sábado, 11 de dezembro de 2021

A menina dos fósforos (Contos de Fadas), de Hans Christian Andersen

 

A MENINA DOS FÓSFOROS
 

Estava horrivelmente frio, geava, e era quase noite escura, a última do ano.

Estava assim escuro e frio, quando caminhava pela rua uma menina com os pés nus e a cabeça descoberta. Tinha calçado chinelas ao sair de casa, mas de que lhe serviram? Eram muito grandes, e tanto, que a mãe as tinha usado até então; demais, a pequena perdeu-as ao atravessar à pressa uma rua, fugindo de dois carros que rodavam com velocidade de pôr medo. Uma das chinelas não a pôde tornar a achar; e a outra apanhou-a um rapaz, e lá foi a correr com ela; até se lembrou que lhe serviria de brinquedo, caso viesse a ter filhos.

Assim caminhou a menina com os pesinhos nus e roxos de frio. Trazia num avental velho uma porção de fósforos, e na mão um maço deles. Ninguém lhe comprara nada todo o dia, ninguém lhe fizera presente de cinco réis.

Imagem da miséria, a pobre pequena ia-se arrastando a tremer de frio e fome!

Os flocos de neve cobriam-lhe o cabelo comprido e louro, que em formosos anéis lhe caía pelo colo abaixo; mas, em verdade, nisto pensava ela!

De todas as janelas brilhavam luzes; e vinha de lá um delicioso cheiro a ganso assado; era a noite de São Silvestre; e nisto pensava ela!

A um canto formado por duas casas, uma das quais era mais saliente do que a outra, sentou-se ela, e, como pôde, conchegou-se; meteu bem para dentro os pesinhos, mas ainda mais lhe arrefeceram; e não ousava ir para casa por não ter vendido fósforos, nem arranjado dinheiro.

Bem sabia que o pai lhe havia de bater, e em casa também estava frio; cobria-a só o telhado, pelo qual o vento assobiava, ainda quando se tapavam os buracos maiores com palha e farrapos.

O frio quase lhe não deixava mover as mãos.

Ah! um fósforo podia fazer-lhe bem; se tirasse um do molho, se o acendesse na parede, e se aquecesse a ele os dedos!

Tirou um. Zahs! Como cintilava, como ardia! Era uma chama quente e brilhante, era uma luzinha; pôs sobre ela as mãos, era uma luzinha maravilhosa. A menina pareceu que estava diante de um grande fogão de ferro todo guarnecido de latão polido. Abençoado fogo, que tão bem aquecia! Mas a chamazinha apaga-se, o fogão desaparece, ficaram-lhe na mão só os restos do fósforo que ardera.

Acendeu outro na parede, este alumiava e tornava transparentes como um véu os lugares da parede em que os seus raios incidiam: podia assim ver para dentro da sala.

A mesa tinha uma toalha branca de neve, sobre a qual luzia louça de porcelana; o ganso assado, cheio de maçãs e ameixas secas, exalava deliciosos vapores. E o que ainda era mais belo: o ganso saltava do prato abaixo, cambaleava pelo chão adiante, e vinha até à pobre criança, trazendo no peito a faca e o garfo.

Lá se apagou o fósforo, e só ficou a parede, espessa, fria e úmida.

Ela acendeu ainda um fósforo. E eis que lhe pareceu estar sob a majestosa árvore do Natal, ainda maior e mais adornada, que a outra que vira ao través da janela da casa de um rico negociante. Milhares de luzes ardiam nos ramos verdes; e imagens variegadas, como numa vitrina, olhavam para a rapariga. A pequena estendeu para elas as mãos; e eis que se apagou o fósforo.

As luzes do Natal subiram mais e mais; pareciam-lhe estrelas no céu; uma delas caiu formando longo rasto luminoso.

Alguém que morre, disse consigo a menina; porque a avó, única que lhe tivera amor, e que já era falecida, lhe contara que uma alma sobe para Deus, quando uma estrela cai para a terra.

Acendeu mais outro fósforo; a luz fez-se de novo, e no meio do brilho dela erguia-se a velha avó, tão resplendente e pura, tão cheia de doçura e de amor!

Minha avó, exclamou a pequena. Oh! leva-me contigo. Eu sei que tu desaparecerás quando o fósforo se apagar. Hás de passar como o fogão quente, como o delicioso ganso assado, e como a grande e majestosa árvore do Natal!

E rapidamente acendeu todo o molho de fósforos, a fim de ter ali a avó bem segura.

E os fósforos fulguraram com tal brilho, que havia luz mais viva do que em pleno dia; a avó nunca fora tão alta nem tão formosa: tomou nos braços a menina, e ambas voaram pelas regiões da luz e da alegria até muito alto, muito alto; não havia lá nem frio, nem fome, nem angústia: eram perto de Deus.

Mas encostada ao canto da parede, quando veio o frio amanhecer, estava a pobre rapariga com as faces vermelhas e um sorriso nos lábios; matou-a o gelo na última noite do ano velho.

E o sol do ano novo passou sobre o seu cadaverzinho.

Imóvel estava a menina: ali estava ela com os fósforos, dos quais havia queimado um maço.

Ninguém suspeitava quanto ela vira de belo, e em que brilhante região entrara com a avó no dia de ano novo.

 

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Fonte:
Tradução: José Joaquim Rodrigues de Freitas (1840-1896)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2021)

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