio do Picapau
Amarelo, em companhia de Narizinho, do Marquês de Rabicó, do Visconde de
Sabugosa e da Emília. E tinha de ser assim mesmo, porque Dona Benta era a
melhor das vovós; Narizinho, a mais galante das primas; Emília, a mais
maluquinha de todas as bonecas; o Marquês de Rabicó, o mais rabicó de todos os
marqueses; e o Visconde de Sabugosa, o mais "cômodo" de todos os viscondes.
E havia ainda tia Nastácia, a melhor quituteira deste e de todos os mundos que
existem. Quem comia uma vez os seus bolinhos de polvilho, não podia nem sequer
sentir o cheiro de bolos feitos por outras cozinheiras.
Pedrinho tinha recebido carta de sua
prima, dizendo: "Nosso grupo vai este ano completar século e meio de idade
e é preciso que você não deixe de vir pelas férias a fim de comemorarmos o grau
de acontecimento."
Esse século e meio de idade era
contado assim Dona Benta, 64 anos; tia Nastácia, 66; Narizinho; 8; Pedrinho, 9.
Emília, o Marquês e o Visconde, l cada um. Ora, 64 mais 66 mais 8 mais 9 mais 1
mais l mais l, fazem 150 anos, ou seja, um século e meio.
Logo que recebeu essa carta, Pedrinho
fez a conta num papel para ver se a pilhava em erro: mas não pilhou.
— E uma danada aquela Narizinho! —
disse ele. — Não há meio de errar em contas.
CAPÍTULO 2: O SÍTIO DE DONA BENTA
O sítio de Dona Benta ficava num lugar muito bonito. A casa era das antigas, de
cômodos espaçosos e frescos. Havia o quarto de Dona Benta, o maior de todos, e
junto o de Narizinho, que morava com sua avó. Havia ainda o "quarto de Pedrinho",
que lá passava as férias todos os anos; e o da tia Nastácia, a cozinheira e o
faz-tudo da casa. Emília e o Visconde não tinham quartos; moravam num cantinho
do escritório, onde ficavam as três estantes de livros e a mesa de estudo da
menina.
A sala de jantar era bem espaçosa, com
janelas dando para o jardim, depois vinha a copa e a cozinha.
— E sala de visitas? Tinha?
— Como não? Uma sala de visitas com
piano, sofá de cabiúna, de palhinha tão bem esticada que "cantava"
quando Pedrinho batia-lhe tapas. Duas poltronas do mesmo estilo e seis
cadeiras. A mesa do centro era de mármore e pés também de cabiúna. Encostadas
às paredes havia duas meias mesas também de mármore, cheias de enfeites: três casais
de içás vestidos, vários caramujos e estrelas-do-mar, duas redomas com velas
dentro, tudo colocado sobre os "pertences" de miçangas feitos por
Narizinho. Hoje ninguém mais sabe o que é isso. Pertences eram umas rodelas de crochê
que havia em todas as casas, para botar bibelôs em cima; para o lavatório de
Dona Benta; Narizinho fizera pertences de crochê; e para a sala de visitas
fizera aqueles de miçanga de várias cores; da bem miudinha.
Antes da sala de visitas havia a sala
de espera, com chão de grandes ladrilhos quadrados; "cor de chita cor-de-rosa
desbotada". A sala de espera abria para a varanda. Que varanda gostosa!
Cercada dum gradil de madeira, muito singelo, pintado de azul-claro. Da varanda
descia-se para o terreiro por uma escadinha de seis degraus. Nas férias do ano anterior
Pedrinho havia plantado em cada canto da varanda um pé de "cortina
japonesa", uma trepadeira que dá uns fios avermelhados da grossura dum
barbante, que depois ficam amarelos e descem até quase ao chão, formando uma verdadeira
cortina viva. Aquela varanda estava se transformando em jardim, tantas eram as
orquídeas que o menino pendurara lá os vasos de avenca da miúda que ele foi colocando
junto à grade.
O jardim ficava nos fundos da sala de
jantar, um verdadeiro amor de jardim, só de plantas antigas e fora da moda.
Flores do tempo da mocidade de Dona Benta; esporinhas, damas-entre-verdes,
suspiros, orelhas-de-macaco, dois pés de jasmim-do-cabo, e outro, muito velho,
de jasmim-manga. Plantado na calçada e a subir pela parede, o velhíssimo pé de
flor-de-cera, planta que os modernos já não plantam porque custa muito a
crescer. Até cravo-de-defunto havia lá, flor com que Narizinho se implicava por
ter "cheiro de cemitério". Bem no centro do jardim havia um tanque redondo
com uma cegonha de louça, toda esverdeada de limo, a esguichar água pelo bico.
Mas a cegonha já estava sem cabeça, em consequência das pelotadas do bodoque de
Pedrinho. E um velho regador verde morava perto do tanque, porque era com a
água do tanque que tia Nastácia regava as plantas no tempo da seca.
— E o pomar?
— O pomar ficava nos fundos da casa,
depois do "quintal da cozinha", onde havia um galinheiro, um tanque
de lavar roupa e o puxado da lenha. O poço velho fora fechado depois que Dona
Benta mandou encanar a água do morro. Passado o quintal vinha o pomar — aquela
delícia de pomar!
— Por que delícia?
— Porque as árvores eram muito velhas,
e árvore quanto mais velha melhor para a beleza e a frescura da sombra. Árvore
nova pode ser muito boa para dar frutas bonitas, baixinhas e fáceis de apanhar.
Mas para a beleza não há como uma árvore bem velha, bem craquenta, com os
galhos revestidos de musgos, liquens e parasitas. Certas árvores do pomar
tinham donos. Havia a célebre pitangueira da Emília, as três jabuticabeiras de
Pedrinho, a mangueira de manga-espada de Narizinho e os pés de mamão de tia
Nastácia. Até o Visconde tinha sua árvore — um pezinho de romã muito feio e
raquítico. O resto das árvores não eram de ninguém — eram de todos. E quantas!
Cambucazeiros, duas jaqueiras, os pés de cabeluda e grumixama, os três pés de
sapotis e aquele de fruta-do-conde que "não ia por diante."
Era tão antigo aquele pomar que os
vizinhos até caçoavam. Viviam dizendo: "O pomar de Dona Benta está tão velho
que qualquer dia se põe a caducar. As jaqueiras começam a dar manga e as
mangueiras a dar laranjas." Mas Dona Benta não fazia caso. Não admitia que
se cortasse uma só árvore — nem o pobre pé de fruta-do-conde encarangado. Dizia
que cada uma delas lembrava qualquer coisa da sua meninice ou mocidade.
— Este pé de laranja-baiana —
costumava dizer — foi o primeiro que tivemos aqui, e dele saíram os enxertos
dos outros. Naquele tempo laranja-baiana era uma grande novidade. A muda foi presente
do defunto Zé das Bichas, um português muito trabalhador que morava numa
chácara perto da vila.
Impossível haver no mundo lugar mais
sossegado e fresco, e mais cheio de passarinhos, abelhas e borboletas. Como
Dona Benta nunca admitiu por ali nenhum menino de estilingue, a passarinhada se
sentia à vontade e fazia seus ninhos como se estivessem na Ilha da Segurança. O
próprio bodoque de Pedrinho não funcionava no pomar.
— E que passarinhos havia?
— Oh, tantos!... No tempo das laranjas
o pomar enchia-se de sabiás de peito vermelho, amigos de cantar a célebre música-de-sabiá
que os pais vão ensinando aos filhotes, sempre igualzinha, sem a menor mudança.
E havia os sanhaços cor de cinza clara. E as saíras azuis. E as graúnas pretíssimas.
E muito canário-da-terra, muito papa-capim, tisio, pintassilgo, rolinha,
corruíla...
As corruílas eram o encanto da menina,
que vivia a observar o jeitinho delas no constante escarafunchamento dos muros
carunchados em busca de pequenas aranhas e outros bichinhos moles. Bichinho
duro corruíla não quer. E sempre com as penas da cauda erguidas, ninguém sabe
por quê. Corruílas cor de telha e mansíssimas. Há também a linda corruíla do
brejo, que faz aqueles enormes ninhos espinhentos — mas essas nunca apareciam
no pomar. Moravam nos brejos.
Às vezes pousavam lá, de passagem, um
ou outro tié-sangue, o passarinho mais lindamente vermelho que existe. Mas não
se demoravam. Eram arisquíssimos.
— Por que, vovó, justamente os
passarinhos mais bonitos são os mais ariscos? — perguntou certa vez a menina.
— Justamente por serem bonitos, minha
filha. Os homens perseguem os passarinhos bonitos porque são bonitos — quem
quer saber de passarinho feio? Os tico-ticos, por exemplo: vivem na maior paz
em todos os terreiros justamente porque ninguém os persegue. São feinhos, os coitados.
Mas apareça aqui um tié-sangue, ou uma saíra daquelas lindas: todos se põem
atrás deles, querendo apanhá-los vivos ou mortos. Para a felicidade neste nosso
mundo, minha filha, não há como ser tico-tico, isto é, feinho e insignificante...
Mas o rei do pomar era o
joão-de-barro. Na paineira grande, bem lá no fundo, moravam dois num ninho
feito de argila, em forma de forno de assar pão. Era o casal mais amigo
possível. Não se largavam nunca. Onde estava um, também estava por perto o
outro. E se por acaso um se afastava um pouco mais, volta e meia soltava uns
gritos como quem pergunta: "Onde você está" — e o outro respondia: "Estou
aqui". E de vez em quando cantavam juntos aqueles terrível dueto que mais
parece uma série de marteladas estridentes e alegres.
— Que coisa interessante, vovó! —
disse Pedrinho um dia. — Repare que eles sempre cantam ou gritam juntos. Um faz
uma parte e outro faz o acompanhamento, como no piano...
E era assim mesmo. São tão amigos que
até para cantar "cantam a duas mãos", como dizia a boneca.
Certo ano o casal resolveu construir
um ninho novo em outro galho da paineira, e durante quinze dias o divertimento dos
meninos foi acompanhar de longe aquele trabalho. Os dois passarinhos traziam da
beira do ribeirão um pelote de barro no bico, e ficavam ali a colocar aquela
massa no lugar próprio, e a bicá-la cem vezes para que ficasse bem ligadinha. Enquanto
um se ocupava naquilo, o outro voava em busca de mais barro. Nunca estavam os
dois no mesmo serviço; revezavam-se. À tardinha interrompiam o trabalho,
cantavam o dueto com toda a força e depois se acomodavam no ninho velho. Tia
Nastácia vivia dizendo que nos domingos eles não trabalhavam, mas infelizmente
os meninos não puderam tirar a prova duma coisa tão linda.
O mais curioso foi que depois de
acabado o ninho novo, eles, em vez de se mudarem, resolveram fazer um segundo ninho
em cima daquele. Quem primeiro notou isso foi o Visconde, que foi, todo
assanhado, contar a Dona Benta.
— Venham ver — disse o sabuguinho. —
Eles terminaram ontem a construção do ninho novo, mas não se mudaram do velho;
em vez disso estão a construir um segundo ninho sobre o novo — uma espécie de
segundo andar.
Dona Benta foi com os meninos e viu.
— Por que será, vovó? — quis saber Pedrinho.
— Não sei, meu filho, mas eles devem
ter lá as suas razões.
— Eu sei — berrou Emília. — É para
alugar!...
Todos riram-se.
— Eu acho — disse Narizinho — que é
para acomodar os filhotes quando chegarem ao ponto de voar.
— Isso não — observou Dona Benta. —
Porque se os pais construíssem casa para os filhos, estes não aprenderiam a
arte da construção e essa arte se perderia. É fazendo que se aprende, já disse
o velho Camões.
— Mas então esses passarinhos
raciocinam, vovó — têm inteligência...
— Está claro que têm, meu filho. A
inteligência é uma faculdade que aparece em todos os seres, não só no homem. Até
as plantas revelam inteligência. O que há é que a inteligência varia muito de
grau. É pequeniníssima nas galinhas e nos perus, mas já bem desenvolvida no
joão-de-barro — e é um colosso num homem como Isaac Newton, aquele que
descobriu a Lei da Gravitação Universal.
No terreiro do sítio, em frente à
varanda, havia sempre um mastro de São João, que Pedrinho fincava na véspera do
dia desse santo, a 24 de junho, quando vinha pelas férias. Ele mesmo cortava o
pau no mato, ele mesmo o descascava e pintava inteirinho, com arabescos
vermelhos, amarelos e azuis. No topo do mastro colocava a "bandeira de São
João", que era um quadrado de sarrafo, espécie de moldura, na qual pregava
com tachinhas um retrato de São João meninote com um cordeirinho no braço.
Essas bandeiras, estampadas em morim, custavam $1,50 na venda do Elias Turco,
lá na estrada.
O terreiro era vedado por uma cerca de
paus-a-pique — rachões de guarantã. Bem no centro ficava a porteira. Para lá da
porteira era o pasto, onde havia um célebre cupim de metro e meio de altura; e
mais adiante, um velho cedro ainda do tempo da mata virgem. Através do pasto
seguia o "caminho" — ou a estrada que ia ter à vila, a légua e meia dali.
No fim do pasto, perto da ponte, apareciam a casinha do tio Barnabé e a
figueira grande; e bem lá adiante, o Capoeirão dos Tucanos, uma verdadeira mata
virgem onde até onça, macucos e jacus havia.
E que mais? Ah, sim, o ribeirão que
passava pela casa do tio Barnabé cortava o pasto e vinha fazer as divisas do pomar
com as terras de plantação. Impossível haver no mundo um ribeirão mais lindo,
de água mais limpa, com tantas pedrinhas roliças de todas as cores no fundo. Em
certos pontos viam-se pequenas praias de areia branca. Nas curvas a água quase
que parava, formando os célebres "poços" onde Pedrinho pescava
lambaris e bagres. As beiras de água rasa eram a zona dos guarus — o peixinho
menor que existe.
Aos domingos tia Nastácia saía a
mariscar de peneira. Os meninos davam pulos de alegria. A boa negra metia-se na
água até à cintura e ia descendo o ribeirão, com eles a acompanhá-la da margem,
aos gritos.
— Aqui, Nastácia, aqui nestes
capinzinhos...
A negra, muito cautelosamente, mergulhava
a peneira por baixo dos capinzinhos boiantes e suspendia-a de repente, de
surpresa. A água escoava-se pelos furos e na peneira aparecia uma porção de
vidinhas aquáticas, a saltar e espernejar: guarus barrigudinhos, lambarizinhos
novos, pequeninas traíras e de vez em quando um baratão-d'água muito casquento
e feio. E outros bichinhos ainda, incompreensíveis e sem nome. Certo dia a
peneira trouxe uma cobra-d'água verde, que a negra jogou sob o capim da margem.
Foi uma gritaria e uma correria das crianças.
— Não tenham medo que não é venenosa!
— disse a negra rindo-se com toda a gengivada vermelha de fora. Mas os meninos
não quiseram saber de nada. Ficaram a espiar de longe. A cobra verde foi
coleando por entre os capins e se sumiu de novo na água.
O mais importante daquelas mariscagens
eram os camarõezinhos de água doce, moles e transparentes, que tia Nastácia
apanhava em quantidade A carregadeira do samburá (a cestinha redondinha que os
mariscadores usam para recolher o peixe) era sempre Narizinho. A menina ia passando
os camarões da peneira para o samburá, com muito medo de ser mordida. Só os
agarrava pelos fios da barba. Pedrinho ria-se: "Boba! Onde se veem camarão
morder?" E ela: "A gente nunca sabe..."
