sábado, 25 de dezembro de 2021

As Caçadas de Pedrinho (Livro Completo), de Monteiro Lobato

 

AS CAÇADAS DE PEDRINHO

CAPÍTULO 1: E ERA ONÇA MESMO! 

Dos moradores do sítio de Dona Benta o mais andejo era o Marquês de Rabicó. Conhecia todas as florestas, inclusive o capoeirão dos Taquaruçus, mato muito cerrado onde Dona Benta não deixava que os meninos fossem passear. Certo dia em que Rabicó se aventurou nesse mato em procura das orelhas-de-pau que crescem nos troncos podres, parece que as coisas não lhe correram muito bem, pois voltou na volada.

— Que aconteceu? — perguntou Pedrinho, ao vê-lo chegar todo arrepiado e com os olhos cheios de susto. — Está com cara de Marquês que viu onça...

— Não vi, mas quase vi! — respondeu Rabicó, tomando fôlego. — Ouvi um miado esquisito e dei com uns rastos mais esquisitos ainda. Não conheço onça, que dizem ser um gatão assim do tamanho dum bezerro. Ora, o miado que ouvi era de gato, mas muito mais forte, e os rastos também eram de gato, mas muito maiores. Logo, era onça.

Pedrinho refletiu sobre o caso e achou que bem podia ser verdade. Correu em procura de Narizinho.

— Sabe? Rabicó descobriu que anda uma onça no capoeirão dos Taquaruçus!...

— Uma onça? Não me diga! Vou já avisar vovó...

— Não caia nessa — advertiu o menino. — Medrosa como ela é, vovó ou morre de medo ou trata de nos levar hoje mesmo para a cidade. Muito melhor ficarmos quietos e caçarmos a onça.

A menina arregalou os olhos.

— Está louco, Pedrinho? Não sabe que onça é um bicho feroz que come gente?

— Sei, sim, como também sei que gente mata onça.

— Isso é gente grande, bobo!

— Gente grande!... — repetiu o menino, com ar de pouco-caso. — Vovó e Tia Nastácia são gente grande e, no entanto, correm até de barata. O que vale não é ser gente grande, é ser gente de coragem, e eu...

— Bem sei que você é valente como um galo garnisé, mas olhe que onça é onça. Com um tapa derruba qualquer caçador, diz Tia Nastácia.

O menino bateu no peito com arrogância.

— Pois quero ver isso! Vou organizar a caçada e juro que hei de trazer essa onça aqui para o terreiro, arrastada pelas orelhas. Se você e os outros não tiverem coragem de me acompanhar, irei sozinho.

A menina arrepiou-se de entusiasmo diante de tamanha bravura e não quis ficar atrás.

— Pois vou também! — gritou. — Uma menina de nariz arrebitado não tem medo de coisa nenhuma. Vamos convidar os outros.

Saíram os dois em busca dos demais companheiros. O primeiro encontrado foi o Marquês de Rabicó, que estava na porta da cozinha, ocupadíssimo em devorar umas cascas de abóbora.

— Apronte-se, Marquês, para tomar parte na expedição que vai caçar a onça aparecida lá na mata.

Aquela notícia fez o leitão engasgar com a casca de abóbora que tinha na boca.

— Caçar a onça? Eu? Deus me livre!...

— Vai, sim, ainda que seja para servir de isca, está ouvindo, seu covarde? Rabicó tremia que nem geleia fora do copo.

— Um fidalgo! — prosseguiu Pedrinho, em tom de desprezo. — Um filho do grande Visconde de Sabugosa a tremer assim de medo! Que vergonha...

Rabicó não replicou. Bebeu um gole d’água para acalmar os nervos e voltou às suas cascas de abóbora com esta ideia na cabeça: “No momento hei de dar um jeito qualquer. Não tem perigo que eu me deixe comer cru pela onça”.

O luxo dos leitões é serem comidos assados ao forno, com rodelas de limão em redor e um ovo cozido na boca...

O segundo convidado foi o Visconde de Sabugosa, o qual aceitou a proposta com aquela dignidade e nobreza que marcavam todos os seus atos de fidalgo dos legítimos. Iria para vencer ou morrer. Viscondes da sua marca mostram o que valem justamente nos momentos perigosos.

Depois convidaram Emília, que recebeu a ideia com palmas.

— Ora, graças! — exclamou. — Vamos ter enfim uma aventura importante. A vida aqui no sítio anda tão vazia que até me sinto embolorada por dentro. Irei, sim, e juro que quem vai matar a onça sou eu...

Esse dia e o outro foram passados em preparativos. Pedrinho levaria uma espingarda que ele mesmo tinha fabricado escondido de Dona Benta, com cano de guarda-chuva e gatilho puxado a elástico. Estava carregada com a pólvora duns pistolões sobrados da última festa de São Pedro.

A arma que Narizinho escolheu foi a faca de cortar pão, instrumento mestiço de faca e serrote.

O Visconde recebeu um sabre feito de arco de barril, bastante pontudo, mas danado para entortar. Em vista da sua importância e do seu título, também recebeu o comando da expedição.

— E você, Emília, que arma leva? — perguntou Narizinho.

— Levo o espeto de assar frangos. Tenho mais fé naquele espeto do que nas armas de vocês todos.

Restava o Marquês. Como fosse um grande medroso, em vez de arma Pedrinho deu-lhe arreios. Rabicó iria puxando um canhãozinho feito dum velho tubo de chaminé, que o menino havia montado sobre as rodas do seu carrinho de cabrito. Para carregar o canhãozinho foi necessário empregar a pólvora de três pistolões. Servia de bala uma pedra bem redondinha, encontrada nos pedregulhos do rio. Indo atrelado ao canhão, o grande Marquês ficaria impedido de fugir.

No dia marcado tomaram o café com farinha de milho da manhã e saíram na ponta dos pés, para que as duas velhas nada percebessem. Passaram a porteira do pasto, atravessaram a mata dos Tucanos Vermelhos e de lá seguiram rumo ao capoeirão da onça.

Rabicó não havia mentido. Os rastos da onça estavam impressos na terra úmida. Ao fazerem tal descoberta o coração dos cinco heróis bateu mais apressado. Dos cinco, não; dos quatro, porque, como todos sabem, Emília não tinha coração.

— Que é isso, Pedrinho — disse a boneca, notando a palidez do chefe. — Será medo?

— Não é medo não, Emília. É...

— É... receio, eu sei — caçoou a terrível bonequinha.

— Não brinque comigo, Emília! — gritou Pedrinho, avermelhando de raiva. — Você e toda gente sabe que só tenho medo duma coisa neste mundo — maribondo. De mais nada, hem?

O Visconde, que havia trazido a tiracolo o binóculo de Dona Benta, ajustou-o aos olhos para examinar “detetivamente” os rastos.

— É de onça, sim, e de onça-pintada — disse ele.

— Como sabe?

— Estou vendo no chão dois pelos, um amarelo e outro preto.

Aquela confirmação de que era onça mesmo, e das grandes, desanimou profundamente Rabicó. Gotas de suor frio começaram a pingar da sua testa. Teve ímpetos de soltar-se do canhãozinho e disparar para casa; só não o fez de medo que Pedrinho lhe despejasse no lombo a carga de chumbo destinada à onça. E resignou-se ao que desse e viesse.

Orientados pelos rastos da onça, os caçadores não podiam errar. Era seguir na direção deles, que fatalmente dariam com a bicha.

— Avante, Sabóia! — gritou Pedrinho, espichando no ar a espingarda como se fosse espada.

— Avante! — repetiram todos os outros, menos Rabicó, que estava sem fala.

E com o maior entusiasmo os heroizinhos foram caminhando durante meia hora. Súbito, o Visconde, que ia na frente, de binóculo apontado, gritou com voz firme:

— A onça...

— Onde? — indagaram todos, ansiosos.

— Lá longe, naquela moita — lá, lá... Realmente, alguma coisa se mexia na moita indicada e não tardou que uma enorme cara de onça aparecesse por entre as folhas, espiando para o lado dos cinco heróis.

Pedrinho dispôs tudo para o ataque. Assestou na direção da moita o canhãozinho e ordenou ao artilheiro Rabicó, enquanto o desatrelava:

— Fique nesta posição. Quando ouvir a voz de “Fogo!” risque um fósforo, acenda a mecha e dispare.

— Disparo para casa? — perguntou o artilheiro, mais trêmulo do que uma fatia de manjar branco.

— Dispare o canhão, idiota! — berrou Pedrinho. Enquanto isso, a onça deixava a moita e com o andar manhoso dos gatos dirigia-se, agachada, para o lado deles. Era o momento. O Visconde ergueu a espada e com voz grossa de comandante superior deu um berro de comando:

— Fogo!

Rabicó, todo treme-treme, não conseguiu nem riscar o fósforo. Foi preciso que Pedrinho viesse ajudá-lo. Por fim riscou-o e deitou fogo à mecha. Ouviu-se um chiado e logo depois um tiro soou — Pum! Mas um tiro chocho que não valeu nada. A bala de pedra rolou a dois passos de distância, imaginem: Havia falhado a artilharia, na qual eles depositavam tantas esperanças.

Pedrinho então disparou a sua espingardinha. Outro tiro chocho que nada valeu e só serviu para irritar a fera. Viram-na arreganhar os dentes e apressar a marcha na direção dos atacantes.

A situação tornava-se muito séria e Pedrinho, desapontado com o nenhum efeito das armas de fogo, berrou a plenos pulmões:

— Salve-se quem puder!

Foi uma debandada. Cada qual tratou de si e, como se houvessem virado macacos, todos procuraram a salvação nas árvores. Felizmente havia ali um pé de grumixama que dava para abrigar o grupo inteiro. Nele treparam, sem dificuldade, Pedrinho, Narizinho e Emília. Já o velho Visconde embaraçou as pernas na bainha da espada e com toda a sua importância estendeu-se no chão, ao comprido. Foi preciso que o menino o pescasse com o gancho dum galho seco.

Rabicó fez coisa de que ninguém nunca o julgaria capaz: botou-se à árvore que nem gato e conseguiu enganchar-se na forquilha do primeiro tronco. Pedrinho e Narizinho, que estavam no galho acima, puderam agarrá-lo pela orelha e içá-lo fora do alcance da onça. Quando a fera chegou, estavam já todos muito bem empoleirados e livres dos seus botes.

A onça, desapontadíssima, ali permaneceu, sentada sobre as patas de trás, com os olhos fixos nos caçadores que a tinham logrado. Parece que sua intenção era ficar de guarda até que eles descessem.

— Espera que te curo — disse Pedrinho, lembrando-se que trazia no bolso um pouco da pólvora dos pistolões. Tomou um punhado e, ajeitando-se no galho que ficava bem a prumo sobre a onça, derramou-lhe a pólvora em cima dos olhos.

A ideia valeu. Completamente cega pela pólvora, a onça pôs-se a corcovear que nem doida, enquanto esfregava os olhos com as munhecas, como se quisesse arrancá-los.

— É hora! Avança, macacada! — gritou Pedrinho, escorregando pela árvore abaixo.

Todos o imitaram. Apanharam as armas e se arrojaram contra a fera com verdadeira fúria. Narizinho esfregou-lhe a faca no lombo, como se a onça fosse pão e ela quisesse tirar uma fatia. O Visconde conseguiu, depois de várias tentativas, enterrar-lhe no peito o seu sabre de arco de barril. Emília fez o mesmo com o espeto de assar frango. Pedrinho macetou-lhe o crânio com a coronha da sua espingarda. Até Rabicó perdeu o medo e, depois de carregar de novo. o canhão, deu-lhe um bom tiro à queima-roupa.

Assim atacada de todos os lados, a onça não teve remédio senão morrer. Estrebuchou e foi morrendo. Quando deu o último suspiro, Pedrinho, no maior entusiasmo de sua vida, entoou um canto de guerra:

— Ale guá, guá, guá...

E todos responderam em coro:

— Hurra! Hurra! Pica-Pau Amarelo!...

 

CAPÍTULO 2: A VOLTA PARA CASA

Foi um delírio de contentamento. Os caçadores rodearam a onça morta, discutindo as peripécias da formidável aventura. Emília reclamou logo todas as honras para si.

— Se não fosse a minha espetada com o espeto de assar frango, queria ver...

— O que decidiu tudo foram as facadas que eu dei — alegou Narizinho.

— Qual nada! Juro que foi o meu tiro de canhão — disse Rabicó.

— Pexote! — berrou Pedrinho. — A bala de canhão nem arranhou a pele da onça, não está vendo?

Como daquela disputa pudesse sair briga, o Visconde ponderou gravemente:

— Todos ajudaram a matar a onça e todos merecem louvores. Mas se não fosse a pólvora de Pedrinho, estaríamos perdidos; de maneira que a Pedrinho cabe a melhor parte da vitória. Depois de cegar a onça, tudo ficou mais fácil e cada qual fez o que pôde. Basta de discussões. Em vez disso, tratemos mas é de levá-la para casa.

Os heróis concordaram com o sensatíssimo Visconde e Pedrinho afundou no mato para tirar cipós, visto não terem trazido corda. Logo depois reapareceu com um rolo de cipó ao ombro.

— Segure aqui! Puxe lá! Força! Vamos!...

Pedrinho conduziu o trabalho da amarração da onça ajudado por todos, menos Emília, que se afastara dali e estava numa grande prosa com dois besouros que tinham vindo assistir à cena. Bem amarrada que foi a onça, era preciso conduzi-la até a casa. Foi o que mais custou. Em certo ponto do caminho, Rabicó, que suava em bicas, parou para tomar fôlego.

— Francamente — disse ele — prefiro matar dez onças a puxar uma só! Estou que não posso mais...

Pararam todos para um bem merecido descanso e sentaram-se em cima do pelo macio da fera morta. Vendo que o sol já ia alto, Narizinho disse:

— Pobre vovó! Passa bem maus momentos por nossa causa. A estas horas deve estar aflitíssima a procurar-nos por toda parte...

— Mas vai consolar-se vendo a bichona que matamos — disse Pedrinho.

“Que matamos, uma ova!”, pensou, lá consigo, Rabicó. “Que eu matei com o meu tiro de canhão, isso sim.”

Pensou apenas. Não teve coragem de o dizer em voz alta, de medo do pontapé que Pedrinho fatalmente lhe pregaria.

Descansados que foram, prosseguiram na caminhada. Duas horas depois avistavam a casa, e viram Dona Benta e Tia Nastácia, muito aflitas, procurando-os pelo pomar. Pedrinho pôs na boca dois dedos e desferiu um célebre assobio que só ele sabia dar. As velhas voltaram-se na direção do som e Tia Nastácia, que tinha melhor vista, enxergou-os logo.

