Manuel Borba, depois de trabalhar a existência
inteira, velho e cansado já, próximo do fim, via-se, como no princípio da sua
carreira, cada vez mais pobre, ganhando o indispensável para não morrer de
fome. Toda a sua fortuna consistia em uma roça que cultivava com os dois
filhos.
Ao chegar a casa, uma tarde, teve notícia que
a mulher dera à luz um menino muito desenvolvido e forte que ficou se chamando
Anselmo. Não obstante ser pobre, ficou muito contente com o nascimento do
filho, que prosperava dia a dia, a olhos vistos, cada vez mais, a ponto de ser,
ao cabo de um mês, do tamanho de um homem. Além disso, comia como um gigante;
só se contentava com um boi inteiro para jantar!
Borba, vendo que não podia sustentar um filho
assim, aconselhou-se com Barbosa, sua mulher, e combinaram os dois de mandar o
rapaz procurar a vida.
Anselmo não se incomodou com a notícia. Pediu
apenas que o pai mandasse fazer uma bengala de ferro, uma foice e um machado,
grandes e pesados.
Assim que tais instrumentos ficaram prontos,
partiu ele a correr mundo.
***
Depois de muito andar, chegou à casa de um
lavrador, e ofereceu-lhe os seus serviços, que foram aceitos.
Sendo incumbido de fazer uma roça, em três ou
quatro foiçadas, pôs abaixo todas as matas da fazenda.
O fazendeiro, assustado com semelhante
empregado, deu uma desculpa qualquer, e despediu-o, dizendo que não precisava
mais dele.
À hora do jantar, quando apresentaram a comida comum, recusou-se Anselmo a jantar, dizendo que, o que estava na mesa não chegava nem para o buraco de um dente, e pediu, para aliviar um pouco a fome com que estava, um boi e dois sacos de farinha.
O fazendeiro mandou dar-lhe o que pedia, e
muito admirado, ficou quando o viu devorar tudo. Então, cada vez mais
amedrontado, despediu-o.
Partiu o nosso herói em busca de novo emprego
chegando ao palácio de um rei.
Perguntando o que sabia fazer, Anselmo
respondeu:
— Saberá vossa real majestade que sei fazer,
tudo, e sou capaz de tudo neste mundo.
À vista disso, o rei, para experimentá-lo,
mandou-o caçar seis leões, que andavam devastando os arredores.
O moço aceitou a incumbência, e pediu um
carro com três juntas de bois.
Passou seis dias nas matas, onde estavam os
leões. Em cada dia matava um boi para comer, e prendia um leão, que amansava e
atrelava ao carro.
No fim desse tempo, cortou árvores das mais
grossas e trouxe-as para a cidade, no carro puxado pelos leões amansados.
O povo, ao ver aquele carro com árvores
enormes, puxado por leões, correu a contar o que via.
Assim que Anselmo chegou à praça, em frente
ao palácio real, o rei mandou que os soldados matassem os seis animais
ferozes, e avisassem o homem que saísse o mais depressa possível, sob pena de
ser fuzilado.
Recebendo tal intimação, ficou Anselmo
admirado de ter feito coisa que zangasse a real majestade, e indagando porque
motivo o expulsavam do reino, não obteve resposta alguma.
Desconsolado por ver que ninguém queria aceitar
seus serviços, partiu da cidade, protestando que não se empregaria mais.
— Agora vou trabalhar por minha conta; não
quero mais saber de patrões, pois tenho sido infeliz com meus amos. Quero
experimentar a vida, sem ter que dar satisfação a pessoa alguma.
Jornadeava ele por uma estrada muito larga e
muito comprida, a ponto de se perder de vista, quando, depois de muito
caminhar, encontrou um rio.
Parando, para descansar, viu um homem
atravessá-lo, sem se molhar.
— Como é que você anda na água, sem se molhar?
indagou. Como se chama você?
— Eu me chamo o Homem-peixe. Você admirado de
me ver passar este riacho; quanto mais se souber que acabei de atravessar todo
o mar!
— Quer vir em minha companhia? perguntou
Anselmo.
— Quero, disse o Homem-peixe.
— Pois então, passe-me para o outro lado.
O Homem-peixe carregou-o nas costas e caminhou
para a outra margem.
Seguiram os dois companheiros, quando, depois
de andarem muito tempo, encontraram um homem cortando cipó e emendando-o para
fazer um laço.
— Que fazes aí, homem? Como te chamas?
— Chamo-me o Homem-laçador. Estou a fazer
este laço para laçar uma boiada que está pastando num campo, dez léguas daqui.
— O que me dizes, Homem-laçador, é admirável!
Queres vir em nossa companhia?
— Pois não; e até estimo, porque não gosto de
viajar só.
E lá seguiram os três companheiros a procurar
a vida, por este mundo de Cristo em fora.
Pararam numa casa abandonada, no meio de uma
floresta, e combinaram que o Homem-peixe fosse buscar comida para os três.
O companheiro encontrou no caminho um
molequinho, muito preto, com uma carapuça dourada na cabeça, que lhe pediu fogo
para o cachimbo.
O Homem-peixe, não quis dá-lo; e o moleque,
para se vingar, arrumou-lhe o cachimbo na cabeça, com tanta força, que o
prostrou sem sentidos, no chão.
Quando voltou a si, já não encontrou mais o
pretinho, mas dirigiu-se para casa, contando aos outros o que lhe havia
sucedido.
Disse o Homem-laçador:
— Qual Homem-peixe, você é, um moleirão!
Amanhã quem vai sou eu; quero ver se o molecote me põe também por terra, sem
sentidos.
E assim fez.
Estava já o laçador muito longe, quando lhe
apareceu o moleque, pedindo-lhe fogo para o cachimbo.
O laçador não quis dar, e os dois começaram a
lutar numa briga muito feia que durou mais de uma hora. Afinal, o moleque de
carapuça dourada lhe deu com o cachimbo tal pancada na cabeça, que o pôs por
terra, desacordado.
Quando o laçador deu acordo de si, voltou
envergonhado para casa e contou aos companheiros o que lhe acontecera.
Anselmo começou a caçoar, chamando ambos maricas,
moleirões, e disse que era ele quem iria no dia seguinte.
De manhã cedo partiu com a sua bengala de
ferro e, depois de muito andar, em um lugar afastado encontrou o tal moleque,
que lhe disse:
— Olá, Anselmo, como vai?...
— Bem obrigado. E tu, como vais, moleque?
— Bem. Muito obrigado. Dá-me fogo para
acender o meu cachimbo?
— Não, moleque, não dou; e retira-te já
daqui, senão... senão...
Meteu-lhe a bengala, e o moleque meteu-lhe o
cachimbo.
Travaram uma luta medonha de mais de duas
horas.
Afinal Anselmo deu-lhe com a bengala de
ferro, com tanta força, que o moleque se viu de repente sem a carapuça dourada
na cabeça.
Anselmo apanhou-a, mais que depressa.
— Dê-me a minha carapuça, pelo amor de seu
pai! dizia o moleque, de joelhos.
— Só ta darei, se me deres as três princesas
que tens em teu poder, respondeu o valentão.
— Não posso, porque não são minhas.
— Então, vai-te daqui, negro amaldiçoado!
O negro, que era o diabo, que vigiava as três
princesas, foi andando... Anselmo acompanhou.
De repente o moleque entrou por um buraco,
feito na terra, sempre acompanhado por Anselmo, que não deixava de o perseguir.
Chegaram a um palácio riquíssimo, todo de
ouro, onde havia muita gente trabalhando em caldeiras, em fogo, em ferro, e
outros metais.
Aí chegando, o moleque pensou que o outro
tinha medo do que via, e pediu novamente a sua carapuça. Respondeu Anselmo que
só a entregaria se o negro lhe desse as três princesas.
O diabo, vendo que era o mais fraco, resolveu-se
a entregá-las.
— Agora, só te darei a carapuça se me puseres
lá fora, disse Anselmo.
Satanás não quis, e ele meteu-lhe outra vez a
bengala.
Vendo o diabo que de todo não podia com
Anselmo, fez tudo quanto ele exigia.
O Homem-peixe e o laçador, que tinham ido à
espreita, assim que viram três moças lindas saírem daquele buraco, fugiram com
elas, enganando dessa forma o companheiro.
***
Anselmo não se incomodou muito com aquilo.
Recebera ele de cada uma das três moças um
lenço, e sabia que mais tarde ou mais cedo havia de lhes descobrir o paradeiro.
O Homem-peixe e o Homem-laçador souberam que
elas eram filhas de um rei poderoso, que habitava não longe dali, se fossem por
mar, e muito longe se a caminhada fosse feita por terra. Seriam, então,
precisos dois anos para se chegar lá.
O Homem-peixe disse:
— Com isso não me incomodo, minhas formosas
princesas, pois até ando melhor na água do que em terra; o que está me
impedindo de fazer a viagem por mar é que não as posso levar e mais o meu
companheiro.
— Não seja esta a dúvida, Homem-peixe. Se te
comprometeres a nos levar por mar, sem perigo, vou fazer um laço para prender
as três lindas princesas e nós dois as levaremos.
Ficaram combinados.
Chegados ao palácio, o rei recebeu com
alegria as filhas, e já tratava os dois companheiros como filhos.
Nesse intervalo, Anselmo, cansado de procurar
as três princesas, sonhou que os três lenços que elas lhes haviam dado eram
encantados, e se ele quisesse o conduziriam ao palácio do rei.
Acordou muito satisfeito, apanhou o primeiro
lenço e disse:
— Voa, meu lenço, para o colo de tua dona.
O lenço virou papagaio, e desapareceu.
Quando a princesa o viu, lembrou-se do seu
salvador e disse:
— Meu pai, só me casarei com o dono deste
lenço.
Anselmo fez o mesmo com o segundo, que foi no
colo da segunda princesa, que repetiu ao rei o que sua irmã dissera.
Vendo os dois lenços se transformarem em dois
papagaios, Anselmo pegou no terceiro:
— Voa, lenço que a princesa me deu, voa e
leva-me até o castelo del-rei, seu pai.
O lenço transformou-se num grande papagaio
com um selinzinho de ouro nas costas.
Anselmo cavalgou-o, e quando deu acordo
estava no palácio.
Descoberto o embuste, Anselmo casou-se com a
mais bonita das princesas. Os dois companheiros foram expulsos, depois de bem
castigados.
As outras duas princesas casaram-se com dois
príncipes vizinhos, senhores de um reino amigo.
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Ano de publicação: 1896.
Origem: Brasil (Reconto)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)
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