No jantar daqueles domingos, quando
aparecia na mesa o prato-travessa cheio de camarõezinhos fritos, bem pururucas
e vermelhos, as crianças até sapateavam de gosto. E se com os camarõezinhos
vinha alguma pequena traíra ou bagre, a disputa era certa.
— A traíra é minha! — berrava um.
— É minha, é minha! — gritava outro. O
remédio era sempre uma das célebres sentenças de Salomão de Dona Benta.
— Como vocês são dois e a traíra é uma
só, eu como a traíra e vocês repartem os camarões.
Cessava incontinenti a disputa, e a
travessa de camarão ia diminuindo, diminuindo, até não ficar nem um fio de barba.
CAPÍTULO 3: MEDO DE SACI
Pedrinho, naqueles tempos, costumava
passar as férias no sítio de Dona Benta, onde brincava de tudo, como está nas REINAÇÕES
de Narizinho e na VIAGEM AO CÉU. Só não está contado o que lhe aconteceu antes
da famosa viagem ao céu, quando andava com a cabeça cheia de sacis.
A coisa foi assim. Estava ele na
varanda com os olhos no horizonte, postos lá onde aparecia o verde-escuro do Capoeirão
dos Tucanos, a mata virgem do sítio. De repente, disse:
— Vovó, eu ando com ideias de ir caçar
na mata virgem.
Dona Benta, ali na sua cadeirinha de
pernas cotós, entretida no tricô, ergueu os óculos para a testa.
— Não sabe que naquela mata há onças?
— disse com ar sério — Certa vez uma onça pintada veio de lá, invadiu aqui o
pasto e pegou um lindo novilho da vaca Mocha.
— Mas eu não tenho medo de onça, vovó!
— exclamou Pedrinho, fazendo o mais belo ar de desprezo.
Dona Benta riu-se de tanta coragem.
— Olhem o valentão! Quem foi que naquela
tarde entrou aqui berrando com uma ferroada de vespa na ponta do nariz?
— Sim, vovó, de vespa eu tenho medo,
não nego — mas de onça, não! Se ela vier do meu lado, prego-lhe uma pelotada do
meu bodoque novo no olho esquerdo; e outra bem no meio do focinho e outra...
— Chega! — interrompeu Dona Benta, com
medo de levar também uma pelotada. — Mas além de onças existem cobras. Dizem
que até urutus há naquele mato.
— Cobra? — e Pedrinho fez outra cara
de pouco caso ainda maior. — Cobra mata-se com um pedaço de pau, vovó. Cobra!...
Como se eu lá tivesse medo de cobra...
Dona Benta começou a admirar a coragem
do neto, mas disse ainda:
— E há aranhas caranguejeiras,
daquelas peludas, enormes, que devoram até filhotes de passarinho.
O menino cuspiu de lado com desprezo e
esfregou o pé em cima.
— Aranha mata-se assim, vovó — e seu
pé parecia mesmo estar esmagando várias aranhas caranguejeiras.
— E também há sacis — rematou Dona
Benta.
Pedrinho calou-se. Embora nunca o
houvesse confessado a ninguém, percebia-se que tinha medo de saci. Nesse ponto
não havia nenhuma diferença entre ele, que era da cidade, e os demais meninos
nascidos e crescidos na roça. Todos tinham medo de saci, tais eram as histórias
correntes a respeito do endiabrado moleque duma perna só.
Desde esse dia ficou Pedrinho com o
saci na cabeça. Vivia falando em saci e tomando informações a respeito. Quando
consultou tia Nastácia, a resposta da negra foi, depois de fazer o pelo-sinal e
dizer "Credo!".
— Pois saci, Pedrinho, é uma coisa que
branco da cidade nega, diz que não há — mas há. Não existe negro velho por aí,
desses que nascem e morrem no meio do mato, que não jure ter visto saci. Nunca
vi nenhum, mas sei quem viu.
— Quem?
— O tio Barnabé. Fale com ele. Negro
sabido está ali! Entende de todas as feitiçarias, e de saci, de mula-sem-cabeça,
de lobisomem — de tudo.
Pedrinho ficou pensativo.
CAPÍTULO 4: TIO BARNABÉ
Tio Barnabé era um negro de mais de
oitenta anos que morava no rancho coberto de sapé lá junto da ponte. Pedrinho
não disse nada a ninguém e foi vê-lo. Encontrou-o sentado, com o pé direito num
toco de pau, à porta de sua casinha, aquentando sol.
—Tio Barnabé eu vivo querendo saber
duma coisa e ninguém me conta direito. Sobre o saci. Será mesmo que existe
saci?
O negro deu uma risada gostosa e,
depois de encher de fumo picado o velho pito, começou a falar:
— Pois, Seu Pedrinho, saci é uma coisa
que eu juro que "exéste". Gente da cidade não acredita — mas
"exéste". A primeira vez que vi saci eu tinha assim a sua idade. Isso
foi no tempo da escravidão, na Fazenda do Passo Fundo, que era do defunto Major
Teotônio, pai desse Coronel Teodorico, compadre de sua avó, Dona Benta. Foi lá
que vi o primeiro saci. Depois disso, quantos e quantos!...
— Conte, então, direitinho, o que é o
saci. Bem tia Nastácia me disse que o senhor sabia — que o senhor sabe tudo...
— Como não hei de saber tudo, menino,
se já tenho mais de oitenta anos? Quem muito "véve", muito sabe...
— Então conte. Que é, afinal de
contas, o tal saci?
E o negro contou tudo direitinho.
— O saci — começou ele — é um diabinho
de uma perna só que anda solto pelo mundo, armando reinações de toda sorte e
atropelando quanta criatura existe. Traz sempre na boca um pito aceso, e na
cabeça uma carapuça vermelha. A força dele está na carapuça, como a força de
Sanção estava nos cabelos. Quem consegue tomar e esconder a carapuça de um saci
fica por toda vida senhor de um pequeno escravo.
— Mas que reinações ele faz? — indagou
o menino.
— Quantas pode — respondeu o negro. —
Azeda o leite, quebra a ponta das agulhas, esconde as tesourinhas de unha,
embaraça os novelos de linha, faz o dedal das costureiras cair nos buracos,
bota moscas na sopa, queima o feijão que está no fogo, gora os ovos das
ninhadas. Quando encontra um prego, vira ele de ponta pra riba para que espete o
pé do primeiro que passa. Tudo que numa casa acontece de ruim é sempre arte do
saci. Não contente com isso, também atormenta os cachorros, atropela as
galinhas e persegue os cavalos no pasto, chupando o sangue deles. O saci não
faz maldade grande, mas não há maldade pequenina que não faça.
— E a gente consegue ver o saci?
— Como não? Eu, por exemplo, já vi
muitos. Ainda no mês passado andou por aqui um saci mexendo comigo — por sinal
que lhe dei uma lição de mestre...
— Como foi? Conte...
Tio Barnabé contou.
— Tinha anoitecido e eu estava sozinho
em casa, rezando as minhas rezas. Rezei, e depois me deu vontade de comer
pipoca. Fui ali no fumeiro e escolhi uma espiga de milho bem seca. Debulhei o
milho numa caçarola, pus a caçarola no fogo e vim para este canto picar fumo
pro pito. Nisto ouvi no terreiro um barulhinho que não me engana. "Vai ver
que é saci!" — pensei comigo. — E era mesmo. Dali a pouco um saci preto
que nem carvão, de carapuça vermelha e pitinho na boca, apareceu na janela. Eu
imediatamente me encolhi no meu canto e fingi que estava dormindo. Ele espiou de
um lado e de outro e por fim pulou para dentro. Veio vindo, chegou pertinho de
mim, escutou os meus roncos e convenceu-se de que eu estava mesmo dormindo.
Então começou a reinar na casa. Remexeu tudo, que nem mulher velha, sempre
farejando o ar com o seu narizinho muito aceso. Nisto o milho começou a chiar
na caçarola e ele dirigiu-se para o fogão. Ficou de cócoras no cabo da
caçarola, fazendo micagens. Estava "rezando" o milho, como se diz. E adeus,
pipoca! Cada grão que o saci reza não rebenta mais, vira piruá.
Dali saiu pra bulir numa ninhada de
ovos que a minha carijó calçuda estava chocando num balaio velho, naquele canto.
A pobre galinha quase que morreu de susto. Fez cró, cró, cró... e voou do ninho
feito uma louca, mais arrepiada que um ouriço-cacheiro. Resultado: o saci rezou
os ovos e todos goraram.
Em seguida pôs-se a procurar o meu
pito de barro Achou o pito naquela mesa, pôs uma brasinha dentro e paque, paque, paque... tirou justamente
sete fumaçadas. O saci gosta muito do número sete.
Eu disse cá comigo: "Deixe estar,
coisa-ruinzinho, que eu ainda apronto uma boa para você. Você há de voltar
outro dia e eu te curo."
E assim aconteceu. Depois de muito
virar e mexer, o sacizinho foi-se embora e eu fiquei armando o meu plano para
assim que ele voltasse.
— E voltou? — inquiriu Pedrinho.
— Como não? Na sexta-feira seguinte
apareceu aqui outra vez às mesmas horas. Espiou da janela, ouviu os meus roncos
fingidos, pulou para dentro. Remexeu em tudo, como da primeira vez, e depois
foi atrás do pito que eu tinha guardado no mesmo lugar. Pôs o pito na boca e
foi ao fogão buscar uma brasinha, que trouxe dançando nas mãos.
— É verdade que ele tem as mãos
furadas?
— É, sim. Tem as mãos furadinhas bem
no centro da palma; quando carrega brasa, vem brincando com ela, fazendo ela
passar de uma para a outra mão pelo furo. Trouxe a brasa, pôs a brasa no pito e
sentou-se de pernas cruzadas para fumar com todo o seu sossego.
— Como? — exclamou Pedrinho
arregalando os olhos. — Como cruzou as pernas, se saci tem uma perna só?
— Ah, menino, mecê não imagina como
saci é arteiro!... Tem uma perna só, sim, mas quando quer cruza as pernas como
se tivesse duas! São coisas que só ele entende e ninguém pode explicar. Cruzou
as pernas e começou a tirar baforadas, uma atrás da outra, muito satisfeito da
vida. Mas de repente, puff! Aquele
estouro e aquela fumaceira!... O saci deu tamanho pinote que foi parar lá longe,
e saiu ventando pela janela a fora.
Pedrinho fez cara de quem não entende.
— Mas que puff foi esse? — perguntou. — Não estou entendendo...
— É que eu tinha socado pólvora no
fundo do pito — exclamou tio Barnabé dando uma risada gostosa. A pólvora explodiu
justamente quando ele estava tirando a fumaçada número sete, e o saci, com a
cara toda sapecada, raspou-se para nunca mais voltar.
— Que pena — exclamou Pedrinho. —
Tanta vontade que eu tinha de conhecer esse saci...
— Mas não há só um saci no mundo,
menino. Esse lá se foi e nunca mais aparece por estas bandas, mas quantos outros
não andam por aí? Ainda na semana passada apareceu um no pasto de Seu Quincas
Teixeira e chupou o sangue daquela égua baia que tem uma estrela na testa.
— Como é que ele chupa o sangue dos
animais?
— Muito bem. Faz um estribo na crina,
isto é, dá uma laçada na crina do animal de modo que possa enfiar o pé e manter-se
em posição de ferrar os dentes numa das veias do pescoço e chupar o sangue,
como fazem os morcegos. O pobre animal assusta-se e sai pelos campos na
disparada, correndo até não poder mais. O único meio de evitar isso é botar
bentinho no pescoço dos animais.
— Bentinho é bom?
— É um porrete. Dando com cruz ou bentinho pela frente, saci fede enxofre e foge com botas-de-sete-léguas.
CAPÍTULO 5: PEDRINHO PEGA UM SACI
Tão impressionado ficou Pedrinho com esta conversa que dali por diante só
pensava em saci, e até começou a enxergar sacis por toda parte. Dona Benta
caçoou, dizendo:
— Cuidado! Já vi contar a história de
um menino quem de tanto pensar em saci acabou virando saci...
Pedrinho não fez caso da história, e
um dia, enchendo-se de coragem, resolveu pegar um. Foi de novo em procura do tio
Barnabé.
— Estou resolvido a pegar um saci —
disse ele — e quero que o senhor me ensine o melhor meio.
Tio Barnabé riu-se daquela valentia.
— Gosto de ver um menino assim. Bem
mostra que é neto do defunto sinhô velho, um homem que não tinha medo nem de
mula-sem-cabeça. Há muitos jeitos de pegar saci, mas o melhor é o de peneira.
Arranja-se uma peneira de cruzeta...
— Peneira de cruzeta? — interrompeu o
menino. — Que é isso?
— Nunca reparou que certas peneiras
têm duas taquaras mais largas que se cruzam bem no meio e servem para reforço?
Olhe aqui — e tio Barnabé mostrou ao menino uma das tais peneiras que estava
ali num canto. Pois bem, arranja-se uma peneira destas e fica-se esperando um
dia de vento bem forte, em que haja rodamoinho de poeira e folhas secas.
Chegada essa ocasião, vai-se com todo o cuidado para o rodamoinho e zás! —
joga-se a peneira em cima. Em todos os rodamoinhos há saci dentro, porque fazer
rodamoinhos é justamente a principal ocupação dos sacis neste mundo.
— E depois?
— Depois, se a peneira foi bem atirada
e o saci ficou preso, é só dar jeito de botar ele dentro de uma garrafa e arrolhar
muito bem. Não esquecer de riscar uma cruzinha na rolha, porque o que prende o
saci na garrafa não é a rolha e sim a cruzinha riscada nela. É preciso ainda
tomar a carapucinha dele e a esconder bem escondida. Saci sem carapuça é como
cachimbo sem fumo. Eu já tive um saci na garrafa, que me prestava muitos bons
serviços. Mas veio aqui um dia aquela mulatinha sapeca que mora na casa do compadre
Bastião e tanto lidou com a garrafa que a quebrou. Bateu logo um cheirinho de
enxofre. O perneta pulou em cima da sua carapuça, que estava ali naquele prego,
e “até logo, tio Barnabé!”
Depois de tudo ouvir com a maior
atenção, Pedrinho voltou para casa decidido a pegar um saci, custasse o que custasse.
Contou o seu projeto a Narizinho e longamente discutiu com ela sobre o que
faria no caso de escravizar um daqueles terríveis capetinhas. Depois de
arranjar uma boa peneira de cruzeta, ficou à espera do dia de São Bartolomeu, que
é o mais ventoso do ano.
Custou a chegar esse dia, tal era sua
impaciência, mas afinal chegou, e desde muito cedo Pedrinho foi postar-se no terreiro,
de peneira em punho, à espera de rodamoinhos. Não esperou muito tempo. Um forte
rodamoinho formou-se no pasto e veio caminhando para o terreiro.
— É hora! — disse Narizinho. — Aquele
que vem vindo está com muito jeito de ter saci dentro.
Pedrinho foi se aproximando pé ante pé
e, de repente, zás! — jogou a peneira
em cima.
— Peguei! — gritou no auge da emoção,
debruçando-se com todo o peso do corpo sobre a peneira emborcada. — Peguei o
saci!...
A menina correu a ajudá-lo.
— Peguei o saci! — repetiu o menino
vitoriosamente. — Corra, Narizinho, e traga-me aquela garrafa escura que deixei
na varanda. Depressa!
A menina foi num pé voltou noutro.
— Enfie a garrafa dentro da peneira —
ordenou Pedrinho — enquanto eu cerco dos lados. Assim! Isso!...
A menina fez como ele mandava e com
muito jeito a garrafa foi introduzida dentro da peneira.
— Agora tire do meu bolso a rolha que
tem uma cruz riscada em cima — continuou Pedrinho. — Essa mesma. Dê cá.
