domingo, 12 de dezembro de 2021

A bruxa (Contos Fantásticos), Viriato Padilha

 

A BRUXA

A bruxa, a mulher fantástica que tem relação com o Diabo, folga no sabá, e possui poderes infernais, não é verdadeiramente nacional.

A bruxa é, ao contrário, genuinamente portuguesa, patrícia do vinho verde e das castanhas cozidas. E se pode dizer que é a superstição mais inveterada nos povos de Portugal.

Em geral o português, mesmo medianamente instruído, acredita na bruxa, pois diz:

— Não acredito em alma do outro mundo nem noutra coisa. Mas bruxa há, pois já vi!

Ora, tendo sido o Brasil colonizado por portugueses, é natural que a bruxa tenha às vezes atravessado o Atlântico e nos visitado.

Por isso não podíamos deixar de a contemplar neste livro, nos socorrendo duma história que ouvimos de pessoa insuspeita.

Eis:

Quando ainda não havia a importante via férrea que partindo da capital do país liga esse centro comercial aos estados vizinhos do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, era muito pra se notar o extraordinário movimento de faluas e outras embarcações miúdas de nossa formosa baía, se ocupando em transportar ao Rio de Janeiro café, fumo e açúcar que as tropas arriavam em Magé, Porto da Estrela e outros pontos, bem como levar a esses lugares artigos de comércio exigidos pelo consumo do interior.

Possuir uma boa falua nesse tempo, era ter encontrado uma fonte inesgotável de lucro. Disso tinha certeza Nicolau Gandoni, siciliano que havia seis anos vivia no Brasil mascateando em Santos, comércio muito cômodo, visto que com meia dúzia de bonecos de gesso possuía um sortimento completo de todas as imagens da corte do céu. Com uma pincelada sujava a barba dum são Francisco, com outra tingia a roupa e eis o bom patriarca transformado em santo Antônio, um santo Antônio levado dos diabos pra fazer milagre!

Portanto, obteve Gandoni com facilidade meia dúzia de contos de réis, que logo empregou em comprar uma boa falua, a qual deu o nome de sua pátria, Sicília.

O italiano era levado a tal negócio não só pela sede de lucro rápido e avultado, como pelo amor que consagrava à vida no mar, tendo sido catraieiro em sua terra durante alguns anos.

Os lucros auferidos pelos fretes da Sicília vieram com a facilidade que esperava e por essa razão dentro de um ano comprara mais duas faluas, às quais impôs novos nomes sicilianos: Messina e Palerma.

Ia, pois, de vento em popa no oceano da prosperidade o antigo mascate de Santos. A mesma brisa que enfunava as velas de suas faluas soprava contos de réis pra seu cofre, e não obstante repetir continuamente o estribilho Non se guadagna niente,{40} já muito sovado a força de o impingir, corria como certo que já estava bem.

***

No entanto o siciliano, embora cada ano visse multiplicados muitas vezes o haver, ainda não estava satisfeito. Tinha ânsia de enriquecer da noite ao dia, reunir rapidamente uma fortuna de 300 a 400 contos e ir a sua pitoresca Sicília, lá comprar um marquesado ao Rei Bomba e viver como fidalgo, onde outrora fora preciso remar dia e noite pra ter um pedaço de pão e uma sardinha. Essa ambição descomedida foi causa de graves transtornos em sua vida, como veremos.

Em Saco do Alferes havia uma mulher de 70 anos, viúva dum português que fora proprietário de numerosas faluas.

Se chamava Silvana e era magra, alta, feia como trezentos demônios e de má índole, rixosa, atrevida, desbocada. Era daquelas criaturas que quando nossos sertanejos encontravam diziam horrorizados: — Te arrenego, Peste! Antes tua mãe tivesse deitado ao mundo um saco de lacraia!

Silvana tinha a pele toda encoscorada e cheia de excrescência berrugosa na testa, no nariz e no queixo, sobrancelhas de comprimento excessivo, olhos pequenos e vivos, nariz adunco, boca sumida e sempre remoendo, queixo pontudo, cabelo cinzento arrepiado, mãos compridas de veias levantadas, dedos longos, nodosos, longas unhas curvas. Finalmente, era a encarnação do horror num corpo de mulher, cujo sexo só se adivinhava pelo traje, pois uns pelos duros e grossos que nasceram no queixo e nos botões das berrugas davam aspecto de homem feio.