— Lá vêm vindo eles, sinhá! e vêm puxando uma coisa esquisita... Quer ver que caçaram alguma paca?

Aproximaram-se os heróis. Penetraram no terreiro. Narizinho, de longe, gritou:

— Adivinhe, vovó, o que matamos!

— Uns danadinhos como vocês são bem capazes de terem matado alguma paca...

A menina deu uma risada gostosa.

— Qual paca, nem pera paca, vovó! Suba!

— Então, algum veado — lembrou a velha, começando a arregalar os olhos.

— Suba, vovó!

— Porco-do-mato, será possível?

— Suba, suba!

— Então foi capivara...

— Vá subindo, vovó!

A boa senhora não sabia como subir além duma capivara, que era o maior animal existente por ali. Narizinho, então, chegou-se para ela e disse, fazendo uma careta de apavorar:

— Uma onça, vovó!

O susto de Dona Benta foi o maior da sua vida — tão grande que caiu sentada, com sufocação, exclamando:

— Nossa Senhora da Aparecida! Esta criançada ainda me deixa louca...

Mais corajosa, a negra aproximou-se, viu que era mesmo onça e:

— O mundo está perdido, sinhá — murmurou, de mãos postas. — É onça mesmo...


CAPÍTULO 3: OS HABITANTES DA MATA SE ASSUSTAM

As cenas da caçada da onça haviam sido presenciadas por muitos animaizinhos selvagens, entre eles um intrometidíssimo sagui. Ficou tão admirado da proeza dos meninos que levou longo tempo a piscar muito depressa — sinal de que estava pensando alguma ideia de sagui. Por fim resolveu-se e, pulando de galho em galho, foi em busca duma capivara que morava perto, na beira do rio.

— Sabe, Dona Capivara, o que aconteceu à onça da Toca Fria? Morreu... — disse ele, fazendo uma carinha muito assustada.

— Morreu de quê, sagui? — indagou a capivara. — De morte morrida ou de morte matada?

— De morte matadíssima. Os meninos do sítio de Dona Benta mataram-na a tiros e facadas e espetadas, e depois a arrastaram com cipós até lá, ao terreiro.

E contou por miúdo toda a cena a que havia assistido. A capivara abriu a boca. Aquela onça era o terror de todos os bichos da redondeza, graças à sua força e ferocidade. Por várias vezes os caçadores das terras vizinhas haviam organizado batidas a fim de dar cabo dela, sem nenhum resultado. A onça escapava sempre. Como, então, fora vítima dos netos de Dona Benta, simples crianças? Era espantoso, não havia dúvida. E se essas crianças haviam matado a onça dominadora da mata, com muito maior facilidade matariam a qualquer outro filho das selvas, fosse veado, paca, tatu ou mesmo capivara.

— A situação é bastante grave — disse, por fim, o animalão, depois de muito pensar e repensar. — Vejo que esses meninos constituem um grande perigo para nós aqui. Vou reunir uma assembleia de todos os bichos, para discutirmos o caso e tomarmos as medidas necessárias à nossa segurança.

Ia passando pelo céu azul um gavião perseguindo dois bem-te-vis. A capivara chamou-os.

— Parem com essa eterna briga e venham ouvir o que tenho a dizer. A situação de todos os viventes da floresta é muito séria.

Quando a vida dos animais selvagens se vê ameaçada de perigo geral, as velhas rivalidades cessam. A jaguatirica deixa de perseguir as lebres. A lontra esquece a fome e pode até conversar amavelmente com os peixes de que se alimenta. O cachorro-do-mato passa perto do porco-espinho sem que este erice as agulhas. Assim, ao ouvirem as palavras da capivara, tanto o gavião como os bem-te-vis esqueceram a briga e vieram sentar-se diante dela, um ao lado do outro, como se nada tivesse havido entre eles.

— Os meninos de Dona Benta mataram a onça da Toca Fria — começou a capivara. — Ora, se mataram a onça, que era a rainha da floresta, o mesmo farão, com a maior facilidade, a qualquer outro bicho menos forte do que a onça. Estamos pois com as nossas vidas ameaçadas de grande perigo e temos de tomar providências. Por isso quero convocar uma reunião de todos os animais. Vocês, que voam, sejam meus mensageiros.

Voem sobre a mata e avisem a todos para que estejam aqui reunidos, amanhã à noitinha, debaixo da Figueira-Brava.

O gavião e os bem-te-vis obedeceram. Voaram de árvore em árvore, dando uns pios que significavam reunião geral na Figueira-Brava no dia seguinte.

Essa figueira parecia ter mil anos de idade. Era a maior árvore da zona. Em seu tronco o tempo abrira um enorme oco, no qual dez homens poderiam abrigar-se perfeitamente. Erva nenhuma crescia debaixo dela, porque as ervas não crescem onde não bate sol e ali havia séculos que não batia um raio de sol.

No dia seguinte, à tarde, os animais foram chegando. Vieram as pacas, tão medrosinhas; vieram os veados ariscos; as antas pesadonas; os quatis sempre alegres e brincalhões; os cachorros-do-mato e as irarás de olhar duro; as jaguatiricas de movimentos macios. Vieram os tatus encapotados em suas cascas rijas; as lontras embrulhadas em suas capas de pele macia como o veludo; as preás assustadinhas. Também vieram cobras — as jiboias enormes que engolem um bezerro taludo; as cascavéis de guizos na ponta da cauda; as lindas corais-vermelhas; as muçuranas que se alimentam de cobras venenosas sem que nada lhes aconteça. E sapos — desde o sapo-ferreiro, cujo coaxo lembra marteladas em bigorna, até a pequenina perereca, que vive pererecando pelo mundo. E aves, desde o negro urubu fedorento, até essa joia de asas que se chama beija-flor. E ainda insetos — borboletas de todos os desenhos e cores, besouros de todas as cascas, serra-paus de todas as serras. E joaninhas e louva-a-deus e carrapatos...

Os macacos empoleiraram-se nos galhos da figueira e no rebordo inferior do oco. Enquanto esperavam, divertiam-se fazendo cabriolas das mais complicadas, e caretas.

Logo que os viu reunidos, a capivara tomou a palavra e expôs a situação perigosa em que se achavam todos.

— Quem faz um cesto faz um cento — disse ela. — O fato de terem matado a onça vai encher de coragem esses meninos e fazê-los repetir suas entradas nesta floresta a fim de nos caçar a todos. O caso é bastante sério.

— Peço a palavra! — gritou o bugio, que estava de cabeça para baixo, seguro pelo rabo no seu galho. — Acho que o melhor meio de vocês escaparem à fúria desses meninos é fazerem como nós fazemos: morar em árvores. Quem mora em árvores está livre de todos os perigos do chão.

— Imbecil! — resmungou a capivara, furiosa de tamanha asneira. — Não é à toa que os macacos se parecem tanto com os homens. Só dizem bobagens. Esta reunião foi convocada para discutir-se a sério, visto que o caso é muito sério. Quem tiver uma ideia mais decente que a deste idiota pendurado, que tome a palavra e fale.

Um jabuti adiantou-se e disse:

— O meio que vejo é mudar-nos para outras terras.

— Que terras? — replicou a capivara. — Não há mais terras habitáveis neste país. Os homens andam a destruir todas as matas, a queimá-las, a reduzi-las a pastagens para bois e vacas. No meu tempo de menina podíamos caminhar cem dias e cem noites sem ver o fim da floresta. Agora, quem caminha dois dias para qualquer lado que seja dá com o fim da mata. Os homens estragaram este país. A ideia do jabuti não vale grande coisa. Impossível mudar-nos, porque não temos para onde ir.

— Amor com amor se paga — disse uma jaguatirica. Matando a nossa rainha esses meninos nos declararam guerra. Paguemos na mesma moeda. Declaremos guerra a eles. Reunamos todos os animais de dentes agudos e garras afiadas para um assalto ao sítio de Dona Benta.

A capivara ficou pensativa. Isso de assaltar um sítio era realmente coisa que só onças e jaguatiricas podiam fazer, porque são animais guerreiros.

— Sim — disse a capivara:— a ideia não me parece de todo má, mas semelhante guerra só poderá ser feita por vocês, onças, ajudadas pelos cachorros-do-mato e irarás. Eu, por exemplo, e também as pacas e veados e lontras e borboletas e serra-paus e carrapatos, não entendemos nada de guerra.

— Pois que fique a luta a nosso cargo — disse a jaguatirica. — Encarregar-me-ei de reunir todas as onças e jaguatiricas e cachorros-do-mato e irarás da floresta para um ataque ao sítio de Dona Benta. Havemos de vencer aqueles meninos e comer a todos da casa — inclusive as duas velhas.

A assembleia aprovou a lembrança. “Muito bem!”, pensaram os animais. As onças fariam a guerra. Se vencessem, a bicharia inteira das selvas estaria salva de novas incursões dos meninos. Se não vencessem, a vingança deles iria recair sobre as onças, não sobre os outros. Ótimo!

— Está aprovada a ideia — disse a capivara. — A Senhora Jaguatirica encarregar-se-á de falar com as suas companheiras, com as onças grandes, as irarás e cachorros-do-mato, combinando do melhor modo os planos estratégicos. E nós, animais pacíficos, comedores de ervas, ficaremos de lado, ajudando os guerreiros com as nossas “torcidas”.

A assembleia dissolveu-se. Cada qual foi para sua casa, enquanto a jaguatirica disparava em procura das companheiras a fim de combinar os meios de conduzir a guerra.


CAPÍTULO 4: OS ESPIÕES DA EMÍLIA

Entre os animais da floresta que iam atacar o sítio de Dona Benta havia traidores. Eram os espiões da Emília. A terrível bonequinha fizera amizade com um casal de besouros cascudos, muito santarrões, que viviam fingindo estar a dormir mas que não perdiam coisa nenhuma do que se passava na floresta. Na reunião dos animais também eles estiveram presentes, vendo e ouvindo tudo lá do seu cantinho. Em seguida foram dar parte do acontecido à boneca.

— Eles vão atacar a casa e comer toda a gente do sítio — disse o besouro com voz cautelosa.

— Eles quem? — indagou Emília.

— As onças, as irarás e os cachorros-do-mato.

Elas, então — disse Emília, que implicava muito com a regra de gramática que manda pôr pronome no masculino quando há diversos sujeitos de sexos diferentes. Elas vão atacar o sítio, não é? Pois que venham. Serão muito bem recebidas. Tenho lá um espeto próprio para espetar onça, irará, jaguatirica e cachorro-do-mato.

Mas os besouros contaram minuciosamente tudo quanto tinham ouvido na assembleia da capivara e a boneca viu que o caso não era de brincadeira. Resolveu lá consigo ir incontinenti avisar Pedrinho, mas para não dar a perceber os seus receios fez-se de valentona.

— Veremos! — disse aos besouros, muito admirados daquele sangue-frio. — Veremos! Nós matamos há pouco uma onça-pintada, a maior que existia por aqui, e faremos a mesma coisa até para leões e hipopótamos, se aparecerem. A bicharia há de convencer-se de que conosco ninguém brinca. Atacar o sítio! Desaforados... E para quando é a guerra?

— O dia ainda não está marcado. A jaguatirica anda a correr a mata para reunir os atacantes.

— Muito bem — concluiu Emília, sem pestanejar. — Continuem espionando e avisando-me de tudo quanto souberem. Vou prevenir Pedrinho.

Emília voltou para casa de carreira e, já de longe, foi gritando pelo menino. Encontrou-o na varanda, a fazer uma arapuca de talos de folhas de embaúba para apanhar rolinhas.

— Largue disso — gritou Emília, ao galgar a escada. — Temos novidade grande. O sítio vai ser assaltado pelas onças, cachorros-do-mato e irarás.

Pedrinho olhou para ela com os olhos arregalados.

— Que bobagem está você dizendo, Emília? Assaltado, por quê? Como?

A boneca desfiou toda a conversa tida com os besouros e concluiu:

— Temos guerra, é isso. Matamos a onça e agora a onçada inteira quer a desforra.

Pedrinho refletiu por alguns instantes. Depois recomendou:

— Não diga nada a vovó, nem a Tia Nastácia, pois são capazes de morrer de medo. Vou estudar o caso e organizar a defesa. Vá depressa ver Narizinho e o Visconde. Diga-lhes que me esperem no pomar, debaixo da jabuticabeira grande. Aqui na varanda não podemos tratar disso. Vovó descobriria tudo.

Minutos depois realizava-se, debaixo da jabuticabeira grande, uma segunda assembleia, menos numerosa que a dos bichos. Compareceram todos, inclusive o Marquês de Rabicó. Pedrinho pediu à boneca que repetisse a sua conversa com os besouros espiões. Emília repetiu-a, terminando assim:

— É guerra e das boas. Não vai escapar ninguém — nem Tia Nastácia, que tem carne preta. As onças estão preparando as goelas para devorar todos os bípedes do sítio, exceto os de pena.

O Marquês de Rabicó sorriu. Se as onças iam devorar todos os bípedes, ele, na sua nobre qualidade de quadrúpede, estaria fora da matança. “Que felicidade ser quadrúpede!”, refletiu, lá consigo, o maroto.

Pedrinho começou a estudar a defesa.

— Sabem do que mais? — disse ele. — Vou abrir uma linha de trincheiras em redor da casa.

— Inútil isso, Pedrinho — objetou a menina. — As onças são umas danadas para saltar. Pulam qualquer trincheira.

Pedrinho achou razoável a observação e refletiu um pouco mais. Depois disse:

— Nesse caso, podemos rodear a fazenda duma cerca de paus-a-pique, bem pontudos. Construir uma estacada, como faziam os índios.

— Impossível — objetou outra vez Narizinho. — Para fazer semelhante estacada teríamos de contratar vários homens para cortar os paus e fincá-los — e vovó desconfiaria e viria a saber de tudo. Com estacada não vai. Temos de descobrir outro meio.

E, voltando-se para o Visconde que ainda não pronunciara uma só palavra:

— Qual a sua opinião, Visconde?

Como tivesse corpo de sabugo, o Visconde jamais mostrou o menor medo de onça, ou de qualquer outro animal carnívoro. Só tinha medo de vaca, bezerro, cavalo e outros animais comedores de sabugo. Por isso, caçoou:

— Ataque de onça! Ora, ora. Que valem onças? Se fosse um ataque de vacas, sim, compreendo que estivéssemos assustados. Mas de onças...

— E você, Rabicó, que acha? — perguntaram ao Marquês.

O Marquês nunca achava coisa nenhuma. Sua preocupação única era descobrir coisas de comer. Quando lhe pediam opinião sobre abóboras, chuchus, cascas de bananas ou mandioca, ele dava opiniões ótimas. Mas sobre onças...

— Eu acho que... que... que... — e engasgou.