Pela informação do tio Barnabé, logo
que a gente põe a garrafa dentro da peneira o saci por si mesmo, entra dentro dela,
porque, como todos os filhos das trevas, tem a tendência de procurar sempre o
lugar mais escuro. De modo que Pedrinho o mais que tinha a fazer era arrolhar a
garrafa e erguer a peneira. Assim fez, e foi com o ar de vitória de quem houvesse
conquistado um império que levantou no ar a garrafa para examiná-la contra a
luz.
Mas a garrafa estava tão vazia como
antes. Nem sombra de saci dentro...
A menina deu-lhe uma vaia e Pedrinho,
muito desapontado, foi contar o caso ao tio Barnabé.
— E, assim mesmo — explicou o negro
velho. — Saci na garrafa é invisível. A gente só sabe que ele está lá dentro quando
a gente cai na modorra. Num dia bem quente, quando os olhos da gente começam a
piscar de sono, o saci pega a tomar forma, até que fica perfeitamente visível.
E desse momento em diante que a gente faz dele o que quer. Guarde a garrafa bem
fechada, que garanto que o saci está dentro dela.
Pedrinho voltou para casa
orgulhosíssimo com a sua façanha.
— O saci está aqui dentro, sim — disse
ele a Narizinho, — Mas está invisível, como me explicou tio Barnabé. Para a gente
ver o capetinha é preciso cair na modorra — e repetiu as palavras que o negro
lhe dissera.
Quem não gostou da brincadeira foi a
pobre tia Nastácia. Como tinha um medo horrível de tudo quanto era mistério,
nunca mais chegou nem na porta do quarto de Pedrinho.
— Deus me livre de entrar num quarto
onde há garrafa com saci dentro! Credo! Nem sei como Dona Benta consente semelhante
coisa em sua casa. Não parece ato de cristão...
CAPÍTULO 6: A MODORRA
Um dia Pedrinho enganou Dona Benta que
ia visitar o tio Barnabé, mas em vez disso tomou o rumo da mata virgem de seus
sonhos. Nem o bodoque levou consigo. "Para que bodoque, se levo o saci na
garrafa e ele é uma arma melhor do que quanto canhão ou metralhadora
existe?"
Que beleza! Pedrinho nunca supôs que
uma floresta virgem fosse tão imponente. Aquelas árvores enormes, velhíssimas,
barbadas de musgos e orquídeas; aquelas raízes de fora dando ideia de
monstruosas sucuris; aqueles cipós torcidos como se fossem redes; aquela
galharada, aquela folharada e sobretudo aquele ambiente de umidade e sombra, lhe
causaram uma impressão que nunca mais se apagou.
Volta e meia ouvia um rumor estranho,
de inambu ou jacu a esvoaçar por entre a folhagem, ou então, de algum galho
podre que tombava do alto e vinha num estardalhaço — brah, ah, ah... — esborrachar-se no chão.
E quantas borboletas, das azuis, como
cauda de pavão; das cinzentas, como casca de pau; das amarelas, cor de gema de
ovo!
E pássaros! Ora um enorme tucano de
bico maior que o corpo e lindo papo amarelo. Ora um pica-pau, que interrompia o
seu trabalho de bicar a madeira de um tronco para atentar no menino com
interrogativa curiosidade.
Até um bando de macaquinhos ele viu,
pulando de galho em galho com incrível agilidade e balançando-se, pendurados pela
cauda, como pêndulos de relógio.
Pedrinho foi caminhando pela mata
adentro até alcançar um ponto onde havia uma água muito límpida, que corria, cheia
de barulhinhos mexeriqueiros, por entre velhas pedras verdoengas de limo. Em
redor erguiam-se as esbeltas samambaiaçus, esses fetos enormes que parecem
palmeiras. E quanta avenca de folhagem mimosa, e quanto musgo pelo chão!
Encantado com a beleza daquele sítio,
o menino parou para descansar. Juntou um monte de folhas caídas; fez cama;
deitou-se de barriga para o ar e mãos cruzadas na nuca. E ali ficou num enlevo
que nunca sentira antes, pensando em mil coisas em que nunca pensara antes, seguindo
o voo silencioso das grandes borboletas azuis e embalando-se com o chiar das
cigarras.
De repente notou que o saci dentro da
garrafa fazia gestos de quem quer dizer qualquer coisa.
Pedrinho não se admirou daquilo. Era
tão natural que o capetinha afinal aparecesse...
— Que aconteceu que está assim
inquieto, meu caro saci? — perguntou-lhe em tom brincalhão.
— Aconteceu que este lugar é o mais
perigoso da floresta; e que se a noite pilhar você aqui, era uma vez o neto de
Dona Benta...
Pedrinho sentiu um arrepio correr-lhe
pelo fio da espinha.
— Por quê? — perguntou, olhando
ressabiadamente para todos os lados.
— Porque é justamente aqui o coração
da mata, ponto de reunião de sacis, lobisomens, bruxas, caiporas e até da mula-sem-cabeça.
Sem meu socorro você estará perdido, porque não há mais tempo para voltar para
casa, nem você sabe o caminho. Mas o meu auxílio eu só darei sob uma condição...
— Já sei, restituir a carapuça —
adiantou Pedrinho.
— Isso mesmo. Restituir-me a carapuça
e com ela a liberdade. Aceita?
Pedrinho sentia muito ver-se obrigado
a perder um saci que tanto lhe custara a apanhar, mas como não tinha outro remédio
senão ceder, jurou que o libertaria se o saci o livrasse dos perigos da noite e
pela manhã o reconduzisse, são e salvo, à casa de Dona Benta.
— Muito bem — disse o saci. — Mas
nesse caso você tem de abrir a garrafa e me soltar. Terei assim mais facilidade
de ação. Você jurou que me liberta; eu dou minha palavra de saci que mesmo
solto o ajudarei em tudo. Depois o acompanharei até o sítio para receber minha
carapuça e despedir-me de todos.
Pedrinho soltou o saci e durante o
resto da aventura tratou-o mais como um velho camarada do que como um escravo.
Assim que se viu fora da garrafa, o capeta pôs-se a dançar e a fazer cabriolas
com tanto prazer que o menino ficou arrependido de por tantos dias ter
conservado presa uma criaturinha tão irrequieta e amiga da liberdade.
— Vou revelar os segredos da mata
virgem — disse-lhe o saci — e talvez seja você a primeira criatura humana a conhecer
tais segredos. Para começar, temos de ir ao “sacizeiro” onde nasci, onde
nasceram meus irmãos e onde todos os sacis se escondem durante o dia, enquanto
o sol está fora. O sol é o nosso maior inimigo. Seus raios espantam-nos para as
tocas escuras. Somos os eternos namorados da lua. É por isso que os poetas nos
chamam de filhos das trevas. Sabe o que é trevas?
— Sei. O escuro, a escuridão.
— Pois é isso. Somos filhos das
trevas, como os beija-flores, os sabiás e as abelhas são filhos do Sol.
Assim falando, o saci levou o menino
para uma cerrada moita de taquaraçus existente num dos pontos mais espessos da
floresta.
Pedrinho assombrou-se diante das dimensões daqueles gomos quase da sua altura e grossos que nem uma laranja de umbigo.
CAPÍTULO 7: A SACIZADA
— É aqui, dentro destes gomos, que se
geram e crescem meus irmãos de uma perna só — disse o saci. — Quando chegam em
idade de correr mundo, furam os gomos e saltam fora. Repare quantos gomos
furados. De cada um deles já saiu um saci.
Pedrinho viu que era exato o que ele
dizia, mostrou desejos de abrir um gomo para espiar um sacizinho novo ainda
preso lá dentro.
— Vou satisfazer a sua curiosidade,
Pedrinho, mas não posso revelar o segredo de furar os gomos; portanto, vire-se
de costas.
O menino virou-se de costas, assim
ficando até que o saci dissesse — “Pronto!” Só então desvirou-se e com grande
admiração viu aberta num gomo uma perfeita janelinha.
— Posso espiar? — perguntou.
— Espie, mas com um olho só —
respondeu o saci. — Se espiar com os dois, o sacizinho acorda e joga nos seus
olhos a brasa do pitinho.
O menino assim fez. Espiou com um olho
só e viu um sacizinho do tamanho de um camundongo já de pitinho aceso na boca e
carapucinha na cabeça. Estava todo encolhido no fundo do gomo.
— Que galanteza! — exclamou Pedrinho.
— Que pena o povo lá de casa não estar aqui para ver esta maravilha!
— Esse sacizinho ainda fica aí durante
quatro anos. A conta da nossa vida dentro dos gomos são de sete anos. Depois
saímos para viver no mundo setenta e sete anos justos. Alcançando essa idade
viramos cogumelos venenosos, ou orelhas-de-pau.
Pedrinho regalou-se de contemplar o
sacizinho adormecido e ali ficaria horas se o saci não puxasse pela manga.
— Chega — disse ele. — Vire-se de
costas outra vez, que é tempo de fechar a janelinha.
Pedrinho obedeceu, e quando de novo
olhou não conseguiu perceber no gomo do taquaruçu o menor sinal da janelinha.
Justamente nesse instante um
formidável miado de gato feriu os seus ouvidos.
— É o jaguar! — exclamou o saci. —
Trepemos depressa numa árvore, porque ele vem vindo nesta direção.
Pedrinho, tomado de pânico, fez gesto
de subir na primeira árvore que viu à sua frente, um velho jacarandá coberto de
barbas-de-pau.
— Nessa, não! —berrou o saci. — É
muito grossa; o jaguar treparia atrás de nós. Temos que escolher uma de casca
bem lisa e tronco esguio. Aquele guarantã ali está ótimo — concluiu, apontando
para uma árvore bastante alta e magrinha de tronco, que se via à esquerda.
Subiram — e nunca em sua vida Pedrinho
subiu tão depressa em uma árvore! Tinha a impressão de que o terrível tigre dos
sertões estava atrás dele, já de boca aberta, para o engolir vivo. Mas era
ilusão apenas, filha do medo, pois a fera miou outra vez e o saci calculou pelo
som que ainda deveria estar a cem metros dali. Pedrinho ajeitou-se como pôde
numa forquilha da árvore, lá ficando quietinho ao lado do saci.
Preparou-se para ver uma fera sobre a qual vivia falando mas sem ter a respeito ideia justa. Ia ver a famosa onça-pintada, esse gatão que muito lembra a pantera das matas da Índia.
CAPÍTULO 8: A ONÇA
O miado soou de novo, desta vez bem
perto, e logo depois surgiu, por entre as folhas a cabeça de uma formidável
onça-pintada. Era um animal de extrema beleza, quase tão grande como o tigre de
Bengala. Parou; farejou o ar. Depois ergueu os olhos para a árvore. Dando com o
menino e o saci lá em cima, soltou um rugido de satisfação, como quem diz: "Achei
o meu jantar!" E tentou subir à árvore. Vendo que isso lhe era impossível,
sacudiu o tronco tão violentamente que por um triz Pedrinho não veio abaixo,
como se fosse jaca madura. Mas não caiu, e a onça, desanimada, resolveu esperar
que ele descesse. Sentou-se nas patas traseiras e ali ficou quieta, só movendo
a cauda e passando de quando em quando a língua pelos beiços.
— Ela é capaz de permanecer nessa
posição três dias e três noites — disse o saci. — Temos que inventar um meio de
afugentá-la.
Olhou em redor, examinando as árvores
como quem está com uma ideia na cabeça. Depois saltou para a mais próxima e foi
de copa em copa até uma que estava cheia de grandes vagens. Escolheu meia dúzia
das mais secas e voltou para junto do menino.
— Apare nas mãos o pó que vou deixar
cair destas vagens — disse ele, abrindo com os dentes uma delas.
Pedrinho estendeu as mãos em forma de
cuia e o saci sacudiu dentro um pó amarelado. O mesmo foi feito com as outras
vagens.
— Bem. Agora derrame este pó bem a
prumo, de modo que vá cair sobre a cara da onça.
Pedrinho colocou-se em linha vertical
com á fera e derramou de um jato o pó amarelo.
Foi uma beleza aquilo! Quando o pó
caiu sobre os olhos da onça, ela deu tamanho pinote que foi parar a cinco
metros de distância, sumindo-se em seguida pelo mato adentro, a urrar de dor e
a esfregar os olhos como se quisesse arrancá-los.
Pedrinho deu uma risada gostosa.
— Que diabo de pó é este, amigo saci?
— perguntou. — Vejo que vale mais que uma boa carabina...
— Isso se chama pó-de-mico. Arde nos
olhos como pimenta e dá na pele uma tal coceira que a vítima até se coçara com
um ralo de ralar coco, se o tiver ao alcance da mão.
Pedrinho escorregou da árvore abaixo,
ainda a rir-se da pobre onça. Mas não se riu por muito tempo. Mal tinha dado
alguns passos, recuou espavorido..
CAPÍTULO 9: A SUCURI
— Um monstro! Acuda, saci! Um monstro
com corpo de cobra e cabeça de boi!... — gritou Pedrinho, trepando de novo no
guarantã com velocidade ainda maior que da primeira vez.
O saci foi ver o que era e voltou
dizendo:
— É uma sucuri que acaba de engolir um
boi. Desça que não há perigo. Ela está dormindo e dormirá assim dois ou três
meses até que o boi esteja digerido.
Apesar da confiança que o saci lhe
merecia, o menino foi pulando de árvore em árvore para só descer a cem passos
dali. Mas como a tentação de ver a sucuri fosse grande, foi voltando, voltando,
até chegar em ponto de onde pudesse observá-la à vontade.
Era das maiores que se poderiam
encontrar, devendo ter pelo menos uns trinta metros de comprimento e a grossura
da cabeça de um homem. Pedrinho não podia compreender como um boi inteiro
pudesse caber dentro dela.
— Muito simples — explicou o saci. —A
sucuri enlaça o boi, quebra-lhe todos os ossos e amassa-o de tal maneira que o
torna comprido como chouriço. Depois cobre-lhe o corpo de uma baba muito
lubrificante e começa a engoli-lo sem pressa. Vai indo, vai indo, até que dá
com o boi inteiro no estômago; só ficam de fora a cabeça e os chifres. E leva
meses assim, até que a digestão se complete. Quando está nesse estado, a sucuri
não oferece perigo nenhum, porque fica inerte, caída em estado de sonolência.
E não foi só essa cobra que Pedrinho
conheceu naquele dia. Logo depois percebeu um ruído seco de guizos. Era uma
cascavel que passava; muito aflita, como que fugindo de algum inimigo.
— Que será que a está perseguindo? —
indagou ele.
— Alguma muçurana — respondeu o saci.
— As muçuranas são cobras sem veneno que só se alimentam de cobras venenosas.
Lá vem uma!
De fato, uma muçurana de cor escura
surgiu no rastro da cascavel, que foi alcançada logo adiante.
Luta terrível! Pedrinho nunca imaginou
um tal espetáculo. A muçurana enleou-se na cascavel e as duas rebolaram no chão
como minhocas loucas. Muito tempo estiveram assim. Finalmente a cascavel morreu
sufocada, e a muçurana engoliu-a inteirinha, apesar de serem ambas do mesmo
tamanho.
— Que horror! — exclamou Pedrinho. — A
vida nesta floresta não tem sossego. Só agora compreendo porque os animais
selvagens são tão assustados. A vida deles corre um risco permanente, de modo
que só escapam os que estão com todos os sentidos sempre alertas.
— É o que os sábios chamam a luta pela
vida. Uma criatura vive da outra. Uma come a outra. Mas para que uma criatura
possa comer a outra, é preciso que seja mais forte — do contrário vai comer e
sai comida.