Era simplesmente medonha a velha Silvana, porém possuía no mar quatro boas faluas, tinha um prédio regular no Saco do Alferes e uns trinta contos de réis no banco do Souto.

Era, por conseguinte, um bom partido. Se pondo a parte a fealdade, Nicolau Gandoni, que a conhecia bem, e muitas vezes fora por ela encarregado de tratar de negócio, começou a pensar seriamente em dar um impulso vigoroso a sua fortuna, se casando com a hedionda megera.

***

Sempre que no mar estava com as ligeiras faluas da velha lhes lançava um olhar cobiçoso. Se conseguisse as reunir a Messina, a Palermo e a Sicília, pensou, se tornaria um dos primeiros proprietários de faluas na baía do Rio de Janeiro, e em meia dúzia de anos estaria riquíssimo. Depois, aqueles trinta contos, que estavam no banco do Souto o atraíam danadamente.

Silvaria estava muito velha, com qualquer coisinha esticaria as canelas. Trinta contos, quatro faluas, das melhores que havia no porto, e o excelente prédio da praia do Saco pagavam bem o sacrifício de desposar uma velha hedionda.

Tendo assim considerado durante longos meses, afinal se convenceu de que não devia perder aquele ensejo pra aumentar a fortuna.

Não estava no Brasil somente pra ganhar dinheiro? O que importavam os meios?

Começou, pois, a frequentar assiduamente a casa da velha Silvana, a presentear, prestar pequenos serviços, até que, captando a confiança, a pediu em casamento, sendo aceito com satisfação pela velha, pois Gandoni, apesar dos quarenta anos, ainda era um rapagão, muito bem apessoado e de longo bigode negro e arrepiado.

***

Ajustado o extravagante consórcio, foi celebrado dentro dalgumas semanas com grande satisfação de Silvava e da molecagem do Saco, que acompanhou o cortejo à igreja, rindo gostosamente da dureza de estômago do siciliano e da empáfia com que o estupor da velha se requebrava, arregaçando o vestido do noivado, toda vaidosa, e ainda mais horrenda por isso mesmo.

Todos riam. Os taberneiros pançudos sacudiam as banhas, soltando gargalhada muito cheia, e um ou outro moleque mais atrevido punha os dedos na boca, e soltava um assobio.

Os noivos, porém, que não tinham consciência do ridículo papel que representavam, se encaminharam à igreja.

As pretas-velhas que esbarravam com o cortejo não riam e, olhando compassivamente o noivo, diziam entre si:

— Coitado do homem! Nem sabe o que fará! Se casar com uma bruxa! Não tardará a se arrepender! Coitado! E um homem tão bem parecido! Hum! Hum! Dinheiro tem muita força.

***

Sobre esse qualificativo de bruxa, que as pretas-velhas davam à noiva de Gandoni, precisamos dizer que a horrenda criatura assim era tida em toda a praia do Saco e arredor.

Diziam que nas noites de sexta-feira ela corria o fado. A suas feitiçarias atribuíam a morte do primeiro marido, e se citavam diversas pessoas que padeceram com seus malefícios.

Quem quer que lhe fizesse dano começava a entristecer e a definhar, sem saber a causa. Muitos faleceram por esse motivo.

Alguns fizeram com efeito sentir a Gandoni a má reputação que a velha Silvana gozava, e um foi João de Sousa, patrão da Siracusa, que outrora fora empregado do primeiro marido da velha. Porém o siciliano, fascinado pela ideia de chamar a seu poder os cabedais da velha, principalmente as quatro faluas que tanto o seduziam, a ninguém dava ouvido. Pensou:

— Venga il dinaro e gli bustiment, poco fa la stregoneria de la vecchia!

(Vindo o dinheiro e as faluas, pouco importa a bruxaria da velha!)

***

Assim se casaram mas não houve festa nem pessoa estranha jantou com os noivos nesse dia. Não era verdadeiramente um casamento que Gandoni fazia: Era simplesmente um bom negócio que realizava. Por conseguinte, pra quê comes e bebes em casa? A velha, sendo extremamente avarenta, concordou com a deliberação do marido, e aquele dia se passou como qualquer outro.