— Quequerequeque... Para achar isso não valia a pena ter aberto a boca — disse Pedrinho. — Temos que achar qualquer coisa. Temos que resolver. O caso é dos mais sérios. Nossas vidas correm perigo, bem como as vidas de vovó e Tia Nastácia. Vamos! Venham ideias. Deem tratos à bola e resolvam.

— Tenho uma ideia excelente! — gritou Narizinho, batendo palmas.

— Qual é? — exclamaram todos, voltando-se para ela.

— É deixarmos isto para amanhã. As grandes coisas devem ser bem pensadas e não podem ser decididas assim, do pé para a mão. A guerra não é para já, pois que a jaguatirica ainda anda a avisar as companheiras. Até que fale com todas e organizem o plano de ataque, passar-se-ão alguns dias. Para agora tenho uma coisa excelente a fazer. Uma surpresa...

Disse e ergueu-se, correndo para a margem do ribeirão, onde na véspera Tia Nastácia havia escondido qualquer coisa. Todos a seguiram, curiosos.

— Que é, que é, Narizinho? Que surpresa é essa?

Em vez de responder, a menina espalhou um montinho de folhas secas que havia junto às pedras do rio e revelou, aos olhos do bando, um lindo cacho de brejaúvas.

— Viva! Viva! — gritou Pedrinho, que se pelava por brejaúvas. — Como arranjou isto, Narizinho?

— Foi o Antônio Carapina que nos mandou de presente ontem à noite. Tia Nastácia recebeu o cacho e veio escondê-lo aqui para que não acontecesse como da outra vez, que sujamos de cascas a varanda.

— E por que não me disse nada?

— Para fazer uma surpresa. Não acha que foi melhor assim?

Sentaram-se todos em redor do cacho de brejaúvas e começaram a partir os cocos sobre uma grande laje que havia ali.

— Ótimas! — exclamou o menino, comendo com gula a deliciosa polpa branca e macia daqueles cocos no ponto. — O Antônio Carapina tem as melhores lembranças do mundo. Prove, Emília, este pedacinho...

Minutos depois estava o chão coberto de cascas, por entre as quais passeava o focinho de Rabicó, lambiscando o que podia. Enquanto isso, as onças lá na mata marcavam o ataque ao sítio para o dia seguinte. Felizmente os dois besouros encapotados estiveram presentes à reunião e tudo ouviram dum galhinho seco.

 

CAPÍTULO 5: A DEFESA ESTRATÉGICA

Eles mataram minha esposa! — clamava com voz trêmula de cólera um enorme onção (como dizia a Emília). — Estou viúvo da minha querida onça por artes daqueles meninos daninhos do sítio de Dona Benta. Mataram-na e levaram-na de arrasto, amarrada com cipós, até o terreiro da casinha onde moram. Tiraram-lhe a pele, que depois de esticada e seca ao sol está servindo de tapete na varanda. Ora, isto é crime que pede a mais completa vingança. Guerra, pois! Guerra de morte a essa ninhada de malfeitores.

— Guerra! Guerra! — exclamaram as jaguatiricas e suçuaranas e cachorros-do-mato e irarás ali reunidas (como queria a Emília).

O onço agradou-se daquele entusiasmo.

— Combinemos o seguinte — disse ele. — Amanhã de manhã cercaremos a casa de modo que ninguém escape. As irarás e cachorros-do-mato guardarão os lados e nós, onças, atacaremos pela frente.

— Bravos! Bravos! Assim o faremos! — gritaram, em coro, as feras.

— Assaltaremos a casa — prosseguiu o viúvo — e mataremos todos os seus moradores.

— Sim, matá-los-emos a todos! — repetiu o coro.

— E depois os comeremos um por um!

— Sim, sim, comê-los-emos a todos, um por um! — uivou a bicharia, com as línguas vermelhas a lamberem a beiçaria feroz.

A assembleia dissolveu-se, indo cada qual para sua toca sem que nenhuma daquelas feras pensasse em caça naquele dia. Estavam a preparar uma fome especial para o almoço de carne humana que iam ter no dia seguinte.

Os besouros espiões tudo ouviram do seu galhinho e lá se foram, a zumbir, dar parte a Emília dos grandes acontecimentos. A boneca estava ansiosa por eles, visto como não os tinha visto na véspera.

— Então? — perguntou logo que os dois sonsos entraram na varanda como se fossem besouros à toa, desses que se deixam atrair pela luz dos lampiões.

— É amanhã o ataque — responderam os dois besouros, que eram gêmeos e sempre falavam e agiam juntos. — As onças acabam de resolver isso numa reunião que tiveram debaixo da Figueira-Brava. Os cachorros-do-mato e as irarás guardarão os lados da casa, e as onças, guiadas pelo onço viúvo, darão o assalto. Também juraram matar e comer a todos.

Emília não empalideceu de susto, nem tremeu que nem vara verde, como aconteceria se ela fosse gente de verdade. Emília era a mais corajosa boneca que ainda existiu no mundo. Apenas disse:

— Isso de dizer que cerca e assalta e mata e devora é fácil. O difícil é cercar, assaltar, matar e devorar realmente. Nós saberemos defender-nos. Que venham as tais onças duma figa!

Os dois besouros não deixaram de admirar-se daquele espantoso sangue-frio.

— Mas de que armas dispõem vocês para lutar contra tantas feras raivosas? — perguntaram eles gemeamente, isto é, cada um dizendo uma palavra. O modo dos besouros conversarem com a boneca era esse. Um dizia as palavras pares e o outro dizia as palavras ímpares.

— Não sei — respondeu Emília. — Isso é com Pedrinho, o nosso generalíssimo. Ele está estudando o assunto — e eu também. Não sei ainda o que o General Pedrinho vai fazer, mas sei o que vou fazer. Pensei, pensei e repensei sobre o caso e já tenho cá uma ideia que vale ouro em pó.

— Qual — disse o primeiro besouro, é — disse o segundo, essa — continuou o primeiro, ideia? — concluiu o segundo.

— Não posso dizer em voz alta — respondeu Emília.

— Só ao ouvido — e chegando-se bem pertinho dos gêmeos cochichou-lhes ao ouvido a sua ideia pelo mesmo sistema, isto é, dizendo a palavra par ao besouro número 1 e a palavra ímpar ao besouro número 2.

Os besouros admiraram-se da esperteza da boneca e partiram — '! — a fim de cumprir as ordens recebidas.

Logo que os viu se sumirem no espaço, Emília foi correndo contar a Pedrinho o que acabava de ouvir dos seus espiões de casaca preta.

Pedrinho já havia resolvido o problema da defesa.

— Como não temos armas de fogo para enfrentar as onças — disse ele — lembrei-me do seguinte. Faço uma porção de pernas de pau bem compridas; um par de pernas para cada morador do sítio, inclusive o Marquês e as galinhas. Quando as onças nos atacarem, subiremos sobre essas pernas de pau, bem lá no alto — e quero ver!...

— E se as onças também subirem pelas pernas de pau acima? — perguntou a menina.

— Impossível — respondeu ele. — Além de serem pernas muito compridas e de bambu, que é liso, ainda serão ensebadas. Cada uma corresponderá a um verdadeiro pau-de-sebo. Nem macaco será capaz de subir.

Foi considerada ótima a ideia e Pedrinho correu em busca da foice e do serrote. Com a foice cortou no bambuzal próximo meia dúzia de compridas varas de bambu, e com o serrote serrou-as do tamanho necessário. Depois, com um formão, abriu furos, nos quais fixou um estribo, isto é, uma travessinha em que um pé pudesse apoiar-se.

Prontas que foram as pernas de pau, tinham de exercitar-se um bocado. Nada mais fácil do que o equilíbrio sobre pernas de pau, mas mesmo assim não dispensa um pouco de prática. Quem começou foi Pedrinho, e como as pernas fossem muito altas teve de trepar a uma escada para colocar-se sobre elas. Assim fez, dando em seguida umas passadas tontas pelo terreiro, até acertar o equilíbrio. Em poucos minutos ficou tão hábil naquele pernilonguismo que até parecia ter anos de experiência.

Vendo a facilidade, Narizinho imitou-o. Trepou à escada e ajeitou-se sobre o par de pernas que lhe cabia. Também em minutos ficou adestrada a ponto de dar carreirinhas.

Emília e o Visconde não ficaram atrás. Eram jeitosos. Restava Rabicó.

— Vai começar a encrenca — disse Narizinho, quando chegou a hora do ilustre Marquês.

Assim aconteceu. A dificuldade principiou com aquele negócio de Rabicó ter quatro pernas, em vez de duas, como todas as criaturas decentes — os homens, as galinhas, as escadas. Rabicó tinha duas pernas mais que os outros, inutilíssimas pernas, porque se uma criatura pode viver muito bem com duas, ter quatro é ter pernas demais.

— Se eu tivesse clorofórmio e instrumentos cirúrgicos, fazia uma operação em Rabicó, transformando-o em bípede. Não deixa de ser uma vergonha um quadrúpede em nosso bando — disse Pedrinho.

Seguramente uma hora foi gasta naquilo de amarrar quatro pernas de pau nas perninhas do leitão e fazê-lo equilibrar-se sobre os espeques. Bem que ele esperneou, gritou, como se o estivessem matando com uma faca de ponta bem pontuda. Atraída pelos seus gritos, Tia Nastácia apareceu na porta da cozinha para ver o que era — e quase desmaiou de susto vendo o bandinho lá em cima, pernejando pernilongalmente pelo terreiro.

— Corra, sinhá! — gritou para dentro. — Venha ver o “felómeno” que aconteceu com a criançada. Está tudo pernilongo!...

Dona Benta apareceu à janela e assombrou-se da habilidade com que seus netos corriam e brincavam sobre pernas daquele comprimento, como se tivessem nascido pernaltas.

— Cuidado! — exclamou ela. — Se um de vocês perde o equilíbrio e vem ao chão, esborracha o nariz para o resto da vida. Mas que ideia foi essa, meninos?

Não houve remédio senão explicar-lhe tudo, mesmo porque Dona Benta e Tia Nastácia tinham também de colocar-se sobre tais pernas quando as onças chegassem.

— Às onças vão atacar o sítio amanhã, vovó, umas cinquenta — disse Pedrinho — e como não temos carabinas com que nos defender, a defesa que achei foi esta.

— Onças? Cinquenta? — repetiu Dona Benta, com os olhos arregaladíssimos.

— Quem contou semelhante coisa?

— Os besouros gêmeos da Emília, vovó — disse Narizinho. — Acabam de nos avisar que as onças, para vingarem a morte da que matamos, organizaram um ataque ao sítio para amanhã.

As duas pobres velhas ficaram na maior aflição do mundo, como era natural. Com semelhantes travessuras, o terrível bandinho acabaria dando cabo delas, não havia dúvida. Tia Nastácia, de olhos arregalados do tamanho de xícaras de chá, até perdeu a fala. Limitava-se a fazer pelo-sinais, um em cima do outro.

— Mas isto não tem propósito, Pedrinho! — ralhou Dona Benta. — Vocês põem-me doida. Onças e logo cin-quen-ta!... Como irei arranjar-me aqui embaixo, sozinha com Tia Nastácia?

— O remédio, vovó, é a senhora e Tia Nastácia meterem-se em pernas de pau também. Olhe, as suas já estão ali prontinhas, feitas sob medida — e as de Tia Nastácia são aquelas acolá...

A aflição das duas velhas cresceu ainda alguns pontos. O medo de serem comidas pelas onças se somou ao medo de caírem de cima de tão compridas pernas. Mas que fazer? Ficarem embaixo, sozinhas, era suicídio puro, porque seriam fatalmente comidas pelas onças.

Dona Benta cocou a cabeça, desanimada.

— Inútil procurar outra saída, vovó — disse Pedrinho.

— As onças amanhã de manhã estarão aqui para o assalto e ou a senhora se utiliza desta defesa pernil que inventamos, ou deixa-se devorar viva. Escolha.

Não havia escolha possível e, apesar dos seus sessenta anos e dos seus vários reumatismos, a pobre Dona Benta teve de trepar na escada e ajeitar-se sobre o par de andaimes que Pedrinho lhe destinara.

Custou! Além de ter os músculos emperrados, a boa velhinha era medrosíssima. Por várias vezes quis desistir, e só não desistiu porque os meninos não cessavam de lembrar que nesse caso seria fatalmente devorada, como a avó da Menina da Capinha Vermelha. Afinal aprendeu o equilíbrio, dando uns passos muito desajeitados pelo terreiro.

— Serve — disse Pedrinho, que dirigia a aprendizagem. — Já dá para escapar de onça. Tratemos agora de Tia Nastácia.

Aí é que foi a dificuldade. A pobre negra era ainda mais desajeitada do que Rabicó e Dona Benta somados. Quando depois de inúmeras tentativas, ia se tenteando sobre as pernas de pau, perdeu de súbito o equilíbrio e veio ao chão, num berro. Felizmente caiu sobre um varal de roupa e não se machucou.

— Não trepo mais nesses andaimes — exclamou ela, ainda enganchada no varal. — Prefiro que as onças me comam viva. Figa, rabudo!...

Mas isso de preferir que as onças nos comam vivos é conversa. Na hora em que onça aparece, até em pau-de-sebo um aleijado é capaz de subir. A pobre da Tia Nastácia ia ficar sabendo disso no dia seguinte...


CAPÍTULO 6: APARECE UMA NOVA MENINA

De noite houve discussão das hipóteses que poderiam dar-se no dia seguinte.

Dona Benta disse:

— Concordo que, se estivermos sobre pernas de pau, as onças não poderão apanhar-nos. Mas depois? E se elas resolverem ficar por aqui até que nos cansemos e sejamos forçados a descer?

Era uma hipótese bastante provável, que não havia ocorrido a Pedrinho. Sim; se as onças ficassem por lá, como era?

— Hão de cansar-se e ir-se embora — sugeriu Narizinho. — Quando a fome apertar, não fica nenhuma aqui.

— E se se revezarem? — lembrou Dona Benta. — E se, enquanto a metade das onças for caçar, a outra metade ficar montando guarda?

Pedrinho não soube responder, nem Narizinho, nem o Visconde. Ficaram todos de nariz caído, pensando nessa terrível hipótese. Quem respondeu foi a Emília, que andava toda misteriosa, piscando cavorteiramente, como quem tem no bolso a solução dum grande problema.

— Não tenham medo de coisa nenhuma — disse ela, por fim. — Arranjei umas granadas de mão, ótimas para espantar onças.

— Granadas de mão? — repetiu Pedrinho franzindo a testa. — Que história é essa, Emília?

— Uma surpresa. Preparei as granadas com a ajuda dos meus besouros. Fiz cinco, número suficiente para espantar até cem onças.