— Mais forte só?
— Mais forte ou mais esperta. Aqui na mata todos procuram ser fortes. Os que não conseguem ser fortes, tratam de ser espertos. Na maior parte dos casos a esperteza vale mais do que a força. Os sacis, por exemplo, não são fortes — mas ninguém os vence em esperteza.
CAPÍTULO 10: A FLORESTA
— Pois assim é — continuou o saci. — A
lei da floresta é a lei de quem pode mais — ou por ter mais força, por ser mais
ágil, ou por ser mais astuto. A astúcia, principalmente, é uma grande coisa na
floresta. Está vendo ali aquele galhinho seco?
— Sim. Um galhinho como outro qualquer
— respondeu o menino.
— Pois está muito enganado — replicou
o saci. — Não é galho nenhum, sim um bichinho que finge de galho seco para não
ser atacado pelos inimigos.
Pedrinho não quis acreditar, mas
cutucando o galhinho viu que ele se mexia. Ficou assombrado da esperteza.
— Bem diz vovó que a mata é perigosa!
Um que não sabe há de levar cada logro aqui...— E aquilo? — perguntou o saci
apontando para uma folha. — Que parece a você que aquilo é?
Pedrinho olhou; viu bem que era uma
folha de árvore; mas como já estava ficando sabido nas traições da floresta,
piscou para o saci e disse:
— Desta vez não caio na esparrela.
Parece que é uma folha, mas com certeza é outro bichinho que se disfarça em
folha.
E cutucou-a para ver se mexia. A
folha, porém, não se mexeu.
— É folha mesmo, bobinho! — disse o
saci dando uma risada. — Ainda é muito cedo para você "ler" a mata.
Isto é livro que só nós, que aqui nascemos e vivemos toda vida, somos capazes
de interpretar. Um menino da cidade, como você, entende tanto da natureza como
eu entendo de grego.
— Realmente, saci! Estou vendo que
aqui na mata sou um perfeito bobinho. Mas deixe estar que ainda ficarei tão
sabido como você.
— Sim, com o tempo e muita observação.
Quem observa e estuda, acaba sabendo. Aqui, porém, nós não precisamos estudar.
Nascemos sabendo. Temos o instinto de tudo. Qualquer desses bichinhos que você
vê, mal sai dos casulos e já se mostra espertíssimo, não precisando dos
conselhos dos pais. Bem consideradas as coisas, Pedrinho, parece que não há
animal mais estúpido e lerdo para aprender do que o homem, não acha?
O orgulho do menino ofendeu-se com
aquela observação. Um miserável saci a fazer pouco caso do rei dos animais! Era
só o que faltava...
— O que você está dizendo — replicou Pedrinho — é tolice pura sem mistura. O homem é o rei dos animais. Só o homem tem inteligência. Só ele sabe construir casas de todo jeito, e máquinas, pontes, e aeroplanos, e tudo quanto há. Ah, o homem! Você não sabe o que o homem é, saci! Era preciso que tivesse lido os livros que eu li em casa da vovó...
CAPÍTULO 11: DISCUSSÃO
O saci deu uma gargalhada.
— Que gabolice! — exclamou. — Casas?
Qual é o bichinho que não constrói sua casa na perfeição? Veja a das abelhas,
ou das formigas, ou os casulos. Poderão existir habitações mais perfeitas?
Todos aqui na mata moram. Cada um inventa o seu jeito de morar. Todos moram.
Todos, portanto, têm suas casinhas, onde ficam muito mais bem abrigados do que
os homens lá nas casas deles. O caramujo, esse então até inventou o sistema de
carregar a casa às costas. É o mais esperto. Vai andando. Assim que o perigo se
aproxima, arreia a casa e mete-se dentro.
— Casa, vá lá — disse Pedrinho meio
convencido. — Mas aeroplano? Que bichinho daqui seria capaz de construir aviões
como nós homens os construímos?
Outra risada do saci.
— Pedrinho, você está-me saindo tão
bobo que até me causa dó. Aviões! Pois não vê que o avião é a mais atrasada
máquina de voar que existe? Aqui os bichinhos de asas estão de tal modo
adiantados que nenhum precisa de mostrengos como o tal avião. Todos possuem no
corpo um aparelho de voar aperfeiçoadíssimo. Não vê que voam, bobo? Outro dia
assisti a uma cena muito interessante. Eu estava perto duma lagoa cheia de
patos, quando um avião passou voando por cima das nossas cabeças. Os patos
entreolharam-se e riram-se. Você sabe, Pedrinho, que bicho estúpido é o pato.
Pois mesmo assim um deles disse com muita sabedoria: "Parece incrível que
os homens se gabem de ter inventado uma coisa que nós já usamos há tantos
milhares de anos..."
— Sim — continuou Pedrinho — mas nós
sabemos ler e vocês não sabem.
— Ler! E para que serve ler? Se o
homem é a mais boba de todas as criaturas, de que adianta saber ler? Que é ler?
Ler é um jeito de saber o que os outros pensaram. Mas que adianta a um bobo
saber o que outro bobo pensou?
Era demais aquilo. Pedrinho encheu-se
de cólera.
— Não continue, saci! Você está me
ofendendo. O homem não é nada do que você diz. O homem é a glória da natureza.
— Glória da natureza! — exclamou o
capetinha com ironia. — Ou está repetindo como papagaio o que ouviu alguém
falar ou então você não raciocina. Inda ontem ouvi Dona Benta ler num jornal os
horrores da guerra na Europa. Basta que entre os homens haja isso que eles
chamam guerra, para que sejam classificados como as criaturas mais estúpidas
que existem. Para que guerra?
— E vocês aqui não usam guerras
também? Não vivem a perseguir e comer uns aos outros?
— Sim; um comer o outro é a lei da
vida. Cada criatura tem o direito de viver e para isso está autorizada a matar
e comer o mais fraco. Mas vocês homens fazem guerra sem ser movidos pela fome. Matam
o inimigo e não o comem. Está errado. A lei da vida manda que só se mate para
comer. Matar por matar é crime. E só entre os homens existe isso de matar por
matar — por esporte, por glória, como eles dizem. Qual, Pedrinho, não se meta a
defender o bicho homem, que você se estrepa. E trate de fazer como Peter Pan,
que embirrou de não crescer para ficar sempre menino, porque não há nada mais
sem graça de que gente grande. Se todos os meninos do mundo fizessem greve,
como Peter Pan, e nenhum crescesse, a humanidade endireitaria. A vida lá entre
os homens só vale enquanto vocês se conservam meninos. Depois que crescem, os
homens viram uma calamidade, não acha? Só os homens grandes fazem guerra. Basta
isso. Os meninos apenas brincam de guerra.
Pedrinho nada respondeu. Estava um tanto abalado pelas estranhas ideias do saci. Quando voltasse para casa iria consultar Dona Benta para saber se era assim mesmo ou não.
CAPÍTULO 12: O JANTAR
O sol já estava descambando e o menino
sentiu fome.
Havia esquecido de trazer matalotagem.
— Amigo saci, estou sentindo uma coisa
chamada fome. Mostre-me a sua habilidade em sair-se de todos os apuros,
arranjando um jantar.
— Nada mais fácil — respondeu o
capetinha. Gosta de palmito?
— Gosto, sim. Mas como poderemos
derrubar uma palmeira tão alta para colher o palmito? Sem machado é impossível.
O saci deu uma risada.
— Não há impossíveis para mim, quer
ver? — e metendo dois dedos na boca tirou um agudo assobio.
Imediatamente um enorme besourão,
chamado serra-pau, surgiu do seio da floresta. O saci fez-lhe uns sinais e o
besourão, voando para o alto duma palmeira de tronco fino, mas muito alta,
abarcou a base do palmito entre os seus ferrões dentados como um serrote e
começou a girar com grande velocidade, zunindo como um aeroplano — zunnn...
Em menos de cinco minutos o tronco da
palmeira estava serrado, e o palmito, acompanhado da copa, veio com grande
estardalhaço ao chão.
— Bravos! — exclamou o menino. — Nunca
imaginei que nesta mata houvesse serrador tão hábil. Quero agora ver como você
prepara o petisco.
— Muito fácil — disse o saci. — Fogo
não falta. Tenho sempre fogo no meu pitinho. Panelas também não faltam. E só
procurar por aí alguma casca de tatu. Água temos dentro dos gomos de taquara;
basta rachar um ou dois. E para gordura, é só quebrar uma porção de coquinhos e
espremer entre duas pedras o óleo das amêndoas.
— E sal?
— E o mais difícil; mas como há mel,
você comerá palmito preparado sob forma de doce, que é ainda mais gostoso.
E assim foi feito. Em menos de vinte
minutos estava diante de Pedrinho uma casca de tatu cheia de um doce de palmito
muito bem preparado. O menino comeu a fartar e ainda teve uma sobremesa de
amoras do mato, que o saci colheu ali mesmo.
— Há muito tempo que não como com
tanto apetite! — comentou Pedrinho depois que encheu o papo. — Você é um
cozinheiro ainda melhor que tia Nastácia, que é a primeira cozinheira do mundo.
E, dando tapinhas na barriga, pôs-se a
palitar os dentes com um comprido espinho de brejaúva.
A tarde ia morrendo. Não tardou que
Pedrinho visse brilhar no céu, por entre uma nesga aberta na copa das árvores,
a primeira estrelinha.
Que coisa impressionante era a noite!
Até aquele momento Pedrinho ainda não havia prestado atenção nisso. Noite em
casa não é noite. Acende-se o lampião, fecha-se a porta da rua — e que é da
noite?
Mas ali, oh, ali a noite o era de
verdade -— das imensas, das completamente escuras, apenas com aqueles
vaga-lumes parados no céu que os homens chamam estrelas...
CAPÍTULO 13: NOVAS DISCUSSÕES
Tinham de esperar a meia-noite, porque
só a essa hora, é que os duendes da floresta saem de suas tocas. Para matar o
tempo, o saci começou a explicar a Pedrinho o que era a vida na natureza.
— Você nunca poderá fazer ideia da
vida encantada que temos por aqui — disse ele.
— Ora, ora! — exclamou o menino. — Não
há o que os homens não saibam. Vovó tem lá uma História Natural que conta tudo.
O saci riu-se e tirou uma baforada do
pitinho.
— Tudo? Ah, ah, ah!... Livros como
esses não contam nem isca do que é, e estão cheios de invenções ou erros. Basta
dizer que para cada inseto seria preciso um livro inteiro só para contar alguma
coisa da vidinha deles. E quantos insetos existem? Milhões...
— Em todo caso — volveu Pedrinho —
nós, homens, pomos o que sabemos nos livros e vocês sacis não escrevem coisa
nenhuma. Nunca houve livros entre vocês, e quem não escreve obras não pode
ensinar aos filhos o que sabe.
— Não temos livros — disse o saci —
porque não precisamos de livros. Nosso sistema de saber as coisas é diferente.
Nós adivinhamos as coisas. Herdamos a sabedoria de nossos pais, como vocês,
homens herdam propriedades ou dinheiro. Nascer sabendo! Isso é que é o bom. Um
pernilongo, por exemplo. Sabe como é a vidinha dele? Nasce na água, saído de um
ovinho. Logo que sai do ovinho ainda não é pernilongo — é o que vocês chamam
"larva" — uma espécie de peixinho que nada e mergulha muito bem. Um
dia essa larva cria asas, pernas compridas e voa. E que faz quando voa?
— Vai cantar a música do fiun e picar as pessoas que estão
dormindo em suas camas. E isso o que esses malvadinhos fazem.
— Muito bem! — tornou o saci. — E quem
ensina o pernilongo a fazer isso? Os pais? Não, por que depois de soltar os
ovos na água os pais dos pernilonguinhos morrem. Os livros? Não, porque eles
não têm livros. Pois apesar disso sabem tudo quanto precisam saber. Sabem que
no corpo das gentes há sangue, e que o sangue é o alimento deles. Sabem que as
gentes moram em casas. Sabem que a melhor hora de sugar o sangue das gentes é
de noite, porque estão dormindo. E sem que os pais lhes ensinem coisa nenhuma,
ou que as aprendam nos livros, os pernilonguinhos logo que saem da água vão em
busca das casas, entram, escondem-se nos escuros, esperam que todos durmam e
sossegadamente picam as pessoas e enchem de sangue as suas barriguinhas. Depois
escapam pelas janelas e voltam à mata ou outros sítios, em procura de aguinhas
paradas onde porem os ovos. E assim eternamente. Sabem tudo direitinho — e
ninguém os ensina. Logo, eles têm a ciência de tudo dentro de si mesmos, como
vocês têm tripas e estômago e pacuera.
Pedrinho teve de concordar que era
assim mesmo. O saci continuou:
— E como fazem os pernilongos, assim
também fazem todas as outras vidinhas aqui da floresta. Cada qual nasce sabendo
fazer o certo — e não erram. Os grilos nascem sabendo abrir buracos. Há um
inseto chamado bombardeiro. Se outro maior o ataca, vira-se de costas e
lança-lhe no focinho um líquido que se evapora imediatamente e tonteia o
inimigo. Quando este volta a si, o bombardeiro já está longe. Quem o ensina a
fazer isso? Ninguém. Nasce sabendo. Certos besouros, quando querem pôr ovos,
fazem o seguinte: pegam uma pequena quantidade de esterco e a vão rolando pelo
chão com as patas detrás. Para quê? Para formar uma bola. Quando o esterco está
uma bola bem redondinha, eles a furam e botam lá dentro os ovos. Quem ensina
esses besouros a fazer essas bolas tão redondinhas? Os pais? Não! Algum livro?
Não! Eles nascem sabendo.
— Sim — disse Pedrinho. — Nascem
sabendo e nós temos de aprender com os nossos pais ou nos livros. Isso só prova
o nosso valor. Que mérito há em nascer sabendo? Nenhum. Mas há muito mérito em
não saber e aprender pelo estudo.
— Perfeitamente — concordou o saci. —
Não nego o mérito do esforço dos homens. O que digo é que eles são seres
atrasadíssimos — tão atrasados que ainda precisam aprender por si mesmos. E nós
somos seres aperfeiçoadíssimos porque já não precisamos aprender coisa nenhuma.
Já nascemos sabidos. Que é que você preferia: ter nascido já com toda a ciência
da vida lá dentro ou ter de ir aprendendo tudo com o maior esforço e à custa de
muitos erros?
O menino foi obrigado a concordar que
o mais cômodo seria nascer sabendo.
— Sim, nesse ponto você tem razão,
saci. Mas que é que faz todas essas vidinhas viverem? Está aí uma coisa que
minha cabeça não compreende.
— Ah, isso é o segredo dos segredos! —
respondeu o saci. — Nem nós sabemos. Mas o que acontece é o seguinte: dentro de
cada criatura, bichinho ou plantinha, há uma força que a empurra para a frente.
Essa força é a Vida. Empurra e diz no ouvido das criaturinhas o que elas devem
fazer. A vida é uma fada invisível. E ela que faz o pernilongo ir picar as
pessoas nas casas de noite; e que manda o grilo abrir buraco; e que ensina o
bombardeiro a bombardear seus atacantes.
— Mas é invisível até para vocês
sacis, que enxergam mais coisas do que nós homens? — perguntou Pedrinho.
— Sim. Eu que enxergo tudo nunca pude
ver a fada Vida. Só vejo os efeitos dela. Quando um passarinho voa, eu vejo o voo
do passarinho, mas não vejo a fada dentro dele a empurrá-lo.
— Então ela deve ser como a gasolina
dos automóveis. Sem gasolina os carros não andam.