Na manhã seguinte o siciliano tratou logo de passar a seu nome, como cabeça do casal que era, os 30 contos que a velha tinha no banco do Souto, e às quatro faluas tirou os antigos nomes e lhes deu a denominação de cidades italianas. Ficaram se chamando Catanio, Messina, Grigente e Trapani. Assim se confirmava plenamente a transferência de proprietário, pois Gandoni as considerava desde então exclusivamente suas.

No mais não houve alteração na vida do siciliano. O tráfego dos barcos era de Magé ao cais dos Mineiros, e durante a semana Gandoni dormia apenas duas ou três vezes em casa, estando quase sempre a bordo ou em Magé.

A velha Silvana nada apresentava de anormal e raramente convivendo, Gandoni pouco a conhecia na sua intimidade.

Assim passaram as duas primeiras semanas o mais tranquilamente possível, e o ex-mascate já se felicitava por ter realizado o negócio do casamento.

Mas era cedo demais, pois bem depressa a situação se complicaria.

*** 

Numa noite de sexta-feira, cerca dum mês depois do casamento, Gandoni, assim que dormiu o primeiro sono em sua casa da praia do Saco, se ergueu, se vestiu e logo partiu ao cais dos Mineiros a fim de apressar o carregamento de três faluas e com elas partir a Magé onde as outras quatro estavam.

Chegaram as tropas mineiras carregadas de fumo, gênero que cotado a preço elevadíssimo no Rio, e os comissários empresaram italiano pra o transportar com a maior brevidade.

Eram bons fregueses, e ele precisava mostrar que se interessava por seus pedidos. Assim queria nesse dia voltar de Magé com toda a flotilha carregada de fumo.

Pra isso era preciso chegar bem cedo e trabalhar com toda a atividade pra que o carregamento se fizesse antes de chegar a condução.

Eram só11:30h e Gandoni já estava no cais. Na meia-noite largavam da praia a Grigenti e a Messina, e meia hora depois da meia-noite estava carregada a Siracusa, da qual era mestre o português João de Sousa.

Gandoni e o mestre se passaram a bordo da embarcação, e a tripulação, uma crioulada robusta, içando a vela à falua, se pôs ao largo sem demora, aproando ao fundo da baía, em direção a Magé.

***

O falueiro se acomodou sobre um fardo de fazendas e acendeu seu cachimbo de comprido tubo amarelo e curvo. João de Sousa se postou ao leme e a Siracusa, com as velas quadrangulares estufadas pela aragem, começou a cortar a água da baía, levemente crespa nessa hora.

A Lua estava no quarto crescente, quase enchendo. Nem uma névoa toldava o céu, e o mar, de claridade intensa mas tranquila, se estendia em toda parte, banhando a água irisada pela brisa, os contornos da baía, as ilhas, a massa alvacenta dos penedos.

Embora a quadra fosse de calor fortíssimo, no mar não era sentido, e os marinheiros, estirados sobre as caixas e fardos, descansavam do rude trabalho do carregamento.

Dali a pouco um moleque, que era o cozinheiro de bordo, distribuiu café a todos, em canecos de folha. Gandoni e João de Sousa, à ré, gozavam a frescura da noite e discreteavam, satisfeitos, sobre coisas daquela vida que levavam.

Era, pois, bela e agradabilíssima a travessia que a Siracusa fazia naquela formosa noite de verão.

***

Quando a Siracusa começava a montar a ilha do Governador, já se descobrindo os penhascos que bordam a pitoresca Paquetá, que é a jóia mais preciosa que constela o seio da Guanabara, Gandoni, João de Sousa e todos os tripulantes da falua principiaram a ouvir uma grasnado estranho, que a princípio não puderam perceber donde partia nem do que se originava.

Era uma bulha singular. Se diria o alarido causado por um bando enorme de maitacas, ou antes, determinada pelo tagarelar confuso duma chusma de mulheres em soalheiro. Mas aquilo continuou, sem intermitência, atordoante, irritante aos nervos.

À medida que a falua avançava, a matinada inexplicável crescia, se tornava mais próxima, mais alta. Dela se destacavam sons estrídulos, ásperos, arrepiantes. E quando o barco se aproximou dos penedos paquetaenses Gandoni e seus homens viram saltar nas pedras da praia um bando de cinquenta mulheres, todas de saia arrepanhada na cintura, mostrando pernas magras, ossudas e descabeladas, de mamas pendentes.