— E onde estão?

— No telhado.

— Por que no telhado?

— Botei-as lá para estarem ao meu alcance na hora em que as onças aparecerem e nós estivermos sobre as pernas de pau. Também botei lá pão com manteiga, um guarda-chuva e mais coisas. Pode nos apertar a fome, pode chover...

Narizinho estava intrigadíssima com o negócio das granadas.

— Explique isso melhor, Emília. Que granadas são essas?

— Nada posso dizer. É segredo. Só adiantarei que são de cera e do tamanho de laranjas-baianas.

Granadas de cera, do tamanho de laranjas-baianas! Ou a boneca estava de miolo mole... ou... Em todo o caso, como a Emília era uma danadinha capaz de tudo, os meninos e as velhas sossegaram um pouco mais.

A razão de Tia Nastácia haver desistido das pernas de pau era que não acreditava muito no tal assalto das onças. “Isso há de ser imaginação dessas crianças”, refletia de si para si. “Os diabretes vivem com a cabeça quente e inventam coisas para atormentar os mais velhos. Não acredito.”

Dona Benta igualmente não acreditou — no princípio. Depois, lembrando-se de outras coisas inda mais espantosas que já tinham acontecido, achou melhor acreditar.

— Qual nada, sinhá! — insistiu a negra. — Onde já se viu onça andar em bando a atacar casa de gente? Estou com setenta anos e nunca ouvi falar de semelhante coisa.

— Nem eu. Mas lembre-se, Nastácia, que também nunca vimos contar de nenhuma boneca que falasse, nem de nenhum visconde de sabugo que agisse tal qual uma gentinha — e aí estão a Emília e o Visconde de Sabugosa.

— Lá isso é — resmungou a preta, pendurando o beiço.

— Se isso é, como vai você arranjar-se amanhã, se as onças vierem mesmo e nos atacarem aqui?

— Como vou me arranjar? — repetiu Tia Nastácia, cocando a cabeça. — Não sei. Francamente não sei. Na hora veremos...

Ela continuava com a esperança de que o tal ataque das cinquenta onças não passasse duma “pulha” de Pedrinho para meter medo aos “mais velhos”.

Foram dormir. Cada qual sonhou pelo menos com uma onça. Emília, porém, teve sonhos cor-de-rosa, a avaliar-se pelos sorrisos que animaram seu rostinho durante a noite inteira. É que estava sonhando com as suas famosas granadas de cera...

Pela madrugada alguém bateu na porta da rua — toque, toque, toque... Pedrinho pulou da cama, assustado. “Seriam já as onças?” Os outros também se ergueram, inclusive Dona Benta e Tia Nastácia. Reuniram-se todos na sala de jantar, à escuta.

Nova batida — toque, toque, toque...

— Parece batida de nó de dedo — sussurrou Narizinho.

— Onça não bate assim.

Pé ante pé, a menina aproximou-se da porta e espiou pelo buraco da fechadura. Não viu onça nenhuma. Em vez disso viu... outra menina!

— Uma menina! — exclamou Narizinho, batendo palmas.

— Assim do meu tamanho, lindinha! Quem sabe se não é Capinha Vermelha?...

Abro ou não a porta, vovó?

— Pois se é uma menina, abra. Veja primeiro se não vem algum lobo atrás, como aquele que acompanhou Capinha.

Narizinho espiou de novo e não viu lobo nenhum. Em vista disso, abriu. Uma menina muito desembaraçada, da mesma idade que ela, entrou.

— Boa madrugada para vocês todos! Boa madrugada, Dona Benta! Boa madrugada, Tia Nastácia!

A menina conhecia a todos da casa e, no entanto, não era conhecida de nenhum dali. Quem seria?

— Quem é você, menina? — perguntou Dona Benta, meio desconfiada.

— Não me conhecem? — tornou a desconhecidazinha com todo o espevitamento. — Pois sou a Cléu...

Foi uma alegria geral. Não havia ali quem não conhecesse de nome a famosa Cléu, que falava pelo rádio e de vez em quando escrevia cartas a Narizinho, dando ideias de novas aventuras.

— Viva, viva a Cléu! — exclamaram todos, numa grande alegria.

— Pois é — disse a menina sentando-se sobre a mesa — cá estou para conhecê-los pessoalmente. Desde que li as primeiras aventuras de Narizinho, fiquei doida por entrar para o bando. Moro em São Paulo, uma cidade muito desenxabida, com um viaduto muito feio e gente apressada, passeando pelas ruas. Enjoei do tal São Paulo e vim morar aqui. Fiquem certos duma coisa: o único lugar interessante que há no Brasil é este sítio de Dona Benta.

Todos mostraram-se contentíssimos. Dona Benta, entretanto, disse:

— Mas veio em má ocasião, Cléu. Imagine que justamente hoje o sítio vai ser atacado por um exército de onças e irarás e cachorros-do-mato.

— Ótimo! — respondeu a menina. — Um dos meus sonhos sempre foi ser atacada por um exército de onças e irarás e cachorros-do-mato, de modo que adivinhei vindo em momento tão propício...

Ché... — exclamou lá consigo Tia Nastácia. — Agora é que o sítio pega fogo mesmo. Menina de “propícios”... Credo!

O dia estava clareando e, como as onças podiam chegar dum momento para outro, Pedrinho tratou de ensinar a Cléu o uso das pernas de pau, explicando-lhe que fora esse o meio que descobrira para se defenderem do ataque.

Tia Nastácia foi para a cozinha acender o fogo para o café. Estava de olho parado, pensando, pensando...

— A Cléu aqui! — murmurava ela, olhando para o fogo. — Ché...

 

CAPÍTULO 7: O ASSALTO DAS ONÇAS

Depois de tomado o café com farinha de milho, Pedrinho pendurou o Visconde no galho mais alto duma árvore próxima, armado do binóculo de Dona Benta, para dar aviso da chegada das onças. O nobre fidalgo, porém, sempre tivera o costume de acordar tarde, ali pelas dez horas, mais ou menos. Em vista disso resolveu dormir no seu galhinho, certo de que só lá pelas dez horas as onças viriam. Dormiu e, portanto, não pôde dar aviso da chegada das onças, que já estavam bem perto. Quem percebeu a aproximação delas foi a Emília, que tinha um faro maravilhoso.

— Estou sentindo no ar um cheirinho de onça! — exclamou, em certo momento. Por força da sugestão ou porque de fato andasse pelo ar algum cheiro de onça, todos ergueram o nariz e sentiram um forte cheiro de onça. Como é então que o Visconde não dava nenhum aviso? Pedrinho correu ao terreiro e gritou:

— Avise duma vez, palerma! Não vê que as onças já estão chegando?

O pobre fidalgo acordou com o berro e ainda cheio de sono espiou pelo binóculo, mas em sentido contrário, de modo que viu as onças muitíssimo longe.

— Vêm, sim — disse ele —, mas tão longe, tão longe e tão pequenininhas, que até que cresçam e cheguem dá tempo de...

Não pôde concluir. Escorregou do galho e veio de ponta-cabeça ao chão.

Mas não havia tempo de acudir o pobre Visconde, caído de mau jeito bem em cima duma lama onde ficou de cabeça enterrada. O tempo era o exatamente necessário para se colocarem sobre as pernas de pau. Corre-corre geral. Cada um tratou de apanhar o par de pernas que lhe pertencia e de ajeitar-se em cima. Em três minutos o terreiro ficou povoado daqueles estranhos bípedes pernaltas. A primeira coisa que lá do alto viram foram as granadas de cera da Emília, arranjadinhas sobre o telhado. Pedrinho quis examiná-las. Não pôde. A boneca espantou-o com um grito.

— Não se aproxime! Não bula, não me estrague o capítulo!...

E Tia Nastácia? Essa ficou embaixo, rezando e riscando a cara e o peito de trêmulos pelo-sinais. Apesar de descrente da vinda das onças, que lhe parecia coisa

impossível, começou a sentir um horrível medo. E se viessem mesmo? pensava ela. E se o tal cheirinho que a boneca sentira no ar fosse mesmo cheiro de onça?

Súbito — Miau! Um horrível miado ressoou no pasto. Devia ser o sinal de ataque do onço viúvo. Logo em seguida surgiram de dentro de todas as moitas uma infinidade de caras de onças e jaguatiricas e irarás e cachorros-do-mato, com olhos ameaçadores e dentuças arreganhadas.

Só então a pobre negra se convenceu de que tinha errado. Correu qual uma desvairada às pernas de pau que Pedrinho lhe tinha feito. Nada achou. A Cléu se havia utilizado delas. Olhou aflita para a escada. Bobagens, escada! As onças também trepariam pelos degraus. Seus olhos esbugalhados procuravam inutilmente a salvação.

— Trepe no mastro! — gritou-lhe a Cléu.

Sim, era o único jeito — e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros.

Foi a continha. A onçada toda já estava no terreiro.

A princípio, os assaltantes não perceberam o truque inventado por Pedrinho para lográ-los. Os animais de quatro pés raro olham para o alto e, como os pernaltas guardassem o mais absoluto silêncio, as onças não os viram lá em cima de seus espeques. Entraram pela casa adentro em procura deles e, não os encontrando, mostraram-se desapontadíssimas.

— Fugiram, os covardes! — uivou, com os olhos chispantes de cólera, o onço viúvo. — Alguém os avisou e eles fugiram...

Nisto, uma cuspidinha da Emília caiu-lhe bem no focinho. O onço olhou para cima e sorriu, lambendo os beiços.

— O nosso “almoço” não fugiu, não! — exclamou, contentíssimo. — Lá estão todos os “pratos”, cada qual em cima de dois “espetos”.

Toda a bicharia olhou para cima, com água na boca. Não tinham comido na véspera, o apetite era forte e viram que iam ter uma bela variedade de petiscos — um menino, duas meninas, um leitão, uma boneca, uma velha branca e uma velha preta. Ótimo!

— Isso é que é almoço! — observou uma irará. — Vai ser um banquete dos bons...

Mas como devorar aqueles pernaltas? O onço, que era o mais forte do bando, experimentou o pulo. Deu quatro ou cinco pulos formidáveis, os maiores de sua vida

— mas inutilmente. Os espetos tinham quatro metros de altura e os seus pulos não iam acima de três metros e noventa e cinco centímetros.

— Com pulo não vai — disse ele. — Precisamos inventar outra coisa. Que há de ser?

— Tenho uma ideia — latiu um cachorro-do-mato de talento. — Eles não podem ficar lá em cima toda a vida. Hão de descer logo que a fome aperte. Minha ideia é ficarmos aqui de plantão até que desçam.

— Sim — disse o onço, que era burríssimo — mas se a fome aperta para eles, também aperta para nós — e como é?

— Revezamo-nos — resolveu o cachorro. — Metade do bando vai caçar e almoçar no mato, enquanto a outra metade fica de guarda. Desse modo poderemos permanecer aqui a vida inteira, se for preciso.

— Eu não disse? — cochichou Dona Benta. — As malvadas vão revezar-se e estamos perdidos...

A situação era gravíssima. Cléu, que não tinha prática de aventuras maravilhosas, fez bico de choro. As onças estavam decididas a tudo; e, se os pernaltas podiam resistir por muitas horas, o mesmo não acontecia à pobre Tia Nastácia, que já mal se aguentava no mastro. — Vou cair! — berrou ela, de repente. — Não aguento mais. Minhas mãos já começam a escorregar...

— Estão vendo? — disse o onço, passando a língua pela beiçaria. — O nosso banquete vai começar pela sobremesa. O furrundu está dizendo que não aguenta mais e vai descer...

— Emília! — gritou Pedrinho. — Estamos esperando por você! Que venha a surpresa das granadas.

A boneca tratou de tirar partido da situação.

— Muito bem — disse ela — mas só lançarei as minhas granadas sob três condições.

— Diga depressa!

— Primeiro: que todos reconheçam que sou a mais esperta e inteligente do bando. Segundo: que Dona Benta me dê um regadorzinho de jardim, dos verdes — de outra cor não quero. Terceiro que...

— Socorro! — berrou, num tom de cortar a alma, a pobre Tia Nastácia, que não podendo mais aguentar-se no mastro vinha escorregando lentamente.

Emília não esperou pela resposta às suas condições. Aproximou-se do telhado, tomou as granadas e — zás! — arremessou-as contra o bando de feras. As granadas romperam-se ao bater nos alvos e deixaram sair de dentro enxames de caçunungas, que são as mais terríveis vespas que existem.

Foi uma tragédia! As vespas ferraram nos focinhos e olhos das onças e irarás e cachorros-do-mato, fazendo-os fugirem dali numa desabalada louca. Em meio minuto o sítio ficou inteiramente limpo de bicho feroz.

Não foi sem tempo. Tia Nastácia já estava no chão, escarrapachada ao pé do mastro, mais morta do que viva, suando o suor frio da morte. Se as granadas da Emília não tivessem produzido aquele maravilhoso resultado, a boa negra realmente não escaparia de virar furrundu de onça...

— Viva! Viva a Emília! — gritou Cléu, entusiasmada com a proeza da boneca.

— Viva! Viva a rainha das bonecas! — gritaram os outros.

Prática como era, Emília tratou de aproveitar aquele entusiasmo para ganhar coisas. Obteve de Dona Benta a promessa dum lindo regadorzinho verde; de Pedrinho apanhou, ali na hora, cinco tostões novos; e de Narizinho conseguiu uma mobília de boneca.

— E você, Cléu, que me dá?

— Um beijo, Emília.

A boneca fez um muxoxo de pouco-caso. Depois, voltando-se para Tia Nastácia:

— E você, pretura?

Tia Nastácia não pôde responder. O susto por que passara fora tanto que havia perdido a voz. Foi preciso darem-lhe a beber uma caneca d’água. Só então pôde abrir a boca e dizer:

— Você me salvou a vida, Emília, e não há o que pague semelhante coisa. Dou tudo quanto me pedir.

— Quero aquele pito de barro em que você pita — respondeu a boneca.

Foi assim que Emília ganhou o célebre pito de barro que mais tarde deu de presente ao Pequeno Polegar.


CAPÍTULO 8: OS NEGÓCIOS DA EMÍLIA

Desde essa aventura ficou Pedrinho com mania de caçadas — mas caçadas de feras africanas. Queria leões, tigres, rinocerontes, elefantes, panteras, e queixava-se a Dona Benta (como se a boa senhora tivesse culpa) da pobreza do Brasil a respeito de feras. Chegou a propor-lhe que vendesse o sítio para comprar outro bem no centro de Uganda, que é a região da África mais rica em leões.

— Aqui nem dá gosto morar, vovó — dizia ele, torcendo o nariz. — Fora o jaguar, que outra fera possuímos? Só paca e veado e anta — uns pobres herbívoros que têm medo de gente. Eu queria mas era enfrentar peito a peito um rinoceronte!...