— Perfeitamente — concordou o saci —
mas com uma diferença: nos automóveis a gente vê e cheira a gasolina, mas a
Gasolina-Vida ninguém ainda conseguiu ver nem cheirar.
— E morrer? Que é morrer? A Vida então
acaba, como a gasolina do automóvel?
— A Vida muda-se de um ser para outro.
Quando o ser já está muito velho e escangalhado, a Vida acha que não vale mais
a pena continuar lidando com ele e abandona-o. Vai movimentar um novo ser. A
fada invisível diverte-se com isso.
Pedrinho ficou muito impressionado. A
fada invisível também morava dentro dele, e o empurrava para a frente. Era quem
o fazia ter fome e comer, ter sede e beber, ter sono e dormir, querer coisas e
procurá-las. Mas um dia essa boa fada se enjoaria dele. Por quê? Porque ele já
estaria de cabelos brancos e sem os dentes naturais, e com reumatismo nas
juntas, e catacego e com a pele toda enrugada, e com o coração tão fraco que
até para subir a escadinha da varanda seria uma proeza. E então a fada torceria
o nariz e se enjoaria dele: — "Sabe que mais, Senhor Pedrinho, Você está
um caco velho e eu não gosto disso. Vou procurar outro ente" — e o
abandonaria e ele então morreria.
Essa ideia entristeceu Pedrinho,
porque a ideia que não entristece ninguém é bem outra: é a ideia de não morrer
nunca, nunca...
Conversou a respeito com o saci.
— Ora, ora! — disse este. — O que
morre é o corpo só, a parte que em nós tem menos importância. A grande coisa
que há em nós, e nos diferencia das pedras e dos paus podres, que é? A Vida. E
essa não acaba nunca — muda-se dum ser para outro. Tal qual a eletricidade.
Quando a pequena bateria daquela lâmpada elétrica que você tem se descarrega, a
bateria morre — mas morreu a eletricidade? Não. Apenas mudou-se. Saiu daquela
bateria e foi para outra, ou foi para as nuvens, ou foi para onde quis. Assim
como a eletricidade não morre, a Vida também não morre. A Vida é uma espécie de
eletricidade.
— Mas eu não queria que fosse assim —
lamentou Pedrinho. — Tenho dó do meu corpo. Estas mãos, por exemplo, disse ele
abrindo-as. Estou tão acostumado com elas... Desde pequenininhos que estas mãos
fazem tudo o que eu quero, e fico triste de lembrar que um dia vão ficar
paradas, mortas...
— Pior do que perder as mãos é perder
os olhos — disse o saci. — Já reparou como é triste não ter olhos, ou tê-los e
não ver nada? Feche os olhos bem fechados.
Pedrinho fechou-os bem fechados. O
saci disse;
— Pois quando a fada invisível
abandonar o seu corpo, Pedrinho, seus olhos vão ficar assim, cegos — como se
não existissem, e nunca mais serão olhos, que hoje veem tanta coisa, verão
coisa nenhuma. Nunca mais, nunca mais...
Pedrinho sentiu uma tristeza tão
grande que quase chorou — mas o saci deu uma grande risada.
— Bobo! O que nesses seus olhos
enxerga, não são os olhos: é a fada invisível que há dentro de você. A fada é
como o astrônomo no telescópio; e os olhos são como o telescópio do astrônomo. Qual
é o mais importante: o telescópio ou o astrônomo?
— E o astrônomo — disse Pedrinho.
— Pois então alegre-se, porque o
astrônomo não morre nunca. O telescópio é que se desarranja e quebra...
CAPÍTULO 14: O MEDO
Longamente filosofaram os dois, lá debaixo
da grande peroba que os abrigava do sereno da noite. A vida noturna tão intensa
quanto a vida diurna. Entre os homens tudo para durante certa parte da noite,
mas na floresta a vida continua, porque uns seres dormem de dia e vivem de
noite e outros dormem de noite e vivem de dia. Assim que os sabiás, sanhaços e
tico-ticos se recolhem aos seus pousos ou ninhos, começam a sair das tocas as
corujas e morcegos. E as borboletas e mariposas noturnas vêm substituir as
borboletas e mariposas diurnas, que adormecem logo que chega a noite. E as
caças medrosas, tão perseguidas pelos homens, saem de noite a pastar e beber
água nos rios. E os vaga-lumes que de dia não deixam os lugares escuros,
começam a piscar por toda parte com as suas lanterninhas.
— Esses eu sei — disse o menino. — A
vida desses animais eu conheço mais ou menos. O que me interessa agora é a vida
dos tais "entes das trevas", como diz tia Nastácia — os misteriosos —
os que uns dizem que existem e outros juram que não existem.
— Compreendo — disse o saci. — Você
refere-se aos chamados "duendes", "monstros",
"capetas", "gnomos" etc...
— Isso mesmo, amigo saci. Ando
desconfiando que tudo não passa de sonho. Eu não via nada na garrafa, antes de
ter caído naquela modorra. Assim que a modorra chegou, você apareceu na garrafa
e começou a falar. Desconfio que estou sonhando... Desconfio que isto é um
pesadelo... Nos pesadelos é que aparecem monstros horríveis. Por quê? Por que é
que há coisas horríveis?
— Por causa do medo, Pedrinho. Sabe o
que é medo?
O menino gabava-se de não ter medo de
nada exceto de vespa e outros bichinhos venenosos. Mas não ter medo é uma coisa
e saber que o medo existe é outra.
Pedrinho sabia que o medo existe
porque diversas vezes o seu coração pulara de medo. E respondeu:
— Sei, sim. O medo vem da incerteza.
— Isso mesmo — disse o saci. — A mãe
do medo é a incerteza e o pai do medo
é o escuro. Enquanto houver escuro no
mundo, haverá medo. E enquanto houver medo, haverá monstros como o que você vai
ver.
— Mas se a gente vê esses monstros,
então eles existem.
— Perfeitamente. Existem para quem os
vê e não existem para quem não os vê. Por isso digo que os monstros existem e
não existem.
— Não entendo — declarou Pedrinho. —
Se existem, existem. Se não existem, não existem. Uma coisa não pode ao mesmo
tempo existir e não existir.
— Bobinho! — declarou o saci. — Uma
coisa existe quando a gente acredita nela; e como uns acreditam em monstros e
outros não acreditam, os monstros existem e não existem.
Aquela filosofia do saci já estava
dando dor de cabeça no menino, o qual suspirou e disse:
— Basta, amigo saci. Não quero mais
saber de filosofias, quero conhecer os segredos da noite na floresta. Mostre-me
os filhos do medo que você conhece. Desde que há tanta gente medrosa no mundo, deve
haver muitos filhos do medo.
— Se há! — exclamou o saci. — Os
medrosos são os maiores criadores das coisas que existem. Não tem conta o que
lhes sai da imaginação. As mitologias daqueles velhos povos estão cheias de
terríveis criações do medo. Aqui nestas Américas, temos também muitas criações
do medo, não só dos índios chamados aborígenes, como dos negros que vieram da
África.
Pedrinho lembrou-se do tio Barnabé,
que era africano.
— Tio Barnabé, por exemplo — disse ele
— é um danado para saber essas coisas. Conhece todos os filhos do medo. Foi ele
quem me explicou o caso dos sacis. Conte-me no que é que os índios acreditavam.
— Os índios — começou o saci — não
usavam durante a noite aquelas luzes que Dona Benta usa lá no sítio — aqueles
lampiões de querosene. Nem usavam a luz elétrica que há nas cidades. Só usavam
fogueirinhas de pouca luz e, por isso o medo entre os índios era grande. Quanto
maior é o escuro, maior o medo; e quanto maior o medo, mais coisas a imaginação
vai criando. Já ouviu falar no Jurupari?
— Não...
— Pois é o diabo dos índios, o
espírito mau que aparece nos sonhos e transforma os sonhos em pesadelos
horríveis. Insônia, mal-estar, inquietação, tudo que é desagradável, vem desse
Jurupari.
— Mas como é ele?
— Um espírito sem forma, tipo o
espírito mau que se diverte em agarrar os que estão dormindo e causar-lhes
todos os horrores dos pesadelos. E parece que segura as vítimas pela garganta,
porque elas esperneiam e se debatem, mas não podem gritar.
— Oh, eu já tive um pesadelo assim! —
disse o menino.
— Lembro-me muito bem. Eu ia caindo
num buracão enorme. Quis gritar por vovó, mas foi inútil. A voz não saía...
— Pois era o Jurupari que estava
apertando a sua garganta. O divertimento dele é esse. Anda de casa em casa
provocando pesadelos horríveis nos que encontra dormindo.
Nesse momento um ruído entre as folhas
chamou a atenção de ambos.
— Psit!...
— fez o saci. — Atenção... Qualquer coisa vem vindo...
Ficaram os dois imóveis. O coração de
Pedrinho batia apressado.
— O Curupira! — sussurrou o saci,
quando um vulto apareceu. — Veja... Tem cabelos e pés virados para trás.
— Parece um menino peludo — murmurou
Pedrinho.
— E é isso mesmo. É um menino peludo
que toma conta da caça nas florestas. Só admite que os caçadores cacem para
comer. Aos que matam por matar, de malvadeza, e aos que matam fêmeas com
filhotes que ainda não podem viver por si mesmos, o Curupira persegue sem dó.
— Bem feito! Mas como os persegue?
— De mil maneiras. Uma das maneiras é
disfarçar-se em caça e ir iludindo o caçador até que ele se perca no mato e
morra de fome. Outra maneira é transformar em caça os amigos, os filhos ou a
mulher do caçador, de modo que sejam mortos por ele mesmo.
Pedrinho achou que não podia haver
nada mais justo. O saci prosseguiu:
— Esse que vai passando está a pé, mas
em regra o Curupira anda montado num veado e traz na mão uma vara de japecanga.
— Que é japecanga?
— Uma planta que é remédio para doença
do sangue. Também é conhecida como salsaparrilha.
— E por que anda com essa vara de
japecanga? Que ideia!
— Não sei. Ele é que sabe. E o
Curupira tem um cachorro de nome Papamel que não o larga. Assim que avista um
caminhante na estrada, começa logo a cantar:
Currupaco, papaco
Currupaco, papaco...
— Isso é cantiga de papagaio! —
lembrou Pedrinho. — Na casa do Coronel Teodorico há um que só diz isso.
— Pois foi com o Curupira que os
papagaios aprenderam o currupaco. Papagaio não inventa palavras, apenas repete
as que ouve.
Mas o Curupira, com os seus pés
voltados para trás, não se demorou muito por ali. Descobriu um rasto de paca e
lá se foi, com certeza para ver como ela ia passando em sua toca.
— Que horas serão? — perguntou o
menino.
O saci respondeu que faltava pouco
para meia-noite.
— Como sabe?
— Por aquela flor — respondeu o saci indicando uma flor que não estava de todo aberta. — É o meu relógio aqui. Só abre completamente à meia-noite...
CAPÍTULO 15: O BOITATÁ
— Eu ouço falar na Iara e no Boitatá.
Será que poderei ver um deles hoje? — perguntou Pedrinho.
— A Iara pode — respondeu o saci —
porque há uma que mora por aqui em certo ponto do rio; mas Boitatá, não. Só
existe lá pelo Sul.
— Como é?
— Pois o Boitatá é um monstro muito
interessante. Quase que só tem olhos — uns olhos enormes, de fogo. De noite vê
tudo. De dia não enxerga nada —tal qual as corujas. Dizem que certa vez houve
um grande dilúvio em que as águas cobriram todos os campos do Sul, e o Boitatá,
então, subiu ao ponto mais alto de todos. Lá fez um grande buraco e se escondeu
durante todo o tempo do dilúvio. E tantos anos passou no buraco escuro que seu
corpo foi diminuindo e os olhos crescendo — e ficou como é hoje, quase que só
olhos. Afinal as águas do dilúvio baixaram e o Boitatá pôde sair do buraco, e
desde esse tempo não faz outra coisa senão passear pelos campos onde há carniça
de animais mortos. Dizem que às vezes toma a forma de cobra, com aqueles
grandes olhos em lugar de cabeça. Uma cobra de fogo que persegue os gaúchos que
andam a cavalo de noite.
— Eu sei dessa história. É o
fogo-fátuo. Vovó já nos explicou que esses fogos são fosforescências emitidas
pelas podridões. No Sul também existe a célebre história do Negrinho do
Pastoreio. Conhece? Não será uma espécie de saci dos Pampas?
— Não. Trata-se de coisa muito
diferente. Esse negrinho foi apenas um mártir. Sofreu os maiores horrores dum
senhor de escravos muito cruel; morreu e virou santinho.
— Conte a história dele.
E o saci contou.
CAPÍTULO 16: O NEGRINHO
— Havia um fazendeiro, ou estancieiro,
como se diz lá no Sul, que era muito mau para os escravos — isso foi no tempo
em que havia escravidão neste País. Uma vez comprou uma ponta de novilhos para
engordar em seus pastos. Era inverno, um dos piores invernos que por lá houve,
de tanto frio que fazia.
— “Negrinho” — disse o estancieiro
para um molecote da fazenda, que andava por ali. — "Estes novilhos
precisam acostumar-se nos meus pastos, por isso você vai tomar conta deles.
Todas as tardes tem de tocar a ponta inteira para o curral, onde dormirão
fechados, depois de contados por mim. Tome muito tento, hein? Se faltar na
contagem um só que seja, você me paga."
O pobre molecote só tinha quatorze anos de idade; mesmo assim não teve remédio senão ir para o campo tomar conta do gado. Era gado arisco, ainda não querenciado naquela fazenda, de modo que, para começar, logo no primeiro dia um dos novilhos faltou na contagem.
O estancieiro não quis saber de
explicações. Vendo que o número não estava certo, botou o cavalo em que estava
montado para cima do negrinho e deu-lhe uma tremenda sova de chicote. Depois
disse:
— “E agora é ir procurar o novilho que
falta. Se não me der conta dele, eu dou conta de você, seu grandíssimo patife!”
E left!
— outra lambada por despedida.
O moleque, com as costas lanhadas e em
sangue, montou no seu cavalinho e saiu pelos campos atrás do novilho. Depois de
muito procurar, encontrou por fim o fujão, escondido numa moita.
— “E agora?” — pensou consigo. —
“Tenho de laçar este novilho, mas meu laço está que não vale nada, de tão
velho, e eu estou tão escangalhado pela sova que ainda valho menos que o laço.
Mas não há remédio. Tenho que ir até o fim...”
E, aproximando-se com muito jeito,
laçou o novilho.
Se fosse só laçar, estaria tudo muito
bem. Mas tinha de trazer o boizinho por diante, até o curral. Teria ele forças
para isso? O laço aguentaria?
Não aguentou. Com meia dúzia de sacões
o novilho desembaraçou-se do laço, arrebentando-o, e lá se foi pelos campos a
fora, na volada.
E agora? Voltar para casa sem novilho
e sem laço? O furor do estancieiro iria explodir como bomba.
Voltou.
— "Que é do novilho?" —
indagou o patrão assim que o negrinho apareceu no terreiro.
— "Escapou, patrão. Lacei ele,
mas o laço estava podre e não aguentou, como sinhô pode ver por este
pedaço."
Se o estancieiro não fosse um monstro
de maldade, convencer-se-ia logo, vendo pela ponta do laço que o negrinho
andara direito. Quando o laço arrebenta, a culpa da presa escapar não é do
laçador, sim do laço. Não pode haver nada mais claro no mundo. Mas o
estancieiro, que tinha comido cobra naquele dia, em vez de dar-se por
convencido, mais colérico ainda ficou.
— "Cachorro!" — exclamou
espumando de raiva. — "Você vai ter o castigo que merece."