Umas batiam roupa nas pedras, outras a ensaboavam e outras estendiam as peças nos cabeços dos penedos, e sempre a tagarelarem esganiçadamente, num grasnado infernal.

Toda a tripulação da Siracusa ficou tomada de assombro ao observar aquela cena estranha. E não era pra menos: As mulheres pareciam endemoniadas, tal era a bulha que faziam, a rapidez com que levavam a roupa e saltavam dum a outro penhasco.

Mestre João de Sousa, tanto ou mais assombrado que os outros, teve desejo de voltar, mas o lugar onde estava não permitia a manobra. Assim a Siracusa, sempre empurrada pela brisa, continuava avançando. Gandoni olhava sem compreender, os crioulos estavam amedrontados. E João de Sousa, com o cabelo eriçado e sem poder articular palavra, se agarrava à cana do leme, tentando recuar a Siracusa a bombordo o mais que possível.

O movimento das fantásticas lavadeiras continuava sempre, e logo que a falua emparelhou com a extremidade dum cinturão de arrecifes que se metiam no mar a fora, passo esse no qual era preciso muita firmeza no leme, pra não perder o canal, uma das singulares lavandeiras se destacou do bando, e, saltando de pedra a pedra, veio na franja de espuma da arrebentação até quase tocar na amurada da Siracusa.

Chegando àli, a fantástica mulher desferiu uma risada horrenda, muito semelhante à duma coruja, e rapidamente regressou ao bando. Mas não o fez com tanta presteza que Gandoni não lhe distinguisse as feições. E... Ó! Assombro! Julgou reconhecer naquela estranha criatura a horripilante Silvana! Era o mesmos cabelo cinzento, a mesma carranca, toda berrugosa e encoscorada.

Nisso cantou um galo em Paquetá, e logo todo o mulherio, montado em cabo de vassoura e produzindo a algazarra dum bando de tiriba, ao levantar vôo, se suspendeu no ar e, se dispondo em cordões, como fazem as gaivotas, num momento sumiu ao lado do nascente, deixando no espaço uma longa tira de fumo negro com estria de fogo azulado.

— Que cosa c'é? — Perguntou Gandoni quase sem fala.

— São-nas vruxas que binheram a labaire os mantéos do Demo. — Respondeu João de Sousa, depois de restabelecido um pouco do assombro que igualmente o ganhara. — São-nas vruxas! Má raios as partam, grandíssimas porcas!

(São bruxas que vieram lavar as toalhas-de-mesa do Demo. São bruxas! Mas raios as partam, grandíssimas porcas!)

***

Gandoni fico extremamente impressionado com fato. A história do encontro com as bruxas se espalhou em Magé, divulgada pela tripulação da Siracusa. Todavia a ninguém revelou que percebera numa das fantásticas mulheres as feições hediondas de sua medonha consorte.

O certo, porém, foi que o siciliano não gostou daquilo. Quando lhe disseram que a velha Silvana era feiticeira ou bruxa pouco acreditara. Naturalmente o povo lhe dera esse título demoníaco por sua grande velhice e fealdade. Contudo, agora, começava a crer verdadeiramente que se casara com uma barregã do Diabo, e isso o incomodava seriamente, pois era extremamente supersticioso.

Contudo guardou consigo a apreensão, e esperou que os acontecimentos a justificasse.

Numa noite em que o siciliano ficara em Magé, largara desse porto na meia-noite, a bordo da falua Siracusa, em cujo bordo vira as bruxas em sua lavanderia.

Essa embarcação era a preferida pelo dono pra fazer a travessia da baía, em consequência da amizade que o ligava a João de Sousa.

Toda a flotilha ficava em Magé, carregando café, e a Siracusa ia ao Rio, pra transportar uma partida de sal que uma tropa mineira levaria a São João del-Rei.

Gandoni e João de Sousa mataram o bicho numa taberna de Magé, se meteram a bordo, e sem demora a Siracusa se pôs ao largo.

Havia exatamente uma semana que se dera o singular encontro com as bruxas, em Paquetá. Era por conseguinte numa sexta-feira de lua cheia.

A maruja desfraldou o velame singelo da pequena embarcação, João de Sousa se postou ao leme, Gandoni se estirou num banco e acendeu o cachimbo de longo tubo amarelo e eis a Siracusa singrando velozmente, tocada pelo terral.

Estava claro como dia. A bordo os tripulantes distinguiam os mais leves contornos das terras próximas ou distantes. O mar tinha a serenidade dum espelho.

Gandoni entrou em conversa com o mestre, o moleque que cozinhava a bordo serviu café a todo o pessoal. Nesse comemos a Siracusa cortava serenamente as ondas com a proa esguia, deixando após si uma larga e fervilhante esteira, prata líquida em ebulição, aqui e ali dourada pelo palor da lua.

Até então sem novidade. Mas, quando a falua começou a se abeirar do canal fronteiro a Paquetá, os tripulantes da Siracusa observaram que, bem fronteiro à linha dos arrecifes, estava uma embarcação de grande calado, cuja mastreação, velame e casco eram muito diferentes das que então se usavam. João de Sousa disse:

— Como? Um navio daquele porte não achou outro lugar pra se meter além daquele canal?

— E está manobrando pra lançar ferro. — Disse um dos marinheiros. — Nos tapará o canal.

João de Sousa, que conhecia perfeitamente a baía, observou a posição do navio, durante alguns minutos e disse:

— Não há novidade. Temos passagem a boreste do barco. Mas agora é que reparei: Quê diabo de embarcação é aquela? É uma nau de alto bordo! Não tem a ver! Pois ainda anda daquilo no mar?

No entanto a falua avançou, na intenção de costear a nau a boreste. Mas ao chegar a umas 50 braças da altaneira popa da velha embarcação, que manobrava pesadamente pra lançar ferro, notaram os tripulantes que a Siracusa, embora tivesse as duas velas bem enfunadas, não avançava.

— Já estou a descoifiaire que andamos outra bez às boltas com as tais porcas. — Resmungou João de Sousa.

— Santo Dio, serano le bestie? — Exclamou Gandoni, assustado.

— Está me a pareceire. Isto de uma nau por estes maires, leba aí água no bico. Mas o que é isso, ó Antônio? Antão não saimes daqui? — Perguntou o mestre a um dos marinheiros.

— Não sei o que é, mestre. O barco não avança, nem à mão de Deus padre.

— Estaremos encalhados?!

— Qual o quê!

— Antão aos remos!

A crioulada tomou logo dos remos e puxou com força mas foi o mesmo que nada. A Siracusa, em cujo costado vinham bater quase sem força os últimos flocos de espuma da arrebentação, continuava imóvel, parecendo amarrada ao fundo do mar.

— Não hai que bôire. — Observou João de Sousa — Andamos às boltas com as vruxas do Diavo!

E apenas acabava ele de dizer estas palavras, no convés da grande nau que tinham à proa emergiu uma chusma numerosa de mulheres, que, num abrir e fechar de olhos, colheram o pesado velame da embarcação. Tudo: Latinas, traquetes, estaes, bujarrona, foi, num momento, encolhido às vergas, e ali amarradas por aqueles marinheiros de nova espécie, e com presteza assombrosa.

Em seguida desceram as âncoras da enorme nau, firme nas amarras, e começaram a desembarcar mulheres. Bem dizia o João de Sousa, eram as mesmas da noite passada.

Todas saltavam nas pedras, carregadas de grandes fardos que iam depositar na praia, e de pronto se estabeleceu um vai-vem infernal. Umas iam e outras vinham. Parecia um carreiro de formigas saúvas, e sempre grasnando, tagarelando numa língua estranha, incompreensível.

E a Siracusa nada de avançar! Em vão a maruja se esbofava nos remos.

— Per la Madonna! — Exclamou Gandoni — Sono veramente le bestie!

— Pois quem dubida, — retrucou o João de Sousa, também em voz baixa. — São-n'as vruxas. Foram esta noite mesmo à Índia e de lá já binheram com uma nau carregada de canela, pimenta e crabo pra fazeirem a pitança ao Diavo. É o que as estupuradas estão lebando pra a terra naqueles fardos.

Nisto cantou um galo em Paquetá. E, exatamente, como acontecera na primeira vez, todo o bruxedo se suspendeu no ar, cavalgando cada uma um cabo de vassoura e descrevendo primeiramente algumas evoluções, flechou depois na direção do nascente, e logo desapareceu, ao mesmo tempo que se sumia a nau de cima da água.

Assim se verificou o segundo encontro das infernais mulheres com a tripulação da Siracusa.

Mas antes de passarmos a diante, precisamos referir um episódio importante daquela cena:

Uma das mulheres, ao levantar o bando o vôo, se destacou da tropa, e passando bem sobre a Siracusa ali desferiu uma risada medonha que gelou a todos de susto.

***

Nicolau Gandoni julgou reconhecer outra vez essa bruxa. Tinha a feição de sua asquerosa consorte. Era a velha e horripilante Silvana em carne e osso.

Nicolau Gandoni cada vez se impressionava mais com aqueles singulares encontros principalmente pelo fato de distinguir numa das extraordinárias fadistas a feição da esposa.

Não havia dúvida que levara ao altar uma amásia do Diabo e se horrorizava com esse pensamento, conjeturando perigos estranhos em vida, e penas eternas pra sua alma depois da morte. Contudo, ainda dessa vez não revelou a apreensão. Queria ver por si onde aquilo pararia.

Na sexta-feira seguinte, na noite, Gandoni tornou a embarcar na Siracusa, com o mestre João de Sousa, e se fez de vela a Magé.

Caía uma chuva miúda, muito fina. Como era minguante nada se via no mar nem no céu. No entanto João de Sousa era muito prático daquela água. Assim a Siracusa navegava certeira ao destino, sem desviar do canal. Não obstante à proa ia um marujo armado com um varapau, pra dar sinal em caso de perigo ou desorientação do rumo.

Havia muito tempo já que a falua largara do cais, quando o crioulo que ia à proa, gritou:

— Uma pedra à proa!

Lesto, João de Sousa manobrou ao leme, e a falua tomou outra direção. Mas, dali a um minuto, o crioulo tornou a gritar:

— Uma pedra à proa!

— Com mil raios! — Bramiu Sousa. — Onde diavo, pois, estamos?! Ferrem as belas! Aos ramos!

Dali a alguns a instantes tornava o crioulo a gritar:

— Uma pedra à proa!

— Com um milhão de Demônios! — Exclamou o mestre, enfurecido. — Então temos pedras em todos os lados!

Assim era efetivamente. A qualquer lado que a falua se voltasse ia com a proa sobre uma pedra e João de Sousa se desesperava. Um mar tão seu conhecido! Onde se metera?

De repente uma ideia iluminou o cérebro.

— Ai! Que andamos de nobo às boltas com as tais porcas. São-n'as desabergunhadas, não tem que beire! Hoje é sexta-feira!

Levaram seguramente uma hora naquela agitação. Os rapazes suavam debruçados aos remos. O mestre dirigia a proa da embarcação àqui e àli mas a falua não achava saída. Em toda parte encontrava recife. O barulho da arrebentação a cercava em todos os lados.

Nisso cantou um galo, em Paquetá ou na ilha do Governador, e logo se ouviu uma risada diabólica. E à luz lívida dum relâmpago, se viu uma mulher se erguer do mar e desaparecer na treva da noite.

Na terceira vez Gandoni reconhecera Silvana na mulher fantástica. A visão tinha o mesmo cabelo cor de cidra, o mesmo nariz de ave-de-rapina, as mesmas excrescências no rosto, a mesma barba da horrenda Silvana.

Escusado é dizer que a Siracusa não encontrou mais pedras à proa, e terminou sem novidade a travessia.

***

Dessa vez Gandoni ficou assustado deveras. Até então eram simples assombros o que as bruxas, dirigidas por sua mulher, pois não restava dúvida de que fosse ela, lhe apresentaram. Agora, porém, começavam a lhe armar ciladas perigosas. Aquilo não ia bem. Era preciso que se lhe pusesse um paradeiro.

Assim, logo que chegou a Magé, levou João de Sousa ao fundo duma taberna frequentada exclusivamente por catraeiros, e, mandando servir um martelo de aguardente, manifestou ao mestre o seu desassossego e as terríveis suspeitas de que era a velha Silvana quem preparava daqueles maus encontros no mar, pois julgava ter reconhecido suas feições, tanto na primeira vez, saltando de pedra a pedra até o costado da falua, como na segunda, gargalhando sobre a Siracusa, e bem assim na que viram naquela madrugada.

O mestre ouviu atentamente o patrão, e depois tendo chupado primeiro um farto gole de aguardente e limpado os bigodes ásperos na manga do gibão peludo, disse:

— Olha, bomecê não anda muito errado pensando que é a sôra Silbana quaim nos anda armar destas. Eu tamvaim já pensei nisso. Nunca ninguém me tirou da cisma que a patroa era vruxa, com xua licença. Eu vem lhe prebeni, antes de bocemecê se casar, mas bocemecê não me quis oubire, e eu cá, já se sabe, sou da Painha, lá se avainha. Mas agora lhe digo com a mão nai alma, a sôra Silvana é minha patrícia e pra vruxas não há terra como aquele estupurado Portugaile. Aquilo um homem a cada passo está a esvarraire com as tais sembergonhas.

— Anche in Sicília andamo molti di questi bruti! — Disse Gandoni.

— Mas não como em Portugaile. Olha conto: Quando eu ainda lá estaba, recolhia-me uma noite à casa, de bolta de uma conxoada que habia feito um primo meu, quando bejo no caminho uma corda. Não tibe mais cumbersas, agarrei-a, dovrei-a epu-la ao ombro. Mas dal hi pouco comexa raio da corda a pesaire, a pesaire que afinal não pude mais com a carga. Parecia de chumbo o estupoire. Atirei-a ao chão e logo a corda, meu rico senhor, se transforma numa mulheire, pois era uma vruxa, põe-se a rir como uma baca, por a ter encarregado por tanto tempo e lá se bai com todos os Diavos. Olhe, senhor Gandoni, não bai nisto agrabo à sua pexôa, mas o que é burdade é burdade, cá pra mim a sôra Silbana é vruxa, e das gordas. E isso que ela anda a fazeire ainda bai a maiore, pois ela é vruxa, basta que eu diga, e si bocemecê quiser ter a xerteza, pouco te custará.

— Ma come?

— Olhe, — disse Sousa — bocemecê, na sexta-feira que bem faxa-se doente, sem mesmo o estaire e dorma toda a noite em casa, ou antes, finja que dorme e beja o que faz a sôra Silbana. Não lhe digo mais nada, faxa isto que não se arrependerá.

Gandoni prometeu ao mestre que seguiria à risca o conselho, e bebendo os dois o último gole de aguardente, foram se ocupar no carregamento das faluas.

***

Toda a semana se passou sem maior novidade, e assim que chegou a sexta-feira seguinte, Nicolau Gandoni, fiel ao que prometera ao mestre de equipagem da Siracusa, pretextou à mulher violenta dor de cabeça e disse que nessa madrugada não iria ao cais.

Assim se deitou na cama e pouco depois fingiu dormir.

Se era certo o que Sousa dissera, naquela noite adquiriria a certeza de que a esposa era bruxa.

Cerca das 10h a velha Silvana, que até então se conservara numa sala contígua, cosendo, entrou no quarto, ficou em camisa, e, apagando a candeia, se deitou ao lado do marido, porém, muito sutilmente, como quem não queria o despertar.

Gandoni fingia sempre que dormia, e ressonava de modo a o fazer crer.

A velha Silvana se voltou ao lado da parede e não fez mais movimento.

Bateram 10:30h no relógio, 11h, 11:30h, e nada! A velha não se mexia! Qual! pensava Gandoni, com certeza formaram um juízo falso sobre a pobre velha, João de Sousa ficaria muito desapontado, quando, no outro dia, lhe dissesse que a mulher não arredara pé do leito durante a noite.

Mas de repente soaram as doze pancadas da sombria meia-noite, e logo Gandoni sentiu a velha se erguer a meio na marquesa, e o apalpar, como procurando saber se estava realmente adormecido.

Gandoni ficou alerta, porém continuou a fingir que dormia. E a velha, assim o julgando realmente, se esgueirou da cama e acendeu a candeia.

Silvana se pôs logo completamente nua. Gandoni não pôde reprimir um pequeno estremecimento de horror, pois era a primeira vez que a via nessa forma. A velha, se era feia vestida, era simplesmente pavorosa quando despida. Tinha a carne escura, o corpo apresentava uma infinidade de depressões e saliências esquisitas, os ossos eram torcidos aqui e anquilosados ali, e os cobrindo umas pelancas, umas muxibas pendentes, repugnantes.

Assim, que ficou nua foi a um canto da sala e tirou do centro duma vassoura uma grande boceta de madeira amarela.

A trouxe a junto da candeia e abriu. Havia dentro um unguento preto e fedorento no qual enterrou os dedos longos, nodosos e de unhas recurvas, os tirando cheios de nauseante enxúndia. Se besuntou toda da cabeça aos pés.

Essa operação durou seguramente cinco minutos. Tendo ficado bem untada Silvana, começou a dar saltos e a se torcer no quarto como uma cobra que levasse uma pancada na espinha. E Gandoni, cheio de susto e sempre fingindo dormir, percebeu que sua horrorosa consorte estava se alongando de forma singular.

Assim era. A velha se espremia e de cada vez ficava mais magra, mais comprida. A maldita parecia de borracha. Todas as muxibas se distendiam, se esticavam, os ossos se achatavam e o assoalho ia ficando cheio daquela tripa na qual não se reconhecia mais a forma humana.

Silvana, tanto esticou, que ficou da grossura duma lombriga. Chegando a este estado ganhou o buraco da fechadura com um salto e nele saiu num momento.

Logo que a tal minhoca de nova espécie se esgueirou de todo, Gandoni se sentou no leito. Um suor frio porejava das fontes, os lábios estavam descorados, os membros todos tremiam. O pobre homem quase morrera sufocado pelo medo!

Saltou da cama, se vestiu apressado e foi à rua. Precisava do ar fresco da noite pra se restabelecer.

***

Tal foi o assombro que se apoderou do infeliz que no mesmo momento deliberou se separar até sempre do monstro e fugir do Brasil. No dia seguinte começou a dizer a todos que queria vender as faluas.

Efetivamente assim o fez. Embora muito apegado ao dinheiro, vendeu as embarcações pela metade do valor e no fim de oito dias tomou passagem num vapor que partiu à Europa.

O pobre siciliano não podia se apartar da ideia de que tinha dado a mão de esposo a uma concubina do Diabo, uma bruxa, uma feiticeira danada.

Queria, pois, se ver bem longe dela, desejando que o navio voasse e quanto antes o transportasse a sua remota Sicília, embora lhe pungisse o receio de que lá mesmo a medonha criatura o pudesse ir atormentar nas lôbregas noites de sexta-feira.

Não ia ela nalgumas horas à Índia, carregar sua fantástica nau de especiaria pra adubar os comeres do Diabo?

***

No entanto os receios do siciliano não se realizariam pra seu sossego, pois a velha Silvana, sete dias depois da sua partida, entregou a alma empestada a Satanás.

Aparecera na capital do Brasil a febre amarela e,  com a intensidade e virulência das epidemias que surgem num lugar em primeira vez, fez estragos horrorosos na população.

A velha Silvana foi uma das pessoas em que primeiro se inoculou o terrível micróbio, e durante esses longos dias e noites penou no catre.

Não havia meio de morrer. Aquela alma excomungada estava custando a deixar a feia e rugosa carcaça, ao passo que o corpo curtia o mais atroz sofrimento.

Afinal foi tanta a dor que resolveu ir a encontro da Morte.

Chamando uma comadre que a servia durante a moléstia, lhe disse que, por seus pecados, era bruxa, e que só poderia morrer quando fosse queimado seu caborje, uma trouxinha de feitiçaria pendurada numa vassoura. Pedia, pois, que fizesse aquela obra de caridade.

A comadre não se esquivou a prestar esse serviço à moribunda. Acompanhada dalgumas outras pessoas, levou a trouxinha de bruxaria ao quintal e ali ateou fogo.

Subiu a ar um filete de fumo negro, exalando odor nauseabundo, e ao mesmo tempo surgiu um chifre de ponta a baixo que começou a dançar ao redor da pequena fogueira, causando o maior espanto em todos os circunstantes.

Assim que a trouxa se consumiu toda, o corno desapareceu e no mesmo instante a velha Silvana, esperneando como uma possessa e com berros formidandos, exalou o último suspiro.


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Ano de publicação: 1925.
Origem: Brasil (Nordeste)

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