Dona Benta arrepiava-se com aquilo. Lera muita coisa sobre as grandes feras africanas e sabia que nenhuma existe mais traiçoeira e feroz do que o rinoceronte, com aquele seu terrível chifre no meio da testa. A pobre senhora esfriava da cabeça aos pés só ao lembrar-se do horror que seria uma chifrada de tal espeto.

— Veja, Nastácia, para que deu Pedrinho agora! — dizia ela. — Quer caçar rinocerontes... Não sei por quem puxou essa terrível inclinação.

Tia Nastácia benzia-se. Ignorava o que fosse um rinoceronte, não tendo visto nenhum, nem no cinema, nem em sonho; mas a simples palavra lhe metia medo. “Rinoceronte, credo!”

— E o pior — continuou Dona Benta — é que quando estas crianças encasquetam fazer uma coisa, fazem mesmo. Elas viram e mexem e acabam caçando algum rinoceronte. Você vai ver.

E assim aconteceu. Parece fábula, parece mentira do Barão de Munchausen e, no entanto, é a verdade pura: os netos de Dona Benta caçaram um rinoceronte de verdade!...

— Como?

— Esperem lá. Algum tempo depois do assalto das onças havia chegado ao Rio de Janeiro um circo de cavalinhos que era uma verdadeira arca de Noé. Trazia enorme bicharada — seis leões, três girafas, quatro tigres, zebras, hienas, focas, panteras, cangurus, jiboias e um formidável rinoceronte. Quando Pedrinho leu nos jornais a notícia do grande acontecimento, ficou assanhadíssimo. Quis ir ao Rio ver as feras, chegando a escrever a Dona Tonica, sua mãe, pedindo licença e meios. Antes, porém, de receber qualquer resposta, um fato sensacional se deu no Rio: o rinoceronte arrebentou as grades da jaula durante certa noite de temporal e fugiu. Fugiu para as matas da Tijuca, tomando depois rumo desconhecido.

Esse fato causou o maior rebuliço no Brasil inteiro. Os jornais não tratavam de outra coisa. Até uma revolução, que estava marcada para aquela semana, foi adiada, porque os conspiradores acharam mais interessante acompanhar o caso do rinoceronte do que dar tiros nos adversários.

“Um rinoceronte interna-se nas matas brasileiras”, era o título da notícia que vinha em letras graúdas em todos os jornais. Durante um mês ninguém cuidou de mais nada. Grande número de bombeiros e soldados da polícia foram mobilizados. Os melhores detetives do Rio aplicavam toda a sua esperteza em formar planos para a captura do misterioso animal. As forças do norte que andavam caçando o Lampião deixaram em paz esse bandido para também se dedicarem à caça do monstro. Dizem até que o próprio Lampião e seus companheiros pararam de assaltar as cidades para se entregarem ao novo esporte — a caça ao rinoceronte.

Onde estaria ele? Nas florestas do Amazonas? Nas matas virgens do Espírito Santo? Ninguém sabia. Telegramas chegavam de toda a parte sugerindo pistas. Um de Manaus dizia: “Numa floresta, a dez léguas desta cidade, foi visto, dentro dum cerrado de taquaruçus, o vulto negro dum monstro que parece ser o tal rinoceronte. Pedimos providências”.

Cinco detetives e numerosos bombeiros foram mandados de avião para aquele ponto, a fim de investigar. Descobriram tratar-se duma vaca preta que ficara entalada na moita de taquaruçus...

Outro telegrama do mesmo gênero veio da cidade de Cachoeiro, no Espírito Santo. “Nas matas vizinhas ouvem-se urros que não são de onça, nem de nenhum animal conhecido por aqui. Pedimos enérgicas providências.”

O avião dos detetives voou para lá. Era um papagaio que fugira dum jardim zoológico, no qual aprendera a imitar o urro de todos os animais.

Onde estará o rinoceronte? — eis a pergunta que, da manhã à noite, se repetia pelo país inteiro. Onde poderia ter-se escondido a tremebunda fera?

Ninguém possuía elementos para responder. Ninguém sabia. Ninguém — exceto... Emília!

Parecerá um absurdo. Parecerá invenção de gente sem serviço e, no entanto, é a verdade pura. Só a pequenina boneca do sítio de Dona Benta sabia realmente onde estava escondido o monstro!...

O caso foi assim. Logo que, naquela noite de temporal, o rinoceronte escapou da jaula e se internou nas matas da Tijuca, deu de andar sem rumo, e foi varando, sempre para diante, num trote respeitável até que, pela madrugada, surgiu na mata virgem do sítio de Dona Benta. Gostou do lugar e resolveu ficar por ali, pastando a viçosa folhagem das ervas que encontrou.

A presença do rinoceronte causou grande rebuliço entre os habitantes daquela mata. A capivara, que vive tanto em terra como em água, atirou-se ao rio e não teve mais coragem de sair. As onças fugiram. Os macacos empoleiraram-se na mais alta de todas as árvores. Nenhum animal podia compreender um bicho tão estranho e monstruoso. Observando aquilo, os besouros da Emília resolveram correr e avisá-la.

Foram ter com a boneca.

— Apareceu lá na mata um bicho, que não se parece com bicho nenhum nosso conhecido — informaram eles gemeamente.

— Grande? — perguntou a boneca.

— Terá o tamanho duma casinha de caipira.

Emília calculou logo que fosse algum boi tresmalhado mas, pela descrição que os besouros fizeram, viu logo que não podia ser boi. De repente, teve uma ideia.

— Escutem: o tal monstro não é preto?

— Sim.

— Não tem o couro enrugado?

— Enrugadíssimo.

— Não tem um chifre só no meio da testa?

— Isso mesmo. Um chifre pontudo.

— Come gente?

— Não, só come capim e folhas de árvore.

Emília pôs-se a refletir, com a mãozinha no queixo. Ou era unicórnio, animal fabuloso que não existe, pensou consigo, ou era rinoceronte, e como Emília andasse com a cabeça cheia de rinocerontes, de tanto ouvir Pedrinho ler as notícias do rinoceronte que fugira do circo, imediatamente percebeu que se tratava do mesmo.

— É ele! — exclamou, em voz alta. — Que sorte tem Pedrinho! Quis um rinoceronte e um rinoceronte apareceu!...

— Ele quem? — indagaram os besouros, com as testinhas franzidas.

— Ele! — repetiu a boneca, fazendo uma tal cara de pavor que os besouros se puseram a tremer. — Ele é ele, não sabem?

Emília teve preguiça de ensinar àqueles burrinhos o que era um rinoceronte. E para ainda mais os assustar, fez outra cara horrendíssima e repetiu em tom cavernoso:

— Ele!...

Os dois besouros desmaiaram.

Emília deixou-os lá e voltou para casa sem pressa nenhuma, pensando, pensando. Ciganinha como era, costumava tirar partido de tudo. Por isso estava se tornando a boneca mais rica do mundo. O acaso a fizera descobrir um rinoceronte. Pois bem: Emília iria vender esse rinoceronte a Pedrinho...

Quando entrou na varanda já trazia o seu plano formado.

— Pedrinho — disse ela —, tenho um bom negócio a propor.

O menino estava espichado na cadeira preguiçosa, lendo os últimos jornais recebidos. Sem tirar os olhos da notícia que lia, respondeu:

— Já vem ela com os tais negócios! Negócios de boneca — bobagens...

— Trata-se dum negócio muito sério, Pedrinho. Quando você souber o que é, vai arregalar um olho deste tamanho!

— Pois então desembuche logo e não amole — disse ele, sem tirar os olhos do jornal. — Estou lendo uma notícia muito interessante sobre o rinoceronte fugido.

Emília fingiu-se interessada.

— Sim? E que diz a notícia?
— Diz que tudo isto, toda esta história de rinoceronte fugido não passa duma formidável peta. Não existe rinoceronte nenhum. O diretor do circo inventou o caso apenas para reclame.

— Que pena! — exclamou a boneca, fingindo tom compungido. — Seria tão bom se fosse verdade...

— Eu logo vi que era peta — disse Pedrinho, querendo bancar o esperto. — Percebi desde o começo que se tratava duma formidável peta. Rinoceronte no Brasil! Impossível. Esses animais não suportam o nosso clima.

Emília sorriu de tal jeito que o menino desconfiou.

— De que está rindo assim, boba?

— Da sua esperteza, Pedrinho. Bem diz Tia Nastácia que você é um alho...

— Muito obrigado pelo elogio; mas, alho ou cebola, deixe-me em paz. Olhe, Emília, vá ver se eu estou no pomar, ouviu?

— Então não quer fazer o negócio que venho propor?

Pedrinho queria e não queria. Por fim, a curiosidade o venceu.

— Que negócio é? Vamos, diga logo.

Emília preparou-se para apresentar o negócio. Antes, porém, fez um rodeio.

— Escute cá, Pedrinho. Quanto acha você que vale um rinoceronte no Brasil? Responda!

O menino tonteou com o disparate. Não podia haver pergunta mais absurda e boba do que aquela. Ficou danado.
— Foi para isso que me veio interromper a leitura do jornal? Ora, vá lamber sabão, ouviu?

Novo sorriso finório da boneca, que disse:

— Paz, paz! Não se queime. Responda à minha pergunta. Dê um preço qualquer.

— Não amole, Emília. Se continua a insistir, leva um peteleco.

— Não sabe — disse ela. — É natural. Um menino que jamais saiu do Brasil, que não esteve nem no Rio de Janeiro, é natural que não saiba o preço dum rinoceronte. Está desculpado...

— Bobagem! — exclamou Pedrinho, queimado. — Então é preciso ter saído do Brasil, ter viajado pelo mundo, para saber uma coisa à toa como essa? Basta um pouco de raciocínio.

— Pois raciocine e responda à minha pergunta.

— Vale contos de réis. O valor das coisas depende da raridade delas, diz vovó. Numa terra onde haja centenas de rinocerontes, um deles vale... vale quanto? Vale o mesmo que um boi aqui ou uma vaca. Mas em terra onde não há nenhum, vale o que for pedido pelo seu dono. Eu, por exemplo, se fosse rico, era capaz de dar até trinta contos por um rinoceronte.

— Bom. Se fosse rico, dava trinta contos. E quanto dá sendo pobre? Tinha coragem de dar por um deles o carrinho de cabrito?

Esse carrinho de cabrito constituía o orgulho do menino. Fora presente do Manuel Carapina, um carpinteiro que passara lá uns dias, reformando o assoalho da casa. Pedrinho dava mais valor ao carrinho do que a todos os coches dourados de todos os reis da Terra — pela simples razão de que o carrinho lhe pertencia e os coches pertenciam aos reis. Mas um rinoceronte era um rinoceronte, de modo que a resposta do menino foi a que podia ser.

— Um rinoceronte vale todos os carrinhos de cabrito do mundo inteiro — disse ele.

— Pois eu tenho um belo rinoceronte à venda e se você quiser trocá-lo pelo carrinho, o negócio está feito.

— Basta! — gritou o menino. — Se continua a amolar-me com essa história, vou lá no seu cantinho e quebro todos os seus brinquedos. — Disse e absorveu-se de novo na leitura dos jornais.

Emília não contara com aquela saída. Percebeu que nem Pedrinho, nem ninguém no mundo jamais acreditaria que ela realmente tivesse um rinoceronte para vender — e desse modo estava arriscada a perder um grande negócio, talvez o melhor negócio de sua vida...


CAPÍTULO 9: EMÍLIA VENDE O RINOCERONTE

Emília tratou de procurar outro freguês. Foi à cozinha e propôs o negócio à Tia Nastácia. A negra, que estava depenando uma galinha, nem a ouviu no começo; depois, como Emília amolasse, disse apenas, em tom de brincadeira:

— Era só o que faltava, esse bicho de nome esquisito aqui para meter medo na gente! Se fosse uma chocolateira eu fazia negócio, porque a minha está vazando.

Para Dona Benta era inútil oferecer. A pobre senhora tinha horror a bichos, sobretudo depois que teve de meter-se em pernas de pau no dia do assalto das onças.

O Visconde seria capaz de aceitar, porque os fidalgos adoram as grandes caças — mas o pobre Visconde pertencia à classe dos fidalgos arruinados que só possuem o seu título de nobreza. Nunca teve de seu nem sequer um tostão furado.

Narizinho... Rabicó...

Estava Emília na maior indecisão quando a Cléu apareceu.

— Cléu — disse a boneca —, tenho um negócio excelente que ando a propor a todos e ninguém aceita. Pedrinho não acredita, Tia Nastácia não quer, o Visconde não tem dinheiro, com Rabicó e Narizinho ainda não falei.

— Que espécie de negócio é? — perguntou a menina. — Venda ou troca?

— Venda ou troca de um animal preciosíssimo que descobri na mata.

— Vai ver que é um rinoceronte! — sugeriu Cléu.

— Como sabe? Como adivinhou?

— Esperteza — respondeu Cléu. — Estou lendo nos seus olhos, Emília, que você é dona dum enorme rinoceronte de verdade.

— Sério?

— Seriíssimo!

Emília foi examinar-se ao espelho e achou que realmente estava com cara de dona de rinoceronte. Os sábios chamam a esse fenômeno “sugestão”.

— Bem — disse Emília, de volta do espelho. — Você adivinhou, Cléu. Tenho mesmo um rinoceronte para vender. Quer comprar?

— Não. Mas posso associar-me a você no negócio. Arranjarei jeito de vendê-lo a Pedrinho e metade do dinheiro é meu. Serve?

— Não quero vendê-lo por dinheiro e sim trocá-lo pelo carrinho de cabrito.

— Nesse caso eu terei metade do carrinho, as rodas, por exemplo — lembrou Cléu, mais para amolar a boneca do que por desejar realmente possuir as tais rodas.

Emília refletiu uns instantes. Depois disse:

— E você mais tarde me dá de presente as rodas?

— Dou, sim, dou desde já. Estou brincando. Não preciso, nem quero roda nenhuma. Ajudarei você a vender o rinoceronte sem cobrar comissão nenhuma.

Emília deu dois pinotes — e as duas foram ter com Pedrinho, que ainda estava lendo o jornal.

— Escute, Pedrinho — disse a boneca, tirando-lhe o jornal das mãos. — Vou ser franca. O tal rinoceronte que fugiu do circo existe, sim, e por um acaso descobri o lugar onde ele está. Juro! Ora, se você nos promete dar o carrinho de cabrito em troca, o negócio está feito.

Pedrinho estranhou aquele nos.

Nos? — repetiu ele, admirado. — Nos, quem?

— Eu e Cléu. Ela é sócia, tem metade do rinoceronte. O tom com que Emília falava começou a convencer o menino.