O dito, o feito. Agarrou o negrinho,
amarrou-o pelos pés com a ponta do laço e depois de bater nele com o cabo do
relho até cansar, teve uma ideia diabólica: botá-lo num formigueiro para ser
devorado vivo pelas formigas.
Assim fez. Arrastou-o para um sítio
onde existia um enorme formigueiro de formigas carnívoras, arrancou as roupas
do coitadinho e deixou-o amarrado lá.
No dia seguinte foi ver a vítima, com
a ideia de continuar o castigo, caso o grande criminoso não estivesse morto e
bem morto. Chegando ao formigueiro, levou um grande susto. Em vez do negrinho,
viu uma nuvem que se erguia da terra e logo se sumiu nos ares.
A notícia desse acontecimento correu
mundo. Os homens daquelas bandas começaram a considerar o negrinho como um
mártir que tinha ido direto para o céu.
Com o tempo virou um verdadeiro santo.
Quem quer qualquer coisa, na campanha do Rio Grande, antes de pedi-la a Santo
António ou a outro santo qualquer, pede logo ao Negrinho do Pastoreio.
— E ele faz?
— Está claro que faz — sempre que pode. Como sofreu muito, sabe avaliar os apertos dos outros e ajuda-os no possível.
CAPÍTULO 17: MEIA-NOITE
Nesse ponto da prosa a flor que servia
de relógio abriu-se toda.
— É hora! — exclamou o saci. — Estamos
justamente no meio da noite.
Apesar de valente, Pedrinho não deixou
de sentir um certo arrepio pelo corpo. Primeira vez na vida em que ia passar
uma noite inteira na mata — e não seria uma noite comum, pelo que dizia o saci.
— Não se arreceie de coisa nenhuma.
Deixe tudo por minha conta, que nada de mal há de acontecer — disse o saci,
correndo os olhos em redor como em procura de alguma coisa. — Venha comigo. Há
ali uma peroba minha conhecida, onde encontraremos o melhor dos refúgios.
De fato. Na tal peroba havia um oco a
doze pés acima do chão, muito próprio para esconderijo. Dentro dele os dois
acomodaram-se à vontade e de modo a tudo poderem ver sem perigo de serem
vistos.
— Muito bem — disse o menino — mas só
quero saber como poderei enxergar qualquer coisa de noite, dentro desta
floresta que de dia já é tão escura.
— Para tudo há remédio — foi a
resposta do saci. — Espalharei pelas árvores vizinhas centenares de lanternas
vivas, de modo que você enxergará como se fosse dia. Mas antes é preciso que
coma estas sete frutinhas vermelhas — concluiu apresentando ao menino um
punhado de frutinhas do tamanho de amoras bravas.
Pedrinho desconhecia aquelas frutas e
foi com uma careta que mordeu a primeira, tão amarga era. Mas comeu as sete, e
logo em seguida sentiu uma deliciosa tonteira invadir lhe o corpo, deixando-o
num esquisito estado de consciência jamais sentido. Era como se estivesse dormindo acordado.
Enquanto isso, o saci repetiu em tom
diferente o assobio com que chamara o serra-pau; mas dessa vez não veio
serra-pau nenhum, sim uma enorme quantidade de vaga-lumes, dos grandes e dos
pequenos. Vieram e foram pousando nas folhas e galhos das árvores vizinhas,
como se algum invisível guia lhes estivesse a indicar os lugares. O coração da
floresta clareou num círculo de cem metros de diâmetro, como se fosse batido
pelo luar da lua cheia.
Pedrinho estava a gozar o espetáculo
da floresta iluminada pelas lanterninhas vivas, quando surgiu na claridade o
primeiro saci. E logo outro e outro, e todo um bando de mais de cem. Começaram
a pular, a dançar e a conversar numa linguagem que o menino muito sentiu não
entender.
— Estão combinando as travessuras que
vão fazer durante a noite. Daqui a pouco todos partem, só ficando os pequeninos
que ainda não podem correr mundo — explicou o saci cochichando-lhe ao ouvido.
Pedrinho enxergou um de cara
chamuscada — com certeza o que fora vítima da explosão do pito do tio Barnabé.
Mas os sacis foram se dispersando, de modo que ao cabo de alguns minutos só se
viam por ali os pequeninos como camundongos.
— Para onde foram? — perguntou
Pedrinho.
— Oh, eles espalharam-se por toda
parte. Ainda está por haver um lugarzinho onde saci não entre.
— Até nas garrafas... — disse o menino, sorrindo.
CAPÍTULO 18: SAÍDA DOS SACIS
Nem em sonhos Pedrinho jamais esperou
que pudesse observar um quadro mais curioso. Aqueles minúsculos capetinhas eram
as mais travessas e irrequietas criaturas que se possam imaginar. Não paravam
um só instante. Cabriolavam nos musgos do chão, pulavam como pulgas, dançavam,
inventavam mil travessuras. E tudo faziam sem por um só instante tirarem o
pitinho da boca.
Deram-se cenas muito engraçadas. Três
deles ficaram muito atentos, de narizinho para o ar, observando um morcego que
despreocupadamente comia frutinhas de uma enorme figueira. Depois de
cochicharem entre si, treparam à figueira, com todas as cautelas para não
assustar o morcego. Foram por trás dele e, de repente — zás!... pularam-lhe ao lombo, como perfeitos cow-boys! O morcego levou um grande susto e começou a corcovear no
ar, em voos tontos, enquanto os três cavaleiros, firmes na sela como
carrapatos, davam assobios agudíssimos num grande contentamento.
Outro havia trepado a um arbusto e
descoberto um ninho de beija-flor com três ovinhos. Imediatamente deu brado de
alarma, chamando os companheiros. Reuniu-se um bando em redor do ninho, cujos
ovos foram retirados e levados para o chão. Lá acenderam uma minúscula
fogueirinha e assaram os ovos e os comeram com grande alegria e gulodice.
E quantas outras travessuras não
observou Pedrinho! Os que agarraram um pobre caramujo pelos chifrinhos e
fizeram prodígios para arrancá-lo da casca. Os que se divertiam em caçar
vaga-lumes, matá-los e esfregar pelo corpo a substância fosforescente que os
torna luminosos. Os que cavavam a terra, descobriam minhocas, emendavam três e
quatro para fazer uma corda de pular...
Pedrinho estava completamente
absorvido naquele curioso espetáculo; e assim passaria a noite, se em certo
momento o saci não o puxasse para o fundo do oco.
— Cuidado! — disse ele. — Estou sentindo catinga de lobisomem. Meu faro nunca se engana...
CAPÍTULO 19: LOBISOMEM
Nem bem acabara o saci de pronunciar
estas palavras e Pedrinho notou grande rebuliço entre os sacizinhos. Parece que
também pressentiram qualquer coisa, pois largaram das brincadeiras e
desapareceram na floresta, como por encanto.
Era tempo. O mato começou a estalar,
como se algum animalão por ele viesse rompendo, e por fim surgiu na clareira a
carantonha sinistra de um lobisomem. Parou, farejou o ar como se estivesse
sentindo cheiro de carne humana. O saci, porém, tivera a precaução de emitir um
certo cheirinho a enxofre, e isso iludiu o lobisomem, que continuou o seu
caminho e passou. O cheiro a enxofre disfarça o da carne humana, explicou mais
tarde o saci.
Apesar do medo que sentira, Pedrinho
pôde notar que o monstro tinha a pele virada, isto é, o pelo para dentro e a
carne para fora — uma coisa horrível! No mais, era um perfeito lobo, embora de
dimensões muito mais avantajadas.
Assim que o lobisomem deixou a
clareira, o menino respirou um ah! de
alívio, e pediu o saci que lhe contasse alguma coisa desses monstros.
— Dizem — respondeu o saci — que
quando uma mulher tem sete filhos machos, o sétimo vira lobisomem na noite das
sextas-feiras. Sai então pelos campos, invade os galinheiros (onde come um
produto das galinhas que não é o ovo) e também assalta e devora os cães e as
crianças que encontra pelo caminho. Se alguém ataca um lobisomem e corta-lhe
uma das patas, ele vira imediatamente no homem que é — e esse homem fica por
toda a vida aleijado do membro correspondente à pata cortada.
Pedrinho não resistiu à tentação de
ver de perto as pegadas do monstro e apesar das advertências do saci saiu do
oco para examiná-las à luz de vaga-lume. Mas não teve tempo. Assim que saiu do
oco, ouviu um estranho rumor ao longe, seguido do agudo assobio do saci
chamando-o. Voltou precipitadamente.
— Que há? — indagou.
O saci, que também parecia
amedrontado, puxou-o bem para o fundo do esconderijo, murmurando:
— A mula-sem-cabeça!
CAPÍTULO 20: A MULA-SEM-CABEÇA
A mula-sem-cabeça!
Pedrinho estremeceu. Nenhum duende das
florestas o apavorava mais que esse estranho e incompreensível monstro, a mula-sem-cabeça que vomita fogo pelas
ventas. Muitas histórias a seu respeito tinha ouvido aos caboclos do sertão
e aos negros velhos, embora Dona Benta vivesse dizendo, que tudo não passava de
crendice.
A galopada aproximava-se; já se ouvia
o estalar dos arbustos que em seu desenfreado galopar a mula-sem-cabeça vinha
quebrando. Súbito, parou.
— Vai mudar de rumo! — murmurou o saci
com cara mais alegre.
E de fato foi assim. A mula retomou a
galopada, mas em outra direção, e embora passasse por perto não chegou ao
alcance dos olhos do menino.
— Que pena! — exclamou ele. — Tanta
vontade que eu tinha de conhecer esse monstro...
— Que pena? — repetiu o saci. — Que
felicidade, deve você dizer! A mula-sem-cabeça é o mais sinistro duende que há
no mundo; tem o dom de transtornar a razão de todos que a veem. Por isso é que,
tive medo — não por mim, mas por você...
— Mas qual é a origem dessa mula?
— Uma história muito velha. Dizem que
antigamente houve um rei cuja esposa tinha o misterioso hábito de passear
certas noites pelo cemitério, não consentindo que ninguém a acompanhasse. O rei
incomodou-se com isso e certa noite resolveu segui-la sem que ela o percebesse.
No cemitério deu com uma coisa horrenda: a rainha estava comendo o cadáver de
uma criança enterrada na véspera e que por suas próprias mãos, cheias de anéis,
havia desenterrado! O rei deu um grito. Vendo-se pilhada, a rainha deu outro
grito ainda maior — e imediatamente virou nessa mula-sem-cabeça, que desde
aquele momento nunca mais parou de galopar pelo mundo, sempre vomitando fogo
pelas ventas.
E foi assim que Pedrinho perdeu a
única oportunidade que teve de ficar conhecendo pessoalmente o estranho monstro
que tanto impressiona a imaginação dos nossos sertanejos.
Ela corre sem cessar, espalhando a
loucura por onde passa. Não existe criatura, seja bicho do mato ou gente, que
não prefira ver o diabo em pessoa a ver a tal mula-sem-cabeça. É horrenda!
— Mas como será que vomita fogo pelas
ventas, se as ventas estão na cabeça e ela não tem cabeça?
— Também não entendo; mas é assim — disse o saci.
CAPÍTULO 21: MÁS NOTÍCIAS
Parece que a mula-sem-cabeça tem a
propriedade de afugentar os outros duendes da floresta, porque depois da sua
passagem tudo por ali ficou deserto de seres. Só uma hora mais tarde é que os
sacizinhos foram reaparecendo, um por um e ainda ressabiados. Mas reapareceram
todos, afinal, e recomeçaram as travessuras, apenas interrompidas pela passagem
da Porca dos Sete Leitões e do Caipora.
A Porca dos Sete Leitões é uma
misteriosa porca alva como paina, que passeia acompanhada dos seus sete
leitõezinhos, fossando o chão em procura de um anel enterrado. Só quando achar
esse anel poderá quebrar o encanto e virar na baronesa que já foi. Por suas
maldades no tempo em que havia escravos, um feiticeiro negro transformou-a em
porca e virou seus sete filhos em leitões.
O Caipora é um duende peludo, meio
homem, meio mono, que costuma cavalgar os porcos-do-mato e deter os viajantes
para exigir fumo.
Aquele que por ali passou vinha montado num soberbo queixada de enormes presas salientes, tão corpulento e forte que para passar nem se desviava das pequenas árvores — ia derrubando-as.
Nisto um pio de coruja fez-se ouvir de
perto. O saci apurou os ouvidos, com cara de quem não estava gostando nada
daquilo.
— Aquela coruja está me chamando. Está
dando sinal de que aconteceu qualquer coisa lá no sítio de Dona Benta. Tenho de
ir ver o que é.
E vai deixar-me sozinho aqui? —
murmurou o menino de dentro do seu esconderijo, procurando dominar o medo.
Com o amigo perneta ao lado sentia-se
seguro; mas ficar, por minutos que fosse, entregue a si próprio, naquela mata
cheia de mistérios e ainda mais naquela hora sinistra da meia--noite, era duro
de roer. Pedrinho, entretanto, dominou-se e disse, fazendo das tripas o
coração:
— Pois vá, mas não se demore muito
porque... porque gosto muito da sua prosa, ouviu?
Dando uma risadinha de quem
compreendia perfeitamente o que se passava dentro do seu companheiro, o saci
foi falar com a coruja.
Minutos depois regressou, visivelmente
inquieto.
Percebendo a mudança, Pedrinho indagou
ansioso:
— Que há?
— Coisa muito grave. Quando saí do
sítio de Dona Benta, deixei lá uma coruja, que é minha escrava, com ordem de
avisar-me de qualquer coisa fora do comum que acontecesse. Pois bem: a coruja
acaba de chegar com uma notícia nada agradável.
— Que é? Conte logo...
— A Cuca apareceu no sítio e furtou
Narizinho...
— Não diga! — exclamou o menino, com
os cabelos arrepiados. —Temos que salvá-la, saci! Darei tudo quanto você
quiser, se me ensinar o meio de arrancar Narizinho das unhas desse horrendo
monstro...
A Cuca! Pedrinho ainda tinha bem
fresca na memória a lembrança dessa bruxa das histórias que a ama lhe contara
nos primeiros anos de sua vidinha. Lembrava-se até duns versos que ela cantava
para adormecê-lo:
Durma, nené, que a Cuca já lá vem,
Papai está na roça; mamãezinha,
No Belém.
Lembrava-se que ouvindo essa cantiga
sentia uma ponta de medo e fechava os olhos e logo dormia. Depois que cresceu,
nunca mais ouviu falar na Cuca, a não ser minutos antes, quando o saci lhe
contou que a Cuca era a Rainha das Coisas Feias. Seria verdade? Verdade ou não,
tinha de voltar ao sítio incontinenti e de qualquer maneira.
— Vamos embora, saci! Precisamos
chegar ao sítio o quanto antes, para saber com certeza o que há. Pode ser que a
coruja esteja mentindo, mas também pode ser verdade.
— Mentira não é — disse o saci. —
Minha coruja não mente. Mas pode ser que a menina tenha sido raptada por outro
duende que não a Cuca. E o ponto que temos de verificar.
— E se for a Cuca mesmo? Que havemos
de fazer?
— Não sei. Tenho de pensar nisso. A
Cuca é bastante poderosa, e má como ela só. Mas havemos de dar um jeito. Tenho
cá uma ideia. Venha comigo.
Saíram do oco da peroba e tomaram o
caminho do sítio de Dona Benta. A escuridão da noite não embaraçava em nada ao
saci, que, como filho das trevas, enxergava no escuro ainda melhor do que ao
sol. Mas o pobre Pedrinho padeceu um bocado. Só podia guiar-se pela brasa do
cachimbo do saci, de modo que tropeçou em muito cipó e toco de pau pobre,
afundando os pés em formigueiros e buracos de tatu, espinhando-se na cara e nos
braços. Mas era tal a sua ânsia de chegar, que nem sequer a dor das
arranhaduras sentiu.
— Nesta andadura chegaremos tarde —
disse de repente o saci. — Se você é bom cavaleiro, poderemos ir montados num
porco-do-mato.
— Sou. Já montei até num garrote bem
taludo, que deu os maiores corcovos do mundo sem conseguir derrubar-me.
— Pois então, tudo está resolvido.
Olhe! Lá vem em nosso rumo uma vara de porcos. Suba a esta árvore; assim que eu
der sinal, atire-se de perna aberta para cima do lombo do que vem na frente. Eu
irei na garupa.
Assim fizeram. Subiram os dois a uma árvore baixa; logo que o porco chefe passou por debaixo da árvore, Pedrinho e o saci atiraram-se sobre ele, agarrando-se aos compridos pelos do cangote. Assustado com aquela manobra, o pobre porco disparou numa galopada louca pela mata a fora, na direção desejada pelo saci. Este habilíssimo duendezinho tinha jeito para tudo, inclusive dirigir porcos-do-mato como se os trouxesse seguros por um bom par de rédeas. Pedrinho não percebeu de que modo o saci conseguia isso, nem teve tempo de o perguntar. Todas as suas energias eram poucas para manter-se firme no lombo da cavalgadura de nova espécie. Aquela corrida com o saci dentro da noite iria constituir a mais arrojada aventura da sua vida. Por mais anos que se passassem, ele jamais poderia esquecer-se dela.
CAPÍTULO 22: CHEGAM AO SÍTIO
Depois de comprida Caminhada, o menino
percebeu que já estava em terras do sítio. Viu o rancho do tio Barnabé perto da
ponte. Em seguida os pastos. Finalmente a casa de sua querida vovó.
No terreiro saltaram do porco-do-mato,
o qual, aliviado da carga, prosseguiu na correria com maior velocidade ainda.
Foram entrando. A casa estava
silenciosa, de luzes acesas — coisa muito esquisita àquela hora da madrugada.
— Temos novidade — murmurou o menino.
— Luz acesa a estas horas é mau sinal...
Na sala de jantar encontrou Dona Benta
sentada na sua cadeirinha, com a cabeça apoiada nas mãos. Ao lado dela, tia
Nastácia escarrapachada no chão. De tal modo absorvidas estavam as duas velhas
que nenhuma percebeu a chegada dos valentes salvadores.
— Que há, vovó? — foi gritando
Pedrinho.
Dona Benta ergueu a cabeça e arregalou
os olhos, como se a aparição de Pedrinho fosse um sonho. Tia Nastácia fez o
mesmo, mais assustada do que admirada de ver o menino outra vez.
— Pedrinho! — exclamou a pobre avó com
expressão de esperança nos olhos vermelhos de tanto chorar. — Até que enfim
você apareceu! Estava eu aqui desesperada, porque perder um neto já era demais,
mas perder dois seria coisa acima das minhas forças...
— Perder dois? Quer dizer que
Narizinho sumiu?
— Sim, meu filho! Logo que você
desapareceu desta casa da maneira mais misteriosa, nada dizendo a ninguém,
Narizinho saiu a dar uma volta pelos pastos para ver se o encontrava. Andou por
lá gritando "Pedrinho! Pedrinho!" uma porção de tempo, até que de
repente se calou. Julgamos que tivesse achado o fujão e ficamos muito
contentes. Mas o tempo foi passando e nada de Narizinho voltar. Tia Nastácia e
eu demos uma volta pelo pasto, chegamos até à casa do tio Barnabé e nada. Isso,
às três horas da tarde. Já são duas da madrugada e não tivemos ainda o menor
indício de onde possa estar a coitadinha da minha querida neta...
Dizendo isto Dona Benta rompeu de novo
em choro, acompanhada de tia Nastácia.
Pedrinho contou onde estivera e,
depois de consultar em segredo o saci, consolou Dona Benta e a preta, dizendo
que sabiam onde Narizinho estava e iam buscá-la.
— É verdade isso ou você está
fantasiando para me consolar?
Pedrinho, que nunca mentia, sentiu
tanto dó das pobres velhas que pela primeira vez na vida resolveu enganá-las
com uma mentira de bom tamanho. Deu uma risada e disse:
— Não se assuste, vovó! Narizinho e eu
resolvemos pregar uma grande peça na senhora, mas essa peça é um segredo que
não posso contar. Só amanhã, ao clarear do dia — e deu uma grande risada.
Dona Benta sossegou um pouco e ralhou
severamente com o menino, fazendo ver o transtorno que aquela estranha
"surpresa" lhe causara. Disse que sofria do coração e que se coisas
assim se repetissem o certo era ir para a cova antes do tempo.
Pedrinho sossegou-a como pôde e saiu
para o terreiro, gritando que se acalmasse porque dentro de uma ou duas horas
estaria de volta com a menina.
Lá no terreiro, só com o saci outra
vez, voltou-se para ele e disse:
— E agora, amigo saci, que iremos
fazer?
— Estou armando o meu plano —
respondeu o diabrete. —Já fiz uma inspeção pela casa toda e pelo terreiro.
Estou na pista do raptor.
— Raptor? — repetiu o menino sem nada
compreender.
— Sim. Narizinho foi raptada pela
Cuca. Descobri o rasto da horrenda bruxa perto da porteira. Temos de ir à
caverna onde mora a Cuca e ver o que há.
— Mas se a Cuca é poderosa como você diz, que poderemos fazer?
— Não sei. Lá veremos. O que é preciso
é não desanimar. Se ela é poderosa, eu sou astucioso. A astúcia inúmeras vezes
vence a força. Faça das tripas coração e acompanhe-me. O mau foi termos deixado
escapar o porco que nos trouxe. Precisamos descobrir nova montaria.
— Isso é fácil. O meu cavalinho
pangaré está no pasto de dentro. Manso como é, podemos pegá-lo e cavalgá-lo em
pelo.
— Pois vamos pegar o pangaré —
concordou o saci.
Não foi difícil. Logo que o cavalinho
reconheceu o dono, veio na direção dele no trote. Pedrinho montou, com o saci
na garupa, e lá partiu na galopada.
Pedrinho logo percebeu que qualquer
animal montado pelo saci mudava de modos, ficando não só mais ligeiro do que
nunca e fogoso, como ainda com um senso de direção que parecia sobrenatural.
Inúmeras vezes tinha cavalgado o pangaré e galopado nele; nunca, porém, o vira
assim tão ardente e veloz. Era como se o saci lhe comunicasse alguma força
mágica, que não é própria dos cavalos. Tal foi a velocidade desenvolvida que
Pedrinho não pôde deixar de dizer:
— Mais parece o famoso Pégaso do que
meu velho e lerdo pangaré! Estou estranhando isto...
— Não estranhe coisa nenhuma —
aconselhou o saci. — Tudo são mistérios que só eu sei e que não vale a pena
explicar agora. Não fale comigo, não me atrapalhe. Estou fazendo um grande
esforço de cabeça para aperfeiçoar o meu plano de não só lograr a Cuca malvada
como ainda castigá-la como merece.
— Conte ao menos um pedacinho dessa
grande ideia, para me consolar.
— É uma ideia que aprendi com Dona
Benta — respondeu o saci.
— Com vovó? — inquiriu o menino
admirado. — Como isso, se vovó jamais teve coragem de falar com você?
— Sim, nunca falou comigo, mas muita
coisa do que ela disse, eu ouvi de dentro da garrafa. Meus ouvidos são
apuradíssimos. Lembro-me da história dum pingo d’água que ela contou certa
noite...
— História dum pingo d’água? — repetiu
o menino, cada vez entendendo menos. — Não posso perceber aonde você quer
chegar.
— Quero chegar à caverna da Cuca! —
respondeu o saci brincalhonamente.
Vendo que ele se recusava a contar o
plano que tinha na cabeça, o menino calou-se. Esporeado pelo saci, o pangaré
aumentou ainda mais a velocidade do galope, de modo que antes de meia hora já
se achavam numa região inteiramente nova para o menino.
— Onde estarei eu? — ia ele pensando, sem coragem de interrogar o saci, de tal modo o via concentrado nas combinações do seu célebre plano.
CAPÍTULO 24: A CUCA
Súbito o saci exclamou:
— É lá!
— É lá o quê? — perguntou Pedrinho.
— A caverna da Cuca, naquela montanha
de pedras nuas. Conheço bem estes sítios.
Pedrinho olhou na direção apontada e
só viu grandes massas de sombras. Apesar de ser noite de lua, havia névoas no
céu, de modo que a claridade não dava para perceber mais que o vulto da
montanha estendida à sua frente. Que a região era pedregosa, isso Pedrinho logo
percebeu, tais faíscas tirava do chão o seu cavalinho pangaré. Entretanto, não
tropeçava, o que seria naturalíssimo num animal acostumado a só trotar por bons
caminhos ou campos livres de pedras.
— Estou estranhando este cavalo! — Não
pôde deixar de dizer o menino. — Positivamente não é o mesmo. Nem sequer
tropeça...
— E que lhe dei a comer sete folhas de
uma planta que só eu sei para que serve.
— Logo vi. Seria ótimo que me
ensinasse o segredo dessa planta. Com ela a gente poderia até transformar um
burro morto em Bucéfalo...
O saci, apesar das suas habilidades e
espertezas de demoninho, ignorava a história dos cavalos célebres, e pois ficou
na mesma com a citação do tal Bucéfalo.
— Que bicho é esse? — perguntou.
— Oh, era o cavalo de Alexandre, o
Grande, um cavalo bravíssimo, que nenhum homem, fora Alexandre, jamais
conseguiu domar. Um dia, quando estivermos sossegados, hei de contar a história
dos grandes cavalos.
— Sim — interrompeu o saci — mas agora
feche o bico. Estamos nos domínios da Cuca, onde qualquer imprudência nos pode
custar caro. Essa horrenda bruxa tem ouvidos ainda mais apurados que os meus.
Pedrinho calou-se.
Nisto a lua saiu detrás das nuvens e
ele pôde ver melhor o sítio onde se achava. Bem à frente erguia-se a muralha
duma montanha de pedras negras, com arvoredo retorcido brotando das brechas.
Era uma paisagem diabólica, que punha nos nervos das criaturas os mais
esquisitos arrepios. Lugar bom mesmo para morada de monstros como a Cuca...
— É ali! — murmurou baixinho o saci,
apontando para uma abertura negra. — É ali a entrada da caverna da grande
malvada.
— Como sabe? — perguntou Pedrinho
tolamente.
— Que pergunta! — respondeu o saci com
ironia. — Sei porque sei. Tinha graça que um saci não soubesse onde mora a
Cuca... Mas, silêncio! Temos que entrar com mil cautelas, de arrasto, como se
fôssemos cobras. Não! Não! O melhor é nos disfarçarmos em folhagem.
— Como isso?
— Nada de perguntas. Faça o que eu
fizer, sem discutir — ordenou o diabrete, afastando-se dali para arrancar
braçadas de folhas da árvore mais próxima.
Pedrinho fez o mesmo. Em seguida o
saci lascou da mesma árvore umas embiras, com as quais amarrou a folhagem em
redor do seu corpinho. O menino fez o mesmo.
Ficaram tal qual dois arbustos móveis
e, assim disfarçados, dirigiram-se para a caverna do horrendo monstro, pé ante
pé, tão devagarzinho que levaram vinte minutos para caminhar uns poucos metros.
Súbito, ao dobrarem uma curva, viram
lá num canto a rainha. Estava sentada diante duma fogueira, de modo que a
claridade das chamas permitia que as "folhagens" lhe vissem a
carantonha em toda a sua horrível feiura. Que bicha! Tinha cara de jacaré e
garras nos dedos como os gaviões, Quanto à idade, devia andar para mais de três
mil anos. Era velha como o Tempo.
— Estamos de sorte — disse o saci ao
ouvido do menino.
— A Cuca só dorme uma noite cada sete
anos e chegamos justamente numa dessas noites.
— Como sabe? — indagou Pedrinho, cuja
curiosidade não tinha limites.
O saci danou e ameaçou-o, se
continuasse com tais perguntas, de deixá-lo ali sozinho para ser devorado pelo
monstro. Em seguida queimou na brasa do pito uma misteriosa folha, que havia
apanhado pouco antes sem que o menino o percebesse.
— Esta fumaça vai fazer que o sono da
rainha seja mais pesado do que todas as pedras desta gruta. Depois de estar completamente
adormecida, temos de amarrá-la muitíssimo bem amarrada.
Logo que a fumaça alcançou o focinho
da Cuca, esta, que já estava dando mostras de sono, pendeu a cabeça de lado e
roncou.
— Já caiu no sono — disse o saci. —
Podemos agora tirar nossa roupa de folhas e sair em busca de cipós. Conheço um
cipó que vale por quanta corda existe — até parece cipó próprio de amarrar
cucas...
Despiram-se das folhas e saíram da
caverna muito satisfeitos, porque as coisas estavam correndo às mil maravilhas.
CAPÍTULO 24: O NOVELO DE CIPÓS
Cortado o cipó, trouxeram-no em dois
grandes rolos, e sem receio nenhum, pois os roncos da Cuca mostravam que ela
estava a dormir como quem não dormia há sete anos começaram a amarrá-la dos pés
à cabeça.
Mais uma vez teve Pedrinho de
reconhecer como era hábil e arteiro o seu amigo saci. Amarrar parece coisa
fácil, mas não é. Se Pedrinho houvesse amarrado a Cuca, o mais certo era que
com dois safanões a bruxa se livrasse da cipoada num minuto. Mas com o saci deu-se
coisa diferente. O diabinho parecia nunca ter feito outra coisa na vida.
Amarrou-a com a mesma ciência com que as aranhas amarram as moscas nas suas
teias, sem deixar um ponto fraco. O segredo, explicou ele, era estudar a
amarração de modo que ao despertar a Cuca não pudesse fazer o menor movimento.
Porque se a criatura amarrada puder fazer um pequeno movimento, por menor que
seja, afrouxará um ponto no amarrilho; e depois afrouxará outro ponto — e assim
irá até libertar-se duma vez.
Terminada a obra, em vez de Cuca
viu-se no chão um verdadeiro carretel de cipó.
— Sim, senhor! — exclamou Pedrinho. —
Aprendi mais hoje do que em toda a minha vida. Esta diaba pode ter a força de
cem elefantes, mas duvido que escape da "nossa" amarração.
O saci sorriu daquele
"nossa", mas calou-se. Limitou-se a enxugar o suor da testa.— Temos
agora de acordá-la — disse depois.
— Deixe esse ponto comigo — pediu o
menino. — Com um bom pau de guatambu, eu acordo-a bem acordada.
— Nada de paus! Você não conhece a
Cuca. Um monstro de três mil anos, como ela, havia de rir-se das pauladas dum
menino como você. À força, é impossível lutar com ela. Temos de usar da
astúcia. A arma a empregar vai ser o pingo d’água.
— Lá vem o pingo d’água outra vez! —
exclamou o menino. — Até parece caçoada, querer com um pobre pingo d’água
dominar uma bruxa destas...
— Pois fique sabendo que é o único
meio.
Pedrinho não entendeu, ficando de boca
aberta a ver as manobras do saci. A engenhosa criaturinha trepou que nem macaco
pelas estalactites gotejantes da gruta até alcançar a que ficava bem a prumo
sobre a cabeça da Cuca. E lá, então, encaminhou um fiozinho d’água de modo que
gotejasse lentamente bem no meio da testa da Cuca.
— Basta isso — disse ele. — No começo
ela nem sente; mas com a continuação a dor vai ficando tamanha que há de dar-se
por vencida.
— Sim, senhor! — murmurou o menino. —
Está aí uma invenção que nunca imaginei, mas agora me lembro que vovó nos
contou uma história assim...
— Pois é — disse o saci. — Ambos
ouvimos essa história; mas só eu prestei atenção e já estou tirando partido do
que aprendi. Sou dez vezes mais esperto que você, Pedrinho. Não acha?
O menino não teve remédio senão achar
que era mesmo. Os pingos começaram a cair. Os cem primeiros nenhuma impressão
fizeram na bruxa, cujo sono parecia dos mais gostosos. Daí por diante já esse
sono não pareceu mais tão calmo. Começou a fazer caretas, como se estivesse
sonhando algum sonho horrível. Por fim abriu um olho e depois o outro.
Por vários minutos permaneceu apatetada
vendo diante de si aquelas duas criaturas de mão na cintura, a olharem para ela
sem dizer coisa nenhuma. Depois a sua inteligência foi acordando notou o pingo
a lhe cair na testa. Quis mudar de posição. Não pôde. Só nesse momento viu que
estava amarradinha como se fosse um carretel condenada à mais absoluta
imobilidade.
CAPÍTULO 25: O PINGO D’ÁGUA
A cólera da Cuca foi medonha. Deu um
urro de ouvir-se a dez léguas dali, tamanho e tão horrendo que por um triz
Pedrinho não disparou na corrida. E outro urro, e outro, e mais de cem.
— Berre, demônio! — gritou o
saci.—Berre até rebentar. Pingo d’água não tem ouvidos, nem tem pressa. Esse
que botei pingando nessa horrenda caraça vai divertir-se em pingar no mesmo
lugarzinho por cem anos, se for preciso. Sei que Cuca é bicho duro, mas quero
ver se pode com um pingo d’água que não tem pressa nenhuma, nem tem outra coisa
a fazer na vida senão pingar, pingar, pingar...
A dor que a queda de um pingo atrás do
outro já estava causando nos miolos da bruxa começava a crescer ponto por
ponto. Cada novo pingo era um ponto mais de dor. Naquele andar ela não
suportaria o suplício nem um mês, quanto mais os cem anos com que a ameaçara o
saci.— Parem com esse pingo d’água! — berrou a bruxa.
— Parar? Tinha graça! Se estamos
apenas começando, como quer você que paremos? Já arrumei tudo, de modo que o
pingo pingue durante cem anos, e se não for suficiente, arranjarei as coisas de
modo que depois desses cem anos pingue outros cem. Duzentos anos de pingo na
testa parece-me uma boa conta, não acha?
A Cuca ainda urrou como cem mil onças
feridas, e espumou de cólera, e ameaçou céus e terras. Por fim viu que estava
fazendo papel de boba, pois havia encontrado afinal um adversário mais
inteligente do que ela; e disse:
— Parem com este pingo que já está me
pondo louca! Tenham dó duma pobre velha...
— Pobre velha! A coitadinha... Quem
não a conhece que a compre, bruxa duma figa! Só pararemos com a água se você
nos contar o que fez de Narizinho.
— Hum! — exclamou a bruxa, percebendo
afinal a causa de tudo aquilo. — Já sei...
— Pois se sabe, desembuche. Do
contrário, a sua sina está escrita; há de morrer no maior suplício que existe.
E nada de tentar enganar-nos. É melhor ir dizendo onde está a menina, o mais
depressa possível.
— Farei o que quiserem, mas primeiro
hão de desviar de minha testa este maldito pingo que me está deixando louca.
— Assim será feito — disse o saci
trepando de novo às estalactites e desviando o fiozinho d’água para um lado.
A Cuca deu um suspiro de alívio. Tomou
fôlego, descansou um bocado; depois disse:
— Encantei essa menina que vocês
procuram, mas só poderei romper o encanto se vocês me trouxerem um fio de
cabelo da Iara. Sem isso é impossível.
— Não seja essa a dúvida — respondeu o
saci. Iremos buscar o fio de cabelo da Iara. As, se ao voltarmos, você não
quebrar o encanto, juro que deixarei o pingo pingar nessa testa horrenda, não
cem anos, mas cem mil anos, está ouvindo?
E, dizendo isto, tomou Pedrinho pela mão e retirou-se com ele da caverna.
CAPÍTULO 26: A IARA
— Vamos à cachoeira onde mora a Iara —
disse. — Essa rainha das águas costuma aparecer sobre as pedras nas noites de
lua. E muito possível que possamos surpreendê-la a pentear os seus lindos
cabelos verdes com o pente de ouro que usa.
— Dizem que é criatura muito perigosa
— murmurou Pedrinho.
— Perigosíssima — declarou o saci. —
Todo o cuidado é pouco. A beleza da Iara dói tanto na vista dos homens que os
cega e os puxa para o fundo d’água. A Iara tem a mesma beleza venenosa das
sereias. Você vai fazer tudo direitinho como eu mandar. Do contrário, era uma
vez o neto de Dona Benta!...
Pedrinho prometeu obedecer-lhe
cegamente.
Andaram, andaram, andaram. Por fim
chegaram a uma grande cachoeira cujo ruído já vinham ouvindo de longe.
— É ali — disse o perneta apontando. —
É ali que ela costuma vir pentear-se ao luar. Mas você não pode vê-la. Tem de
ficar bem quietinho, escondido aqui atrás desta pedra e sem licença de pôr os
olhos na Iara. Se não fizer assim, há de arrepender-se amargamente. O menos que
poderá acontecer é ficar cego.
Pedrinho prometeu, e de medo de não
cumprir o prometido foi logo tapando os olhos com as mãos.
O saci partiu, saltando de pedra em
pedra, para logo desaparecer por entre as moitas de samambaias e begônias silvestres.
Vendo-se só, Pedrinho arrependeu-se de
haver prometido conservar-se de olhos fechados. Já tinha visto o Lobisomem, o
Caipora, o Curupira, a Cuca. Por que não havia de ver a Iara também? O que
diziam do poder fatal dos seus encantos certamente que era exagero. Além disso,
poderia usar um recurso: espiar com um olho só. O gosto de contar a toda gente
que tinha visto a famosa Iara valia bem um olho.
Assim pensando, e não podendo por mais tempo resistir à tentação, fez como o saci: foi pulando de pedra em pedra, seguindo o mesmo caminho por ele seguido.
Súbito, estacou, como fulminado pelo
raio. Ao galgar uma pedra mais alta do que as outras, viu, a cinquenta metros
de distância, uma ninfa de deslumbrante beleza, em repouso numa pedra verde de
limo, a pentear com um pente de ouro os longos cabelos verdes cor do mar.
Mirava-se no espelho das águas, que naquele ponto formava uma bacia de
superfície parada. Em torno dela centenas de vaga-lumes descreviam círculos no
ar eram a coroa viva da rainha das águas. Joia bela assim, pensou Pedrinho,
nenhuma rainha da terra jamais possuiu. A tonteira que a vista de Iara causa
nos mortais tomou conta dele. Esqueceu até do seu plano de olhar com um olhe
só. Olhava com os dois, arregaladíssimos, e cem olhos que tivesse, com todos os
cem olharia.
Enquanto isso, ia o saci se
aproximando da mãe-d'água, cautelosamente, com infinitos de astúcia para que
ela nada percebesse. Quando chegou a poucos metros de distância, deu um pulo de
gato e nhoque! furtou-lhe um fio de
cabelo.
O susto da Iara foi grande. Desferiu
um grito e precipitou-se nas águas, desaparecendo.
O saci não esperou por mais. Com
espantosa agilidade de macaco, aos pinotes, saltando as pedras de duas em duas,
de três em três, num momento se achou no ponto onde Pedrinho, ainda no
deslumbramento da beleza, jazia de olhos arregalados, imóvel, feito uma
estátua.
— Louco! — exclamou o saci lançando-se
a ele esfregando-lhe nos olhos um punhado de folha colhidas no momento. — Não
fosse o acaso ter posto aqui ao meu alcance esta planta maravilhosa e você
estaria perdido para sempre. Louco, dez vezes louco, louquíssimo, que você é,
Pedrinho! Por que me desobedeceu?
— Não pude resistir — respondeu o
menino logo que a fala lhe voltou. — Era tão linda, tão linda, tão linda, que
me considerei feliz de perder até os dois olhos em troca do encantamento de
contemplá-la por uns segundos.
— Pois saiba que cometeu uma grande
falta. Não devia pensar unicamente em si, mas também na pobre Dona Benta, que é
tão boa, e na sua mãe e em Narizinho. Eu, apesar de um simples saci, tenho
melhor cabeça do que você, pelo que estou vendo...
Aquelas palavras calaram no menino,
que nada teve a dizer, achando que realmente o saci tinha toda razão.
— Bem — continuou o duendezinho — agora que o perigo já passou, trataremos de voltar à caverna da Cuca. E depressa, antes que amanheça. Lembre-se que prometemos a Dona Benta estar no sítio com a menina sumida logo ao romper da manhã.
CAPÍTULO 27: NA CAVERNA DA CUCA
Voltando os dois na maior pressa para
os domínios da Cuca, encontraram-na com um estranho ar de riso na horrenda
boca, a falar sozinha, como se estivesse muito satisfeita da vida. Assim,
porém, que os viu de novo por lá, a bruxa estremeceu e o seu sorriso
transformou-se numa careta de cólera e desespero.
— Conseguiram voltar? — exclamou
traindo os seus maus pensamentos.
— Está claro que sim! — respondeu o
saci.
— E trouxeram o fio de cabelo da Iara?
— Está claro que sim! — repetiu o
saci. — Ei-lo aqui, disse, apresentando à horrenda megera o verde fio de cabelo
da mãe-d'água.
A Cuca estorceu-se toda dentro do
novelo de cipós num supremo arranco para libertar-se daquela prisão. Nada
conseguindo, pôs-se a vociferar e a soltar pela horrível boca uma espuma
venenosa.
Aquela história da Iara e do fio de
cabelo tinha sido apenas um embuste de que lançara mão para perder o saci e
menino, na certeza de que nenhum deles resistiria aos encantos da Iara. Mas
vendo que se tinha enganado, debatia-se no maior acesso de cólera e desespero,
sentindo-se completamente vencida. E por quem! Por um menino de nove anos e
mais um sacizinho...
Entretanto, pérfida como era, tentou
ainda usar da astúcia. Acalmou-se e disse, num tom muito amável:
—Muito bem. Mas esse fio de cabelo da
Iara não basta para romper o encanto da menina. Preciso ainda de um fio de
barba do Caipora.
— Perfeitamente, Senhora Cuca. Ali em
cima daquelas estalactites está o fio de barba do Caipora de que você precisa —
disse o saci, apontando para o pingo d’água. — Vou já buscá-lo...
Vendo pela firmeza das palavras do
saci que era inútil tentar enganá-lo segunda vez, a Cuca deu um profundo ai e
confessou-se vencida.
— Meus parabéns. Vocês descobriram a
única arma no mundo capaz de vencer uma Cuca — esse miserável pingo d’água...
Farei como querem. Desencantarei a menina. Voltem ao sítio, procurem perto do
pote d’água uma flor azul que lá deixei, arranquem-lhe as pétalas e lancem-nas
ao vento logo ao romper da manhã. Narizinho, que deixei transformada em pedra,
reaparecerá imediatamente.
— E se isso for um embuste como da
primeira vez? — perguntou Pedrinho.
— Não é, reconheço que fui vencida em
teimar. Voltem ao sítio, façam o que eu disse e depois venham desamarrar-me.
Juro que jamais perseguirei qualquer pessoa lá do sítio.
CAPÍTULO 28: DESENCANTAMENTO
A madrugada já vinha rompendo quando
os dois aventureiros chegaram de novo ao sítio. Dona Benta e tia Nastácia,
estavam ainda acordadas, porém mais calmas do que da primeira vez. Assim que os
viram entrar, exclamaram ambas ao mesmo tempo:
— Trouxeram Narizinho?
— Sim, vovó — respondeu Pedrinho sem
ter a certeza de que ela se desencantaria ou não. — Espere mais um minuto que
vai ver de novo sua neta, forte e corada como sempre.
Falou e correu a ver se atrás do pote
existia alguma flor azul.
Lá estava ela, a tal flor azul —
esquisitíssima e diferente de todas as flores conhecidas. O menino tomou-a,
desfolhou-a e lançou as pétalas ao vento, como a Cuca mandara.
Mal acabou de fazer isso, um fato
maravilhoso se deu. Uma pedra do terreiro, que ninguém se lembrava de ter visto
ali, principiou a inchar, a crescer e a tomar forma de gente. Segundos depois
essa forma de gente começou a apresentar os traços de Narizinho, que, por fim,
reapareceu tal qual era, forte e corada como Pedrinho o prometera a Dona Benta.
Foi uma alegria. As duas velhas
atiraram-se à menina e choraram quantas lágrimas ainda tinham dentro de si —
mas desta vez do mais puro contentamento.
— Então, minha filha, que foi que
aconteceu? — perguntou Dona Benta.
Narizinho, ainda tonta, de pouco se
recordava. Minutos após, entretanto, suas ideias principiaram a aclarar-se e
pôde contar o que havia sucedido.
— Estou me lembrando, — disse levando
a mão pela testa. — Foi assim. Eu estava com a Emília debaixo da jabuticabeira.
De repente, uma velha, muito velha e coroca, aproximou-se de mim com um sorriso
muito feio na cara.
— "Que é que a senhora
deseja?" — perguntei-lhe naturalmente.
— "Desejo apenas oferecer à
menina esta linda flor" — respondeu ela, apresentando-me uma flor azul
muito esquisita. —"Cheire; veja que maravilhoso perfume tem."
— Eu, sem desconfiar de coisa nenhuma,
cheirei a tal flor — e imediatamente meu corpo principiou a endurecer. Perdi a
fala; virei pedra. De nada mais me lembro senão que, de repente, fui revivendo
outra vez e aqui estou...
Só então Dona Benta compreendeu que
Pedrinho a tinha enganado para evitar que ela morresse de dor — e perdoou-lhe
aquela boa mentira. Depois fez-lhe grandes elogios, quando soube do muito que
ele tivera de lutar para que a horrenda Cuca revivesse a menina.
— Vejo, Pedrinho, que você é um
verdadeiro herói. Essa proeza que acaba de realizar até merece aparecer num
livro como uma das mais notáveis que um menino da sua idade ainda praticou.
— Espere, vovó — disse Pedrinho com
modéstia. — Se a senhora emprega essas palavras para mim, que palavras
empregará para o meu amigo saci? Na verdade foi ele quem fez tudo. Sem a sua
astúcia e conhecimento da vida misteriosa da floresta e dos hábitos da Cuca, eu
sozinho nada teria conseguido. Absolutamente nada. Agradeça ao saci, que não
faz senão dar o seu ao seu dono, como diz tia Nastácia.
Todos se voltaram para o saci. Mas...
— Que é do saci? — exclamaram a um
tempo. Procuraram-no por toda parte, inutilmente. O heroico duendezinho duma
perna só havia desaparecido.
— Ingrato! — exclamou Narizinho co
tristeza. — Foi-se embora sem nem ao menos despedir-se de mim...
De noite, porém, ao deitar-se,
verificou que havia sido injusta. Em cima do travesseiro encontrou um raminho
de miosótis que não podia ter sido posto lá senão pelo saci. Miosótis em inglês
é forguet-me-not — que significa
“não-te-esqueças-de-mim”.
— Que alma poética ele tem! — murmurou
a menina, comovida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário