BATER NA MULHER COM
RAZÃO OU SEM ELA
Era uma vez um homem que vivia muito bem com
a sua mulher. Nunca tinham um ralho; não havia a mínima questão; o que um
queria, queria o outro. Enfim, eram muito felizes. Mas, um dia, o homem
encontrou-se com um compadre, que lhe disse:
— Então tu não bates na tua mulher?
— Eu não. Nem tenho razão nenhuma para lhe
bater.
— És parvo! Nas nossas mulheres bate-se com
razão ou sem ela. Só os tolos é que não batem nas mulheres!
O homem, com medo que lhe chamassem tolo,
começou desde então a bater na mulher, sem quê nem para quê.
A casa, que dantes era um paraíso, tornou-se
um inferno! Já ninguém se entendia.
A mulher procurava adivinhar-lhe as vontades
e fazia tudo o que imaginar podia para o satisfazer. E ele, zás, pancadaria
brava!
A pobre mulher, sem ver nenhum remédio para
aquela desgraça, pensava em morrer. Um dia, porém, compreendeu que lhe tinham
virado o marido com maus conselhos. Cansou-se de ter paciência e disse com Deus
e consigo:
— Espera que eu te arranjo! Hei de pregar-te
uma peça, que te hás de ver parvo. E então é que passarás por tolo.
Comprou uma lebre; esfolou-a e, à noite,
quando o homem se preparava para lhe bater, disse:
— Tu não sabes uma coisa, homem?!...
Aconteceu um caso que me tem dado que cismar.
— Então o que foi?
— O nosso galo apanhou uma lebre!
— Isso não pode ser!
— Pode, pode! E a prova é estar aqui a lebre
já esfolada, e amanhã levar-ta para o almoço.
O homem, de satisfeito que ficou com a
novidade, passou aquela noite sem lhe bater. De manhã levantou-se muito cedo e
foi para o campo ver uns trabalhadores que trazia numa propriedade. A primeira
coisa que fez foi dizer-lhes:
— Eh rapazes! Trabalhem de vontade, que hoje
temos lebre para o almoço.
Ficaram todos muito contentes, dando vivas ao
patrão, e trabalharam com alma para merecer o bom guisado. À hora do almoço
chegou a mulher com um grande cabaz, coberto com uma toalha branca de neve.
Trazia muita comida boa, mas da lebre nem coisa que se parecesse! Vai ele
perguntou:
— Ó mulher, que fizeste à lebre?
— Qual lebre? Eu não sei o que queres dizer.
Pois tu compraste alguma lebre?
— Ora essa! Então tu não me disseste que
ontem o nosso galo tinha apanhado uma lebre?
— Ó homem de Deus, tu estás doido! Pois isso
pode lá ser? Um galo apanhar um lebre?!
E fugiu, a lamentar-se, dizendo que o seu
marido estava doido e que tinha por mania dizer que um galo apanhara uma lebre.
As vizinhas ficaram prevenidas, para lhe
acudirem, se ele quisesse bater-lhe, pois decerto estava doido o pobre homem, e
em doidos ninguém se pode fiar.
A mulher fechou-se em casa, comeu a lebre com
todo o sossego e guardou a pele.
À noite vem o homem para casa a barafustar, e
queria bater na mulher. Mas a vizinhança acudiu. E todos começaram a dizer que
ele estava doido e que havia de ir à Igreja confessar que a mulher é que tinha
razão e que era ele quem merecia o castigo. O homem, meio convencido, disse que
sim, que iria. E nessa noite não bateu na mulher.
Quando a viu dormir levantou-se muito
devagarinho e revolveu a casa toda a procurar a pele da lebre. Tanto fez que a
encontrou escondida num canto. Meteu-a no bolso da jaqueta que havia de levar à
missa, foi deitar-se muito disfarçado e adormeceu. A mulher, que tudo tinha
visto, levantou-se por sua vez, tirou-lhe a pele do bolso, queimou-a, e
meteu-lhe lá duas estrigas de linho.
Ao outro dia foram para a Igreja muito calados,
cuidando ambos na peça que iam pegar ao outro. No fim da missa o homem
levantou-se do meio do povo, e disse:
— Os senhores afirmam que eu estou doido e
que minha mulher é que tem juízo, porque nunca teve a lebre que eu vi em casa.
Pois eu dou provas do contrário. É que nós, os homens, somos mais finos do que
elas e não nos deixamos enganar pelas suas palavras. E por isso eu digo, com o
meu compadre, que devemos bater nas nossas mulheres, com razão ou sem ela!...
E, metendo a mão no bolso da jaqueta, puxou o
embrulho que lá tinha posto e bradou:
— Cá está a pele da lebre!
Tudo desatou à gargalhada por ver as duas
estrigas, em lugar de tal pele.
Então é que ele ficou envergonhado. Confessou
que a mulher tinha juízo, e jurou, diante de toda a gente da freguesia, viver
como tinha vivido antes do estúpido amigo lhe dizer — que devia bater na mulher
com razão ou sem ela.
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Origem: Portugal.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)
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