— Sério, Emília? Está falando sério?

— Nunca na minha vida falei tão a sério, Pedrinho. Sei onde está o rinoceronte fugido, mas só direi se você me der...

Nos der... — corrigiu Cléu.

— Sim, se você nos der o carrinho.

Um rinoceronte de verdade por um carrinho de cabrito era o melhor negócio do mundo. Pedrinho não vacilou um instante.

— Pois está fechado! — gritou ele. — Onde anda o bicho?

— Na mata dos Taquaruçus.

— Como o descobriu, Emília?

— Os meus besouros espiões são uns amores. Tudo o que se passa no mato eles correm a me contar. Inda há pouco vieram, muito assustados, dizer do aparecimento dum animalão enorme, assim, de chifre único na testa — e percebi que se tratava do rinoceronte fugido.

Era espantoso aquilo. Pedrinho sentiu o seu coração palpitar com violência. Um rinoceronte! Um rinoceronte de verdade, morando no sítio de Dona Benta! Não podia haver nada mais fantástico...

— Resta agora decidir o que faremos dele — murmurou o menino, atrapalhado.

— Matá-lo, caçá-lo, prendê-lo, devolvê-lo ao circo, amansá-lo, conservá-lo?... Que fazer?

— Acho que vocês devem amansá-lo e fazê-lo entrar para o bandinho — sugeriu Cléu. — Sempre achei que fazia muita falta aqui um bicho assim, dos grandes.

— Impossível, Cléu — disse Pedrinho. — Esses animais, além de ferocíssimos e traiçoeiros, são incomodamente grandes. Não cabem em parte nenhuma. E depois há ainda vovó e Tia Nastácia — as duas maiores medrosas do mundo. Se conservarmos o rinoceronte aqui no sítio, elas se trancarão em casa pelo resto da vida. São bobíssimas. Mas é coisa que veremos depois. Agora temos de ir espiar o bicho.

Guiados pela Emília, foram os três ao encontro dos besouros, que justamente naquele instante estavam voltando a si do longo desmaio.

— Onde está o rinoceronte? — perguntou-lhes Pedrinho, ao chegar.

Mal acordados ainda, e ignorantes do que significava a palavra “rinoceronte”, os pobres besouros olharam apatetada-mente para o menino.

Emília interveio, explicando que só ela sabia falar com aqueles bichinhos.

— Escutem — disse ela —, queremos saber onde ele está.

Os besouros entenderam e deram indicações do ponto exato onde ele se achava escondido.

Pedrinho, que conhecia a moita de taquaruçus, encaminhou-se para lá.

Meia hora depois chegaram todos a um ponto onde a moita se abria em clareira, tendo dum lado a Figueira-Brava, debaixo da qual os bichos costumavam reunir-se em assembleia, e do outro, a tal moita de taquaruçus. Chegaram, espiaram e nada.

— Vejo lá adiante uma pedra preta — disse Cléu, apontando para um rochedo de dorso redondo que os capins altos meio escondiam. — De cima talvez possamos avistar o monstro.

Correram todos para a tal pedra, treparam-lhe em cima e do alto espiaram por entre as árvores em todas as direções. Nada! Nem sombra de rinoceronte.

— Emília — disse Pedrinho, desapontado —, não há rinoceronte nenhum por aqui. Os senhores besouros nos tapearam da maneira mais indigna. Como castigo, merecem ser depernados de todas as perninhas. Se eu fosse você...

Pedrinho não pôde concluir. A pedra mexeu-se! Não era pedra — era o próprio rinoceronte que se tinha deitado naquele ponto para dormir...

O pulo que eles deram merecia ir para um quadro na parede, com moldura de ouro, pois foi o mais rápido e belo pulo que ainda se deu no mundo. Mas como o rinoceronte era pesadão, enquanto se punha em pé os quatro caçadores alcançavam o mais alto galho da Figueira-Brava, donde podiam vê-lo sem perigo nenhum.

— Realmente! — exclamou Pedrinho, lá no seu poleiro. — É rinoceronte dos legítimos. Vejam que formidável chifre tem na testa e que terrível couraça no corpo...

— A onça nós matamos — disse Narizinho —, mas este bicho cascudo não há meio. Bala não entra, faca não entra. Como iremos nos arranjar?

— O jeito é passarmos um telegrama para o Rio de Janeiro, contando às autoridades que o rinoceronte que elas procuram está aqui. O pessoal lá tem canhões e metralhadoras. Que acha, Emília?

Emília estava de ruguinha na testa, sinal de “ideia-mãe” em formação.

— Acho — respondeu — que não devemos mandar telegrama nenhum nem falar nisto a ninguém. Do contrário o sítio se entope de gente grande e adeus! Gente grande estraga tudo. Eu não aturo gente grande.

Os outros também, mas o caso era muito especial, muito sério mesmo, de modo que não havia remédio senão pedirem socorro à gente grande. Pelo menos Dona Benta tinha de ser avisada. O sítio, afinal de contas, era dela; o rinoceronte invadira a sua propriedade — natural pois que, como dona, ela resolvesse o caso. E foi decidido darem parte a Dona Benta do extraordinário acontecimento.

Mas como descer da árvore com aquele perigo chifrudo embaixo? O rinoceronte se havia posto de pé, embora sem mostrar intenção nenhuma de afastar-se dali.

Tosava as copas dos arbustos vizinhos e mascava as folhas com um sossego de boi de carro.

Quem salvou a situação foi a boneca.

— Tenho cá no meu bolsinho do avental uma isca do pó de pirlimpimpim. Se não perdeu a força, poderá levar-nos até ao terreiro.

Pedrinho arregalou o olho. Pó de pirlimpimpim no bolso da Emília? Como isso? Será que a boneca virará gatuna?

— Não furtei coisa nenhuma — protestou Emília, percebendo na cara de Pedrinho a desconfiança. — Não sou nenhuma ladrona, fique sabendo.

— Como então obteve esse pó?

— Muito simples. Quando fomos ao País das Fábulas e você me deu a pitada que eu devia tomar, tomei só meia pitada. O resto guardei no meu bolsinho para o que desse e viesse. Chegou agora a ocasião.

Foi uma grande alegria. Graças à providência da boneca iam todos salvar-se daqueles apuros. Mas no bolso da Emília só se encontrava meia pitada. Dividida entre quatro, caberia um oitavo de pitada a cada um.

— Bastará, Pedrinho? — perguntou Cléu.

— Basta. Com um oitavo iremos parar justamente no terreiro da casa.

Assim sucedeu. Tomaram a pitadinha do pó maravilhoso e imediatamente se acharam no terreiro do sítio. Dona Benta estava na varanda, conversando com Tia Nastácia sobre assunto agrícola — um pé de couve que Rabicó havia tosado na horta.

— Esse Marquês duma figa está precisando mas é de ir para o forno — dizia a preta, que nunca tomara muito a sério a fidalguia do leitão. — Nesse andar, protegido desse jeito pelos meninos, acaba virando aí um cachaço inútil, que ainda nos há de dar muito trabalho. Mas vá a gente falar nisso a Narizinho! A casa cai...

Nesse momento surgiram no terreiro os meninos. Detiveram-se um instante, cochichando entre si, e depois se encaminharam para a varanda.

— Temos novidade — resmungou Tia Nastácia. — Pedrinho está de mão no bolso e Emília, de ruguinha na testa. Esses sinais não falham. Credo!

Pedrinho subiu à varanda e, sem nenhum preparo do terreno, foi contando a Dona Benta a história do rinoceronte encontrado.

— Quê? Um rino... — repetiu a velha sem poder concluir a palavra.

— ...ceronte, vovó, um rinoceronte real de chifre único na testa e aquela couraça duríssima no corpo. Está lá perto da Figueira-Brava.

Dona Benta olhou para Tia Nastácia com ar de quem pede misericórdia.

— Um rinoceronte! — gemeu a boa senhora, com voz moribunda. — Era só o que faltava, santo Deus! Que irá ser de nós?...

A negra, que nada sabia a respeito de rinocerontes, ofereceu-se para ir espantar o bicho com o cabo da vassoura. Mas quando Narizinho lhe mostrou, na História natural, o retrato dum desses paquidermes e lhe explicou que tamanho tinham e que terrível era o chifre que possuem no meio da testa, a pobre criatura pôs-se a tremer da cabeça aos pés.

— E agora, sinhá? E agora, sinhá? — murmurava, no meio dos credos e figarabudos e pelo-sinais que não cessava de murmurar e desenhar na cara e no peito.

— Agora? — respondeu Dona Benta, depois de refletir uns instantes. — Agora temos que avisar a polícia do Rio para que tome providências, e enquanto isso ninguém tem ordem de sair desta casa. Dizem os naturalistas que o rinoceronte é talvez a fera mais traiçoeira e perigosa da África. Se apanha um de nós!...

Emília quis meter a sua colherzinha torta e começou:

— Dona Benta, eu acho que... Mas foi interrompida.

— Pelo amor de Deus, Emília, não ache mais coisa nenhuma. É por causa de tantos achados que vivo aqui de susto em susto, com a alma na boca, atacada por onças e agora até com feras africanas perto de casa...

Emília, desapontada, botou-lhe a língua, logo que a velha voltou as costas.

 

CAPÍTULO 10: O RIO DE JANEIRO É AVISADO

Dona Benta enviou um telegrama para o Rio de Janeiro que dizia assim: “Meus netos acabam de informar-me que o famoso rinoceronte, que andam procurando pelo país inteiro, acha-se escondido nas matas deste meu sítio. Encarecidamente peço providências imediatas. Benta de Oliveira”.

Cléu, a quem ela ditara o telegrama, observou que era bom mudar a assinatura para Dona Benta de Oliveira, avó de Narizinho e Pedrinho e dona do Sítio do Pica-Pau Amarelo, pois do contrário lá no Rio todos ficavam na mesma. Bentas de Oliveira há muitas e “meus sítios” também há muitos.

Dona Benta concordou.

— Façam como quiserem, mas que o telegrama siga quanto antes. Chamem um camarada do compadre Teodorico para o levar à cidade, no galope.

O telegrama foi passado naquele mesmo dia. Na manhã seguinte veio a resposta: “Seguem forças armadas sob comando detetive X B2.”

Fazia dois meses que o governo se preocupava seriamente com o caso do rinoceronte fugido, havendo organizado o belo Departamento Nacional de Caça ao Rinoceronte, com um importante chefe geral do serviço, que ganhava três contos por mês e mais doze auxiliares com um conto e seiscentos cada um, afora grande número de datilógrafas e “encostados”. Essa gente perderia o emprego se o animal fosse encontrado, de modo que o telegrama de Dona Benta os aborreceu bastante. Em todo caso, como outros telegramas recebidos de outros pontos do país haviam dado pistas falsas, tinham esperança de que o mesmo acontecesse com o telegrama de Dona Benta. Por isso vieram. Se tivessem a certeza de que o rinoceronte estava mesmo lá, não viriam!

Certa manhã, quando Tia Nastácia se levantou de madrugada e foi abrir a porta da rua, deu com o animalão a vinte passos de distância, olhando para a casa com os seus olhos miúdos. A negra teve um faniquito dos de cair desmaiada no chão. Ouvindo o baque de seu corpo, todos pularam da cama — e foi uma dificuldade fazê-la voltar a si. Desmaio de negra velha é dos mais rijos. Por fim, acordou e, de olhos esbugalhados, disse num fiozinho de voz:

— O canhoto já foi embora?

Ninguém sabia do que se tratava, porque ninguém ainda havia olhado para o terreiro.

— Que canhoto é esse? — indagou Dona Benta.

— O tal de um chifre só na testa — respondeu a negra.

— Estava aí fora quando abri a porta...

Só então os meninos espiaram pela janela e viram que o rinoceronte estava, de fato, no terreiro. Mas quieto, de cara pacífica, sem mostra nenhuma de ânimo agressivo. Olhava para a casa com toda a atenção, como se entendesse de arquitetura rural — isto é, de arquitetura de casas da roça. Depois, mansamente, dirigiu-se à porteira e lá se deitou de atravessado.

— Pronto! — exclamou Narizinho. — Atravessou-se na porteira e quero ver agora quem entra ou sai. Estamos bloqueados...

A aflição de Dona Benta aumentou. Viu que, de fato, estavam com a saída do sítio bloqueada por aquele monstruoso animal que parecia não ter a mínima intenção de afastar-se dali.

Nesse momento viram um grupo de homens que se aproximavam.

— São eles! — gritou Cléu. — São os homens da polícia secreta que receberam o nosso telegrama. Secretas a gente conhece de longe!...

E eram. Era o famoso grupo dos Caçadores do Rinoceronte, que se formara logo em seguida à fuga do misterioso paquiderme e que vinha percorrendo o país inteiro em sua procura. Comandava-os o espertíssimo detetive X B2, que tinha lido todos os fascículos das Aventuras de Sherlock Holmes existentes nas livrarias. Esses homens traziam consigo numerosas armas e armadilhas próprias para caçar rinocerontes — mundéus desmontáveis, ratoeiras de gigantescas proporções, correntes de aço, um canhão-revólver e uma metralhadora. A única coisa que não traziam era intenção real de apanhar o monstro.

Assim que chegaram ao pasto do sítio e deram com o enorme paquiderme atravessado na porteira, começaram a discutir se atiravam ou não. Um queria que se empregasse o “mundéu desmontável”. Outro queria que se armasse a “ratoeira gigante”. Por fim, o detetive X B2 decidiu empregar o canhão-revólver.

— Atirem — disse ele —, mas com pontaria que não venha a prejudicar os nossos empregados.

Disse e piscou. O que todos queriam era passar toda a vida caçando aquele mamífero.

Mas a Emília, que tinha terríveis olhos de retrós, viu de longe a piscadela cavorteira e percebeu a manobra.

— Vão atirar e errar! — gritou ela muito contente, porque já estava criando amor ao “seu rinoceronte” e não queria que lhe estragassem o couro com um furo de bala; apenas admitia que o caçassem vivo.

Ao ouvir aquilo Dona Benta protestou.

— Então não quero! — disse ela. — Se esses homens não têm boa pontaria, as balas podem passar por cima do alvo e virem quebrar algum vidro das nossas vidraças. Não quero!... E voltando-se para a Cléu, que tinha muito boa letra e sabia escrever com todos os Fs e Rs:

— Escreva uma carta ao chefe daqueles caçadores dizendo que não admito que atirem de lá para cá. O Visconde que leve a carta.

Cléu escreveu a carta sem um erro, e pediu ao Visconde que a levasse. Como fosse pequenininho, o Visconde podia passar por trás do rinoceronte sem ser percebido — e ainda que fosse percebido e devorado não fazia mal, pois que era de sabugo e havendo muitos sabugos no sítio, Tia Nastácia num momento fazia outro Visconde.

O nobre mensageiro nem se deu ao trabalho de passar por trás do monstro. Subiu por cima dele como quem sobe um morro, e desceu do outro lado sem ser percebido. Depois foi correndo entregar a carta. Chegou no instantinho em que o artilheiro ia disparar o canhão.

— Alto! — gritou o detetive X B2. — Deixe-me primeiro ler esta carta.

— A dona da propriedade não quer saber de tiros daqui para lá. Diz que as balas poderão quebrar os vidros das suas vidraças. Acho que ela tem toda a razão.

— Nesse caso, que fazer? — perguntou o artilheiro.

— Temos de passar para o lado de lá. Podemos colocar o canhão e a metralhadora na escadinha da varanda. Desse modo, se houver balas perdidas, poderão apenas alcançar algum macaco na floresta, lá longe.

Muito bem. Mas como atravessar para o outro lado, com o canhão e a metralhadora, se a única passagem era pela porteira, e o inimigo estava deitado ali, de través? O problema tornava-se dos mais sérios. Requeria estudos. O detetive X B2 reconcentrou-se cheio de rugas na testa, a refletir. Refletiu e, depois de muito refletir, disse:

— Antes de mais nada, temos de construir uma pequena linha telefônica que nos ponha em comunicação com a gente do sítio, a fim de que eu possa debater o caso com a Senhora Dona Benta e agir de acordo com ela e os demais moradores. Assim, por meio de cartas, a coisa levará toda a vida. Não há como o telefone para as comunicações rápidas. Vou telegrafar para o Rio de Janeiro, pedindo a remessa do material necessário para a construção duma linha telefônica.

Resolvido isso, retiraram-se todos para a vila próxima, onde ficaram tocando violão e contando casos pândegos até que o material encomendado chegasse. Isso levou um mês. Mas afinal chegou, e o detetive deu ordem para que no dia seguinte os trabalhos fossem iniciados.

Na manhã do dia seguinte os moradores do sítio viram reaparecer no pasto os caçadores do governo, seguidos duma turma de operários com rolos de arame, postes e mais coisas telefônicas. Nesse dia, porém, o rinoceronte falhou de vir deitar-se de atravessado na porteira, como era seu costume. O trânsito estava completamente livre.

— Ué! — exclamou o detetive X B2, muito admirado. — Para onde terá ido o malandro do rinoceronte?

Dirigiu-se à casa para falar com Dona Benta.

— Como foi isso, Dona Benta? — disse ele, subindo à varanda. — Deixei o rinoceronte deitado na porteira e agora não encontro o menor sinal do bicho.

Dona Benta explicou tudo quanto sucedera durante as semanas em que eles estiveram tocando violão na vila. O rinoceronte adquirira o hábito de passar o dia na Figueira-Brava, só vindo deitar-se à porteira lá pelas três horas da tarde.

— Chega sempre a essa hora, deita-se e fica a cochilar até à noite — explicou a boa senhora. — É um animal bastante sistemático.

— Bem — disse o detetive —, nesse caso teremos toda a manhã livre para trabalharmos na construção da linha telefônica.

Dona Benta arregalou os olhos.

— Que linha telefônica é essa? — perguntou.

— A linha que resolvemos construir para ligar esta casa ao nosso acampamento. Como naquele dia o rinoceronte estivesse atravessado na porteira, impedindo a passagem, eu não pude discutir com a senhora vários assuntos importantes. Tive então a excelente ideia de construir essa linha, com os fios passando por cima do “obstáculo”.

Dona Benta admirou-se da complicação.

— Sim — disse ela —, mas já que o senhor pôde chegar até aqui, creio que a linha telefônica já não é mais necessária.

O detetive sorriu da ingenuidade da velha e explicou que o material já havia chegado e que, portanto, a linha ia ser construída. Terminou piscando o olho vermelho e dizendo: — O Departamento Nacional de Caça ao Rinoceronte sabe o que faz, minha senhora.

— Pois façam lá como entenderem — concluiu Dona Benta. — Não entendo de tais serviços, nem quero entender. Aqui estamos nós para prestar aos senhores toda a ajuda possível. O que quero é que o quanto antes me livrem desse animalão. Mas, meu caro senhor, esse negócio não está me parecendo sério...

O detetive sorriu indulgentemente e respondeu:

— É que a senhora não conhece as condições. Para nós é um negócio da maior importância, visto como dele tiramos o pão de cada dia...

 

CAPÍTULO 11: INAUGURA-SE A LINHA

A linha telefônica foi construída com todo o luxo, como é de costume nas obras do governo. Os postes foram até pintados! Era a mais curta linha do mundo: com cem metros de comprimento e dois postos apenas, um no terreiro da casa e outro no acampamento dos caçadores. Um poste foi pintado de verde, outro de amarelo. No dia da inauguração, porém, aconteceu um fato imprevisto: o rinoceronte não veio deitar-se à porteira na hora do costume. Nem apareceu no dia seguinte, nem durante toda a semana. Os caçadores tiveram de armar barracas e ficar ali esperando, pacientemente, que ele se resolvesse a voltar.

Por que isso? Porque ficava sem jeito inaugurarem a linha sem o rinoceronte atravessado na porteira. Sem rinoceronte poderiam entrar duma vez no terreiro e falar diretamente com a dona da casa. Mas precisavam justificar a construção da linha, e por isso resolveram esperar que o monstro voltasse.

Vendo as coisas assim encrencadas, Emília resolveu intervir. Foi à Figueira-Brava pedir ao rinoceronte que não desapontasse a gente do governo e continuasse a ir dormir na porteira. Não se sabe de que argumentos a boneca usou; o que se sabe é que no dia seguinte, exatamente às três da tarde, o rinoceronte veio de novo, pachorrentamente, deitar-se de atravessado na porteira.

Houve vivas de entusiasmo no acampamento dos caçadores. Podiam, enfim, inaugurar a linha.

Trlin, trlin... soou na varanda a campainha do aparelho.

— Vá atender — disse Dona Benta ao Visconde, que estava cochilando por ali.

— Eu atendo — gritou Cléu, que tinha muita prática em falar ao telefone. E numa vozinha muito clara e espevitada atendeu: — Alô! Quem fala?

— Fala aqui o detetive X B2, chefe do Departamento Nacional de Caça ao Rinoceronte — respondeu uma voz grossa. — E quem está falando aí?

— Aqui fala Cléu, por ordem da proprietária da casa, Dona Benta Encerrabodes de Oliveira, avó de Narizinho, Pedrinho e Rabicó. Que deseja Vossa Rinocerôncia?

— Desejo participar à dona da casa que a linha telefônica está concluída e que agora podemos discutir as operações necessárias à caçada do rinoceronte, tendo o gosto de fazer com que as nossas palavras passem bem por cima dele sem que o bruto perceba, ah! ah! ah!...

— Mas por que não discutiu isso durante a semana em que o rinoceronte andou sumido e a passagem pela porteira estava completamente franca? Acho que Vossa Rinocerôncia perdeu um tempo precioso. 

— Menina — respondeu, meio ofendido, o detetive X B2 —, não se meta no que não é da sua conta. O governo sabe o que faz. Quero falar com a dona da casa.

Cléu tapou com a mão o bocal do telefone e voltou-se para Dona Benta.

— Ele quer falar com a senhora mesma.

Mas a velha não estava pelos autos. Considerava aquela gente uma súcia de idiotas, um verdadeiro bando de exploradores.

— Diga-lhe que não me aborreça. Estou muito velha para andar servindo de instrumento a piratas.

Cléu deu o recado, com outras palavras para não ofender o governo, e então o detetive X B2 explicou que necessitava da autorização de Dona Benta para construir outra linha...

— Segunda linha telefônica? — indagou Cléu, admirada.

— Não, menina abelhuda. Agora será uma linha de transporte aéreo, que nos permita levar para aí as nossas armas e bagagens. Só assim poderemos assestar o canhão-revólver e a metralhadora na escadinha da varanda, de modo a abrir fogo de barragem contra o inimigo, sem dano para os vidros das vidraças de Dona Benta.

— E foi só para pedir tal licença que os senhores levaram tanto tempo construindo esta linha telefônica? — perguntou Cléu, admiradíssima.

— Não discuta os nossos processos, menina impertinente — disse com cara feia o detetive X B2. — O governo sabe o que faz, torno a dizer.

Cléu tapou de novo a boca do aparelho, enquanto consultava Dona Benta.

— Ele pede licença para construir uma nova linha — uma linha de cabos aéreos, como aquela do Pão de Açúcar...

Dona Benta respondeu que fizessem como entendessem e não a incomodassem mais.

Pedrinho estava assombrado da esperteza daqueles homens. Iam construir uma linha de cabos só para levar ao terreiro um canhãozinho e uma metralhadora!...

Muitos rinocerontes já haviam sido caçados desde que o mundo é mundo, mas nenhum seria caçado tão caro e com tanta ciência como aquele. Apesar de nunca saídos daqui, tais homens bem que podiam mudar-se para a África, a fim de ensinar aos negros do Uganda como é que se caçam feras...

Tanto tempo levou a construção da linha de cabos aéreos que o rinoceronte se foi familiarizando não só com as pessoas do sítio, como ainda com o pelotão de caçadores. Várias vezes chegou até o acampamento onde farejava com curiosidade o canhão-revólver e a metralhadora, sem saber para que serviam. Numa dessas vezes ajudou os construtores da linha a arrancarem um poste que fora fincado torto, trabalhando tal qual um elefante manso da índia.

Emília tornara-se amiga íntima do animalão. Ia sempre à Figueira-Brava vê-lo pastar arbustos, e com ele entretinha-se horas a ouvir casos da vida africana. Era um rinoceronte de boa paz, já velho, com a ferocidade nativa quebrada por longos anos de cativeiro no circo. Só queria uma coisa: sossego. Por isso fugira do circo e viera esconder-se ali, no silêncio do capoeirão dos Taquaruçus.

— Eles querem matar você — disse-lhe Emília certa manhã. — Trouxeram para esse fim um canhão-revólver e uma metralhadora.

O rinoceronte arrepiou-se todo. Jamais supusera que a atividade daqueles homens e toda a trapalhada das linhas, que andavam assentando, tivessem por fim dar cabo da sua vida.

— Mas por quê? — indagou, em tom magoado. — Que mal fiz eu a essa gente?

— Nenhum, mas você é o que os homens chamam “caça” — e o que é caça deve ser caçado. Quando os homens encontram no seu caminho uma lebre, uma preazinha, um inambu, um pato selvagem ou o que seja, ficam logo assanhadíssimos para matá-lo — só por isso, porque é caça. Mas você não tenha medo que não será caçado. Hei de dar um jeito.

— Que jeito?

— Não sei ainda. Vou ver. Mas não se incomode. Sou jeitosíssima! Dou um jeito de afugentar os homens e você ficará morando toda a vida neste sítio. Já temos em nosso bandinho um quadrúpede, o Marquês de Rabicó, que é leitão, conhece?

— Não tenho a honra.

— Pois é um senhor muito importante, apesar da sua covardia e gulodice (Emília não teve a coragem de contar que Rabicó era seu marido). Tem quatro pés, como você, mas nem um pingo de chifre. Com mais um companheiro, e este de formidável chifre na testa, havemos de pintar o sete pelo mundo...

Emília estava radiante com a ideia de ver o rinoceronte incorporado à família de Dona Benta. Tia Nastácia é que iria ficar tonta de susto...

— E que tenho de fazer nesse bando? — perguntou o rinoceronte, comovido com o oferecimento.

— Nada, por enquanto. Mais tarde, veremos. O pelotão dos caçadores já está com a linha aérea pronta. Breve farão o transporte do canhão-revólver, da metralhadora e do resto. Vão assestar essas armas na escadinha da varanda.

— Devo então continuar a deitar-me na porteira, não é?

— Está claro. Para que eles possam utilizar-se da linha de cabos aéreos é indispensável que você esteja atravessado na porteira.

O rinoceronte não entendia aquilo.

— Mas por que já não transportaram esse tal canhão no tempo que passei sem ir deitar-me à porteira?

— Não sei — respondeu Emília, que de fato não sabia. — Dona Benta também não sabe, nem Cléu, que foi quem conversou com o detetive X B2 pelo telefone, nem Narizinho, nem Pedrinho, nem o Visconde, nem Rabicó — ninguém sabe. Diz Cléu que são “coisas do governo”, um puro mistério.
O rinoceronte ficou pensativo. Devia ser uma bem estranha criatura esse tal governo, que fazia coisas acima do entendimento até da Emília!

Às três da tarde apareceu o animalão no terreiro, indo deitar-se no seu lugarzinho do costume. Grande alegria entre os caçadores. Podiam, afinal, fazer o transporte das armas e bagagens, e também de si próprios, utilizando-se da linha de cabos aéreos, e em seguida dar começo ao ataque à fera. Um entusiasmadíssimo telegrama foi passado para o Rio, nestes termos: “Trabalhos linha aérea brilhantemente concluídos ponto iniciaremos hoje transporte armas e bagagens ponto vitória segura ponto saúde e fraternidade”.

Os jornais publicaram a notícia com grandes elogios aos heróicos caçadores do rinoceronte, que tão bravamente arrostavam os maiores perigos a fim de limpar o solo da pátria daquele perigosíssimo animal. O detetive X B2 foi chamado “impertérrito”, e outros lindos adjetivos que a imprensa só usa para homens de pulso e tremendos heróis do mais alto calibre. Choveram telegramas de parabéns pela beleza dos trabalhos realizados.

Às três da tarde, logo que o rinoceronte se atravessou na porteira, a linha de cabos foi posta a funcionar. Primeiro passou, pendurado em carretilhas, o canhão-revólver. Depois a metralhadora. Depois passaram as munições, a bagagem, as violas e, por fim, os caçadores.

Dona Benta viu, com má cara, toda aquela gente encher o terreiro. Já andava enjoada deles, e quando Tia Nastácia falou em lhes oferecer um café com bolinhos, não consentiu.

— Nada de comedorias — disse ela. — Do contrário esses heróis nunca mais me abandonam o sítio.

— É isso mesmo, sinhá — tornou a preta. — O meu cafezinho parece que tem visgo.

Enquanto os homens descansavam, um tanto desapontados de não aparecer o café com bolinhos, Emília foi secretamente à caixa das munições e trocou a pólvora que lá havia por farinha de mandioca. Em seguida, mandou pelo Visconde um recado muito comprido ao rinoceronte, o qual terminava assim: “... e quando eu soltar um assobio, você levanta-se e dá uma investida de rinoceronte selvagem contra esses homens”.

— E se o rinoceronte errar e investir também contra algum de nós? — objetou com muita sabedoria o Visconde. — Porque aqui da casa ele só conhece você.

Emília refletiu um bocado. Depois:

— Diga-lhe para só chifrar os que não tiverem uma rodela de casca de laranja no peito. 

Enquanto o Visconde dava o recado, Emília foi ao pomar com uma faca e trouxe meia dúzia de rodelas de casca de laranja, que colocou no peito de cada morador da casa sem perder tempo em explicar para que era. Só Tia Nastácia insistiu em saber as razões.

— Ah, não quer? — disse Emília. — Sua alma sua palma. Depois não se queixe — e deixou-a sem rodela no peito.

— Tudo pronto? — indagava ele.

— Tudo pronto! — responderam os perguntados.

— Então, fogo!

— Parem! Parem! Não ainda! — berrou Tia Nastácia lá de dentro. — Estou procurando algodão para botar nos meus ouvidos e nos de Dona Benta. Onde já se viu dar tiro de peça na escadinha da varanda sem a gente estar com um bom chumaço de algodão nos ouvidos? Credo!
Os artilheiros esperaram que os ouvidos das duas velhas ficassem perfeitamente enchumaçados. Depois, ouvindo de novo a ordem de “Fogo!”, fecharam os olhos e bateram na espoleta.

A decepção foi completa. Em vez dum terrível Bum! que atroasse os ares, o que saiu do canhãozinho foi pirão de farinha de mandioca. O grande tiro falhara da maneira mais vergonhosa. Nesse momento Emília, imitando Pedrinho, meteu dois dedos na boca e tirou um assobio agudíssimo.

O rinoceronte ouviu lá longe. Levantou-se de cara feia e veio, que nem uma avalancha de carne, contra os seus perseguidores.

Soou um berro de pânico misturado com a ordem do detetive X B2 de “salve-se quem puder”. Todos puderam, porque todos se salvaram, como veados, pelos fundos do quintal, imperterritamente. Naquela velocidade, em menos de uma hora estariam no Rio de Janeiro.

Ao alcançar a escadinha, o rinoceronte não encontrou um só inimigo, isto é, uma só pessoa sem rodela de casca de laranja no peito. Minto. Encontrou uma: Tia Nastácia, e ao vê-la sem rodela pensou que fosse cozinheira da gente do governo. Abaixou a cabeça e investiu. A pobre preta mal teve tempo de trancar-se na despensa, onde fez, no escuro, mais pelo-sinais do que em todo o resto de sua vida.

— Toma! — gritou a diabinha da Emília. — Quis ser muito sabida, não é? Pois toma...

 
CAPÍTULO 12: RINOCERONTE FAMILIAR

A vida no sítio mudou depois da entrada do rinoceronte para o bando. No começo Narizinho e Pedrinho não podiam esconder certo medo. Quanto a Dona Benta e Tia Nastácia, isso nem é bom falar. Tremiam de pavor sempre que à tarde, conforme seu costume, o paquiderme vinha da Figueira-Brava postar-se no terreiro para longas prosas com a Emília. Nem espiar pela janela espiavam, as coitadas. Mas os meninos espiavam. Regalavam-se de espiar.

O rinoceronte vinha e dava um bufo. Emília e o Visconde largavam incontinenti o que estivessem fazendo e iam na volada ao encontro dele, para ouvirem histórias da África. Depois se punham os três a brincar de esconde-esconde, de chicote-queimado, de pegador. Emília logo inventou jeito de montar a cavalo no chifre dele para passear pelo terreiro. O Visconde puxava o monstruoso paquiderme por uma cordinha atada à orelha.

— Que danada esta Emília! — dizia Narizinho, lá da sua janela, com uma inveja louca de fazer o mesmo. — Não tem medo de coisa nenhuma...

— Grande milagre! — retorquia Pedrinho, com uma ponta de inveja. — Se eu fosse de pano, como ela, até em três rinocerontes montava ao mesmo tempo.

— Não sei, não sei, Pedrinho — intervinha a Cléu, fazendo cara de dúvida. — Emília é mesmo uma exceção completa. Isso de não ter medo me parece o de menos. O que me assombra é o jeito que ela tem para tudo. Repare que neste caso do rinoceronte foi quem fez sempre o primeiro papel. Foi quem o descobriu, foi quem o amansou, foi quem passou a perna nos caçadores e os botou daqui para fora a fugirem como veados. Ora, isto é muito para uma boneca, não acha?

Pedrinho, que estava namorando a Cléu, não teve remédio senão achar que sim. Numa dessas vezes Tia Nastácia criou coragem e entreabriu muito devagarinho a janela. Espiou pela fresta.

— Nossa Senhora da Aparecida! — exclamou, com os olhos pulando da cara. — Venha ver, sinhá! A Emília a cavalo no tal boi de um chifre só e o Visconde puxando ele por uma cordinha, como se fosse a coisa mais natural do mundo! Credo!...

Dona Benta espiou e também assombrou-se.

— Realmente! Para mim a Emília é alguma fadinha que anda pelo mundo disfarçada em boneca de pano. Passear a cavalo num rinoceronte! Vá a gente contar isso lá fora — ninguém acredita, nem pode acreditar...

— E o Visconde, sinhá, repare o jeitinho dele, puxando o boi...

— Não é boi, Nastácia, é ri-no-ce-ron-te — emendou Dona Benta.

— Para mim é boi — insistiu a negra. — Não sei dizer esse nome tão comprido e feio. Estou velha demais para decorar palavras estrangeiras. Mas repare no Visconde, sinhá. Puxa o boi da África como se estivesse puxando um boizinho de chuchu, daqueles que Seu Pedrinho costuma fazer...

E as duas ficavam de boca aberta, admirando aqueles assombros. Um dia Narizinho gritou lá da sua janela:

— Emília, estou com vontade de perder o medo e montar nele também. Que acha?

— Pois venha, boba! Não há bicho mais manso que este. A História natural de Dona Benta está errada. Não vê como faço dele gato e sapato?

— Sim, mas você é de pano e eu não. Sou de carne...

— Por dentro; por fora é de pano como eu — os vestidos. Faça de conta que é de pano inteirinha e venha. Ele tem reparado muito na sua ausência, está até sentido. Venha e diga a Pedrinho e Cléu que venham também.

Narizinho, Pedrinho e Cléu entreolharam-se com uma vontade louca de aceitar o convite.

— Vamos? — propôs Narizinho, já meio decidida.

— Vamos! — responderam os outros, corajosamente. Minutos depois estavam os três repimpados no lombo do rinoceronte.

— Falta Rabicó! — berrou a Emília. E pôs-se a chamar: — Rabicó! Rabicó! Não seja bobo, venha também!...

Mas Rabicó estava a duzentos metros dali, no pasto, espiando a cena por detrás dum capim. Não vê que ia!

As brincadeiras com o rinoceronte repetiam-se diariamente, por horas. Além das passeatas, inventaram novas coisas, como, por exemplo, fazê-lo puxar o carrinho de cabrito, com um passageiro de cada vez porque não cabiam dois. Ora ia Narizinho, ora o menino, ora a Cléu. Emília nunca deixava o seu posto no chifrão do monstro. Aquele lugar era dela só.

Um dia Tia Nastácia não resistiu. Foi para o terreiro ver de perto a brincadeira. Quando virou o rosto, viu Dona Benta que vinha vindo. Dona Benta também não resistira à tentação.

Os meninos fizeram-lhes uma grande festa.

— Ora, graças que se estão civilizando! — berrou Narizinho. — Viva vovó! Viva Tia Nastácia!

Nisto, Cléu, que estava dentro do carrinho, pulou fora e disse:

— Chegou sua vez, Dona Benta. Suba!

Era um despropósito aquilo, coisa para desmoralizar a boa velha para o resto da vida. Apesar disso a tentação foi forte e, como Cléu a ia empurrando, Dona Benta de súbito decidiu-se. Ajuntou a saia e, sem olhar para Tia Nastácia (de vergonha), subiu ao carrinho.

— Viva! Viva vovó! — berraram, do alto do paquiderme, os meninos. — Toca, Emília! Puxa, Visconde!

Emília deu no rinoceronte com o seu chicotinho e o Visconde o puxou quatro vezes até à porteira, ida e volta. Se houvesse por ali um aparelho de cinema podia ser tirada a melhor fita do mundo...

Nesse ponto da brincadeira, porém, aconteceu uma atrapalhação. Dois homens a cavalo surgiram na estrada. Mais que depressa Dona Benta pulou fora do carrinho e correu para a varanda.

Os homens pararam na porteira e pediram licença para entrar. Entraram. Apearam-se. Dirigiram-se para a varanda.

— Desejamos falar com a dona da casa — disseram.

— Sou eu a dona da casa. Que é que Vossas Senhorias desejam? Um dos homens era alemão. O outro, brasileiro. Foi este quem falou.

— Minha senhora — disse ele —, quero apresentar a VOSSA EXCELÊNCIA o Senhor Fritz Muller, proprietário do circo de cavalinhos que está no Rio de Janeiro. O Senhor Muller é dono dum rinoceronte que fugiu de lá faz uns meses. Depois de longas pesquisas descobriu que o animal estava escondido aqui e veio comigo reclamá-lo. Sou o seu advogado.

O rinoceronte reconheceu o Senhor Muller e pendurou o focinho, muito triste, já sem vontade de brincar.

— Que é que há? — perguntou-lhe a boneca, ao ouvido.

— Aquele homem louro é o meu dono — respondeu o paquiderme — e veio buscar-me. Estou triste porque gosto muito mais daqui do que do circo...

Emília abespinhou-se toda, lançando um olhar terrível para os dois intrusos. Refletiu uns instantes e depois disse ao animalão:

— Não se aborreça. Darei um jeito desses piratas fugirem daqui ainda mais depressa que os caçadores. — Disse e desceu, dirigindo-se para a varanda, onde ficou atrás duma cadeira, escutando a conversa dos homens com a velha.

— Pois não haja dúvida — dizia Dona Benta. — Se o animal é seu, pode levá-lo, apesar de que está muito acostumado aqui e não nos incomoda em nada.

— Está bem — disse o alemão. — Vou levá-lo já.

Ao ouvir tais palavras Emília não se conteve. Pulou de trás da cadeira, plantou-se diante do homem, de mãozinhas na cintura, e disse:

— A coisa não vai assim, meu caro senhor! Não basta ir dizendo que o rinoceronte é seu. Tem que provar que é seu, sabe?

O alemão ficou espantadíssimo daquele prodígio: uma bonequinha falando, e falando daquele jeito, com tal arrogância.

— Quem é esta “senhorrita”? — perguntou ele a Dona Benta.

— Pois é a Emília, Marquesa de Rabicó; nunca ouviu falar dela? Foi quem descobriu o rinoceronte no capoeirão dos Taquaruçus. Depois o vendeu a Pedrinho. Depois o amansou e agora passa o dia a brincar com ele.

O alemão estava cada vez mais assombrado. Apesar de ser homem vivido, e de ter corrido o mundo inteiro com o seu circo, jamais observara fenômeno igual: uma bonequinha tão pernóstica. Quis continuar a falar e não pôde. Estava engasgado.

Quem falou dali por diante foi o seu companheiro.

— Sim, sim, minha senhorinha — disse este —, o rinoceronte pertence aqui ao meu amigo Muller, que o vem reclamar. Vejo que tanto a senhorinha como os outros meninos já estão acostumados com o paquiderme. Infelizmente somos obrigados a levá-lo para o circo.

Emília empertigou-se mais ainda.

— Vamos por partes — disse ela. — Antes de mais nada, quero que o senhor doutor me prove que ali o Senhor Muller é mesmo o dono deste rinoceronte. Exijo provas, sabe? Eu não uso anel de advogado no dedo, mas acho que em direito o que vale são as provas.

Foi a vez de o advogado abrir a boca, de espanto. A tal bonequinha sabia discutir como um perfeito rábula.

— Toda gente deste país sabe que o rinoceronte pertence ao Senhor Muller — disse ele. — Os jornais deram mil notícias a respeito de sua fuga e da busca que os homens do detetive X B2 andaram fazendo pelo Brasil inteiro. É um fato de domínio público.

— Perfeitamente — replicou Emília. — Não nego que esse cara-de-cavalo-melado...

— Emília! — repreendeu Dona Benta. — Mais modos, hem?...

— ... seja dono dum rinoceronte. Mas quero que prove que o rinoceronte dele é este, está entendendo?

O advogado deu uma risadinha amarela.

— Muito fácil provar, bonequinha. No Brasil não há rinocerontes. O Senhor Muller foi o primeiro homem que trouxe um para cá. Esse um fugiu. Em seguida aparece este rinoceronte por aqui. Logo, o presente rinoceronte é o mesmo rinoceronte do referido Senhor Muller.
— Isso nunca foi prova, nem aqui nem na casa do diabo — contestou Emília. — Quero prova de verdade. Alguma marca, algum sinal de nascença...

— A marca é aquele chifre único que ele tem na testa — disse o advogado, piscando o olho, como se Emília não soubesse que todos os rinocerontes daquela espécie possuem sempre um chifre só.

Emília não respondeu. Achou um grande desaforo querer aquele idiota fazê-la de boba. Em vez de responder, disse apenas:

— Espere aí.

O advogado esperou, com um sorriso nos lábios, certo de que a tinha vencido na argumentação. Enquanto esperava, ia trocando olhares velhacos com o Senhor Muller.

Emília foi mexer nos guardados de Pedrinho e trouxe uma pitada de pó de pirlimpimpim num pires.

— Vamos resolver esta questão dum outro modo — disse ela, ao voltar. — Tenho aqui este tabaco que vou dividir em duas porções. O senhor toma uma pitada e ali o “cara-melada...”

— Emília!... — repreendeu de novo Dona Benta.

— ... toma outra. Se não espirrarem, é que o rinoceronte é o mesmo que andam procurando.

O advogado e o alemão acharam muita graça naquilo e, sem desconfiança nenhuma, resolveram tomar a pitada de pó de pirlimpimpim, certos de que não espirrariam. Era dose pequena demais para fazer espirrar dois homões como eles, acostumados ao fumo forte. Tomaram a pitada, sorridentes e... fiunnn! — ninguém nunca soube onde foram parar! Sumiram-se no espaço...

A vitória da Emília foi saudada com berros e palmas. Até o rinoceronte aplaudiu com urros, contentíssimo do feliz desfecho do incidente.

Dona Benta deu um suspiro de alívio e voltou ao terreiro. Queria continuar o seu passeio no carrinho. Mas não pôde. Tia Nastácia já estava escarrapachada dentro dele.

— Tenha paciência — dizia a boa criatura. — Agora chegou minha vez. Negro também é gente, sinhá...

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário