sábado, 4 de dezembro de 2021

O homem pequeno (Fábula), de Monteiro Lobato

 

O HOMEM PEQUENO
 

Uma vez o príncipe D. João saiu a caçar com alguns amigos, internando-se na floresta. O príncipe, que ia na frente, acabou por distanciar-se dos companheiros, perdendo-se no mato. Quis sair da floresta e não pôde. Andava de cá para lá às tontas, sem conseguir orientação. De repente avistou um muro alto que nem uma montanha, e para lá se dirigiu.

Soube que estava num reino pertencente a uma família de gigantes. O dono da casa era tão alto que dava com a cabeça nas nuvens. Era casado com uma mulher também gigantesca e tinha uma filha também giganta, de nome Guimara.

Quando o gigante viu o príncipe, ficou muito espantado. "Que andas a fazer por aqui, homenzinho?"

O príncipe contou-lhe sua história e o gigante disse: "Pois bem. Posso admiti-lo como meu criado", e o príncipe, que não tinha outro remédio, ficou morando lá.

A filha do gigante achou-o tão engraçadinho que por ele se apaixonou. O pai percebeu a coisa. Chamou o príncipe e disse-lhe:

— É verdade, pequenote, que andas dizendo que és capaz de derrubar numa noite o muro do meu castelo e de construir um palácio?

— Não, senhor meu amo — respondeu o príncipe. — Eu nunca falei semelhante coisa; mas se meu amo manda, farei isso.

— Pois quero ver — disse o rei.

D. João saiu dali muito triste, indo ter com a sua amada Guimara, à qual contou a conversa.

— Não se incomode — respondeu Guimara. — Eu arrumarei tudo. E assim foi. Graças às suas artes mágicas, Guimara derrubou o muro durante a noite e ergueu um palácio maravilhoso. Quando na manhã do dia seguinte o gigante viu aquilo, assombrou-se.

— Olá, homem pequeno, foste tu mesmo que fizeste isso ou foi minha filha Guimara?

— Fui eu, senhor — mentiu o príncipe.

Passaram-se uns dias. O gigante, cada vez mais desconfiado levantou outro aleive contra o príncipe.

— Escuta cá, homenzinho, andam dizendo por aí que te gabas de seres capaz de fazer daquele monte selvagem um lindo jardim de flores. É certo?

— Eu nada disse, mas se meu amo me manda fazer isso, farei.

— Pois faze, que do contrário te cortarei essa cabecinha.

O príncipe foi ter com Guimara, que o sossegou dizendo: "Não se aflija, meu amor, eu arrumarei tudo."

E assim foi. À noite ela fugiu do seu quarto e junto com o príncipe trabalhou no morro, de modo a transformar tudo aquilo no mais belo dos jardins.

Quando pela manhã o gigante viu a obra, ficou furioso, e resolveu lá consigo que o melhor era dar cabo do homenzinho e de Guimara, pois o tal jardim só podia ser obra dela.

Mas Guimara leu o pensamento do gigante e convidou o príncipe a fugir antes que anoitecesse. E fugiram, cada qual num cavalo que avançava cem léguas de cada passada. O pai saiu em sua perseguição, montado num cavalo que avançava cento e vinte léguas de cada passada.

Vendo que seriam alcançados, Guimara se transformou num riacho; virou o príncipe num negro velho; as selas, num canteiro de cebolas; uma espingarda que levavam, em beija-flor; e os cavalos, em árvores. O gigante, ao ver aquele negro velho tomando banho no riacho, parou para pedir informações.

— Meu negro velho — disse ele — não viu por acaso, de passagem por aqui, dois cavaleiros, um moço e uma princesa?

O negro olhou para o canteiro de cebolas e respondeu: "Plantei estas cebolas mas não sei se darão boas." E repetia sempre essas mesmas palavras, por mais que o gigante insistisse em saber do moço e da moça.

Aborrecido com o negro, o gigante fez a mesma pergunta ao beija-flor — mas a resposta foi uma bicada que quase lhe furou os olhos. Desesperado da vida, o gigante voltou para casa.

Quando sua mulher soube de tudo, gritou logo:

— Que grande idiota és tu! Pois não percebeste que o riacho era a Guimara, o negro o homenzinho, o beija-flor a espingarda, o canteiro de cebolas eram as selas, e as árvores os cavalos?

O gigante voltou para lá com a maior rapidez, mas não encontrou mais nada daquilo. Guimara e o príncipe haviam desencantado e avançado caminho, para de novo se transformarem, muito adiante, ela numa igreja, ele num padre, a espingarda num missal, e mudarem as selas num altar e os cavalos em dois sinos. O gigante varou pela igreja adentro, perguntando:

— "Senhor padre, não viu passarem por aqui dois cavaleiros, um moço e uma princesa?"

O padre, que fingia dizer missa, respondeu com um versinho: 

Não ouço o que me diz, não...
Sou um padre ermitão,
Devoto da Conceição,
Não ouço o que me diz não...
Dominus vobiscum
 

Por mais que o gigante repetisse a pergunta, o padre respondia sempre do mesmo modo. Por fim, desesperado, o gigante voltou para casa e contou tudo à mulher.

— Que tolo que és! Volta para lá no galope. A igreja é Guimara, o padre é o homenzinho, o altar são as selas, o missal é a espingarda e os sinos são os cavalos.

O gigante voltou no galope, mas nada mais viu. Os fugitivos já estavam longe. O gigante, porém, breve os avistou, e então Guimara soltou no ar um punhado de cinzas, que se transformou no mais espesso nevoeiro. O gigante, não podendo enxergar mais nada, voltou para o seu castelo danadíssimo da vida.

Os dois fugitivos, finalmente, chegaram ao palácio do príncipe. E então Guimara lhe pediu que ao chegar não beijasse a mão de sua tia. O príncipe prometeu, mas ao entrar no palácio a primeira pessoa que viu foi sua tia — e sem lembrar-se da promessa beijou-lhe a mão. Assim que fez isso, esqueceu completamente Guimara e tudo quanto se tinha passado.

O encantamento de Guimara havia desaparecido desde o instante em que ela pisou naquele reinado estranho. Ficou do tamanho de todas as moças e muito triste, porque o seu adorado príncipe já não tinha a menor ideia dela, nem do que ela fizera para lhe salvar a vida. E acabou-se a história.

 

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Ano de publicação: 1922.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

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