domingo, 12 de dezembro de 2021

Manuel do Riachão (Contos do Folclore), Viriato Padilha

 

MANUEL DO RIACHÃO

É bastante conhecida em diversos estados brasileiros, principalmente no norte, a lenda da misteriosa personagem a quem o povo deu o nome de Manuel do Riachão e cujas aventuras satânicas são contadas em verso rústico do Piauí a Sergipe.

Nalguns lugares se acredita que Manuel do Riachão era o Diabo em pessoa. Noutros o apresentam simplesmente como um indivíduo malfazejo e nefasto, que vendera a alma ao príncipe da treva, a fim de se tornar o primeiro tocador de viola e improvisador dos batuques sertanejos.

Em toda parte, porém, Manuel do Riachão figura na tradição como bardo sem rival, se afirmando que sua parada em qualquer lugar era prenúncio de calamidade súbita e inexplicável. O povo guarda lembrança de que secavam os regatos, não obstante a regularidade das chuvas, se tresmalhavam os rebanhos, surgiam enfermidades no gado, desmereciam as lavouras, e até as pessoas se sentiam atacadas de sofrimentos estranhos, quando Manuel do Riachão, de viola a tiracolo, atravessava qualquer paragem.

Assim, apesar da admiração que causava por seus altos dotes de improvisador inspirado e violeiro habilíssimo, Manuel do Riachão não podia demorar muito tempo nalgum ponto. Desde logo a indignação popular se levantava contra seus singulares costumes, e nela procurava um derivativo por causa dos males que começavam a afligir a terra, sendo o pobre violeiro obrigado a enfronhar a viola, e buscar outro lugar, até que, sendo ali também perseguido, recomeçasse a eterna peregrinação. Assim vivia Manuel do Riachão. Os lugares que de preferência frequentava eram as tabernas, as mesas de jogo e, principalmente, os batuques, pelo prazer de derrotar no verso os mais afamados cantores.

Descrevamos a forma pela qual o povo do norte conta como o sombrio Manuel do Riachão desapareceu dos sambas sertanejos.

***

Numa noite de São João se folgava ruidosamente em modesta casa do sertão cearense. No terreiro crepitava grande fogueira que iluminava toda a frente da habitação. A criançada pagodeava em redor do fogo, assando batata e macaxeira no borralho. Na sala roncava o sapateado, puxado vigorosamente por uns cabras desempenados, vaqueiros, comboieiros e roceiros, e por moças sadias, robustas e esbeltas. Todas aquelas pessoas, ali reunidas em alegre folguedo, se conheciam muito e eram parentes próximos, afastados ou vizinhos bastante íntimos.

Assim se notava em todas as fisionomias bem-estar completo, satisfação imensa, principalmente nos rapazes e moças, quase todos de namoro entabulado ou de casamento ajustado.

Foi no meio dessa festa simples e boa que se lembrou um dia aparecer o misterioso indivíduo cujo nome encabeça estas linhas: Manuel do Riachão, o mais afamado e fantástico violeiro dos sertões do norte.

***

Esse bardo errante, sempre precedido de antipatia popular, se vira obrigado a abandonar Icó, onde assombrara pela perícia em improvisar mas onde também incorrera gravemente no desagrado público por haver desrespeitado, com uma cantada obscena, uma procissão que se fazia no lugar, sacrilégio que coincidiu com o aparecimento duma praga de lagarta que devastou completamente os roçados de milho.

A calamidade foi tomada como conseqüência do desacato religioso, e Manuel do Riachão, temendo violência contra sua pessoa, bebeu o último gole de aguardente, nas tabernas do Icó, pôs a preciosa viola em bandoleira e até lá foi, estrada fora, procurando novos auditórios pra exibição de seus dotes de improvisador.

Gastou dias em atravessar a serra do Pereiro, porém na noite de São João já estava na chapada do Apodi, sôfrego pra cantar, visto como no caminho não encontrara parceiro com o qual se divertir.

Manuel do Riachão passava na estrada, quando viu a fogueira e a festa à qual já nos referimos. Sem hesitação se encaminhou ao lugar da patuscada e, se aproveitando dum momento de suspensão do batuque, chamou a viola ao peito, e cantou, com voz forte, estas duas quadras:

Senhora dona da festa
me ouça, faça favô
Não trago fome nem sede
nem me atormenta o calô
Só quero, senhora minha
dizer aos convidados
que, quando meu peito se abre
se esconde o mais pintado.

Todas as pessoas que estavam na sala, e bem assim a criançada que se divertia em torno da fogueira, correram a perto de Manuel do Riachão, que, em pé, no meio do terreiro, continuava tangendo o rasgado na viola, sem dizer palavra, como esperando que alguém aceitasse o atrevido desafio. Muito alto, magro e de longo cavanhaque cor de barba de milho, tinha a perna arqueada em postura mefistofélica, e um riso sardônico arregaçava o canto dos lábios magros e arroxeados.

Naquela festa não haveria alguém que aceitasse o desafio daquele sujeito? Era o que todos, com os olhos, se perguntavam mutuamente, ansiosos pra uma lição ao insolente, e ao mesmo tempo desejosos de novo divertimento.

Não esperaram muito tempo os foliões. Dentre a chusma saiu logo um crioulo de gaforinha crescida, Xico Bordão, que, apanhando uma viola, respondeu no mesmo tom e música ao violeiro errante:

No tempo em que eu cantava
Meu peito retinia
Dava um grito no Icó
E no Cariri se ouvia
Senhora dona da casa
faça favô, mande entrá
Quem a tua porta bate
pedindo só pra cantá.

Uma salva estrondosa de palma, acompanhada de gritaria dos meninos, acolheu a cantiga de Xico Bordão, que, indo ao encontro do Riachão, que continuava sempre de perna arqueada e viola ao peito, o cumprimentou e, o tomando no braço, o introduziu na sala. Rapazes e moças se sentaram nos bancos dispostos ao correr das paredes, e tendo a dona da casa chegado dois tamboretes aos contendores, estes se abancaram cerimoniosamente, e depois de chupitar cada um seu copinho de aguardente, começou o torneio poético e musical, que não durou muito, pois Bordão se declarou logo vencido e se retirou da sala, envergonhado.

Estimulados os brios dos assistentes pela derrota do companheiro, empurraram ao meio do aposento outro cantador, Xico Casa-Velha, que também tinha suas fumaça de improvisador.

Este, porém, no fim de duas quadras esmoreceu.

Dizendo seu nome numa quadrinha, Riachão se aproveitou dele, e respondeu que toda a casa velha era tapera. Isso foi suficiente pra confundir o adversário.

Ainda um terceiro cantador se sentou no fatídico tamborete: Era Totonho, filho da dona da casa, e esse também foi levado à parede com a mesma facilidade.

Então ninguém mais quis cantar com o homem magro do cavanhaque vermelho. E Manuel do Riachão, vendo que nenhum cantador vinha ocupar o tamborete vazio, se levantou, fez uma grande mesura, e, recuando até a porta, se preparava pra se despedir em verso, como é costume, quando surgiu na sala, com um machete a tiracolo, e sem que alguém soubesse onde entrara, um rapaz muito pálido, de longo cabelo dourado e anelado, olhos profundamente azuis, envolvido num amplo ponche-pala de cor cinzenta clara.

Esse moço se adiantou na sala, e se sentando no tamborete onde foram vencidos Bordão, Casa-Velha e Totonho, cantou com voz dulcíssima a seguinte quadrinha, em desafio, se fazendo acompanhar no machete:

Seu Manué do Riachão
Não dê já a despedida
Torne a afinar a viola
Que o dia vem longe ainda.

Manuel do Riachão, se sentindo nomear em lugar em que julgava ser completamente desconhecido, teve um estremeção e fixou os olhos fundos e vivos como brasas no desconhecido que continuava dedilhando no machete, até então conservando a vista abaixada, como que por timidez e recato. A ligeira emoção do violeiro não foi no entanto percebida pelos foliões. E ele, procurando disfarçar, respondeu ao moço com esta quadra arrogante:

Bem sei que o dia vem longe
Temos tempo pra trová
Mas vosmecê se arrepende
Antes do galo cantá.

O moço de olhos cor do céu continuava de fronte baixa, e em na fisionomia, que parecia anuviada por funda tristeza, nem sinal de emoção denunciou ao ouvir a resposta atrevida de Riachão.

Ao mesmo tempo que em todos os circunstantes crescia o interesse pelo desafio um pressentimento vago lhes dizia que Manuel do Riachão, segundo a frase popular, se estreparia naquela topada. Assim, foi com satisfação que viram o moço do machete ferir de novo o instrumento com as mãos, que eram duma brancura de cera de carnaúba, e soltar estes versos:

Um ano tão bom de inverno
Que pecados são os teu!
Seu Manué do Riachão
Teu riacho não correu.

Manuel do Riachão tornou a fitar os olhos de brasa no moço do ponche-pala cinzento. O famoso violeiro como procurava saber quem parecia querer revelar ao auditório matuto sua misteriosa e sombria natureza. No entanto não deixou de fazer entrada em tempo e responder com visível mau-humor nos seguintes versos:

Se o riacho não correu
não foi por falta de inverno
É que as águas afundaram
Foram ferver no inferno.

Os caipiras começaram a se admirar da feição estranha que tomava o desafio poético. Quem seriam os dois singulares violeiros, tão estranhos e diferentes nos modos e nas figuras?, perguntavam, chegando as bocas aos ouvidos uns dos outros. Quando as últimas notas que acompanhavam os versos do Riachão se extinguiram o moço triste do machete descerrou outra vez os lábios, ainda sem levantar a fronte, e cantou:

Seu Manué do Riachão
que triste sina é a tua
Na noite que vosmecê canta
no céu não se vê a Lua.

Riachão se torceu no tamborete, incomodado por essa segunda investida a sua reputação, e apenas o moço cor de cera acabava de desferir a última sílaba do verso, bramiu com voz forte, na qual se percebia claramente a raiva e o despeito:

Se a Lua não aparece
Na noite de meu descante
É, moço do machetinho
Que eu canto só no minguante.

Na verdade Manuel do Riachão era um repentista admirável, e essa resposta tão adequada causou a admiração dos sertanejos. O moço louro, porém, continuava impassível e de olhos fitos no chão. De seu amplo ponche-pala cinzento se flutuava como uma neblina levemente dourada que o envolvia todo, e assim que lhe coube a vez de cantar, gemeu no machetinho, com voz que mais parecia um rosário de suspiros docemente abemolados:

Padre, Filho, Espírito Santo
É o santo sinal da cruz
Bendito seja teu nome
Senhora mãe de Jesus.

E ao mesmo tempo que cantava esta copla o moço do machetinho levantava lentamente os olhos do chão, até os fitar em cheio em Manuel do Riachão, que, sem se saber por quê, se perturbou com a luz serena, profundamente azul que deles jorrava e, em sua confusão, deu uma nota falsa no acompanhamento e não pôde encontrar logo a réplica.

O maço do machetinho tornou a baixar os grandes olhos e, antes que o outro se restabelecesse completamente, lhe despediu mais esta quadra:

Seu Manué do Riachão
um caburé suspirô
Tempere, amigo, a viola
que o bordão desafinô.

Então Manuel do Riachão já se acalmara, e assim respondeu de pronto:

Minha viola, seu moço, tropica, mas não focinha. Tem ganho em tecla função coroa e grau de rainha.

No entanto, apesar dessa bravata de cantador laureado, Manuel do Riachão denunciava no semblante esquálido crescente perturbação. E embora só o encarara de frente uma vez, o moço pálido bem percebia, e assim saiu com esta:

Seu Manué do Riachão,
Uma coisa está se vendo
Tua viola enrouquece
tua voz esmorecendo.

Era verdade o que dizia o moço triste, porém Manuel do Riachão tentava ainda resistir, e assim respondeu, incontinenti:

Não te glorie com isso
Cantante do ponche-pala
Bebi demais no caminho
Sinto um pigarro na fala.

Esses versos eram prenúncio da derrota do terrível trovador. O auditório compreendeu e ficou suspenso dos lábios do cantador cor de cera, que, sempre de olhos baixos, tangia no machetinho com tanta doçura que parecia que os dedos vaporosos nem feriam as cordas.

Logo que Riachão se calou, o moço levantou na segunda vez os olhos serenos, tornou a fitar em cheio no violeiro, e cantou com voz mais alta e vibrante:

Seu Manué do Riachão
Meu amigo e camarada
Vosmecê se avexa tanto
Eu me avexo de nada.

Manuel do Riachão, ao sentir de novo a luz clara e profundamente azul dos olhos do fantástico moço pálido, tornou a se confundir: Os dedos rasparam na viola, nervosamente, sem tirar harmonia, o corpo todo tremeu e, na segunda vez nesse desafio, não entrou logo com a réplica, ao que o moço do machete, aproveitando a descaída, tornou de novo a abrir os lábios, e cantou, a voz ficando aguda e firme:

Seu Manué do Riachão
Depois da flô vem a espiga
Quero que vosmecê reze
o padre-nosso em cantiga.

Sentindo essa provocação direta a seu sentimento religioso, Manuel do Riachão se ergueu com um salto. Todo o corpo foi tomado por um tremor convulsivo. E torcendo os braços e as pernas, como se fossem serpentes raivosas, vibrou as cordas da viola com tanta raiva, que as, fazia arrebentar, ao mesmo tempo que berrava com voz sombria:

Seu moço do ponche-pala
Não sou padre pra rezá
Renego os santos da igreja
Renego a pedra do artá.

Ao dizer isto, todas as luzes da sala se apagaram e também a fogueira que crepitava no terreiro. Todos foram tomados de assombro.

No luar que entrava na janela viram que o moço pálido se levantava e se erguia do chão, alguns palmos, ao mesmo tempo que cantava, com voz tão aguda que chegava a doer nos ouvidos, estes versos que foram os últimos do famoso desafio:

Senhora dona da festa
Abra a porta, acenda a luz
Estamos com o Diabo em casa
Rezemos o cruz-credo.

Assim que acabou de cantar se ouviu na sala um estrondo medonho. Se abrindo logo o assoalho, de meio a meio, nele se enterrou e sumiu o nefasto Manuel do Riachão, ao passo que o moço triste e de mãos cor de cera mais se elevava do chão. Seu amplo ponche-pala cinzento se transformara em par de asas brancas como a neblina da manhã. E seu machete tomara a forma duma palma, que comprimiu ao seio, e, sempre subindo, voou na janela aberta e desapareceu no espaço, sem que olhos humanos o pudessem seguir.

***

É assim que o povo do norte conta como Manuel do Riachão desapareceu dos sambas sertanejos.

 

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Ano de publicação: 1925.
Origem: Brasil (Nordeste)

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